domingo, 3 de novembro de 2024
O TEMPO DIRÁ, de Rosiska Darcy de Oliveira
A humanidade sempre foi arrogante e curiosa. Se assim não fosse, não haveria ciência, essa história humana da natureza, contada pelos cientistas no ritmo em que desafiam seus mistérios, a transformam e reinventam. Até meio século atrás acreditávamos que, mais cedo ou mais tarde, seríamos capazes de solucionar qualquer problema. Até descobrirmos que o problema maior éramos nós mesmos.
Ferida narcísica, golpe mortal na autoimagem de onipotência, a noção de limite nasceu dos próprios cientistas e veio para ficar desde que o Clube de Roma anunciou que a natureza não era inesgotável, que mares e rios morriam, que ventos enlouqueciam, os polos derretiam espalhando icebergs à deriva, por obra e graça de nossos estilos de vida e das florestas que amputamos. De lá para cá a ecologia foi senhora da agenda científica e política, da insônia dos ansiosos e das revoltas juvenis.
Limite, uma noção até então estranha ao nosso espírito aventureiro, impôs suas razões. Meio Ambiente e Sustentabilidade entraram no vocabulário corrente, associados a uma correção de rota na trajetória desenfreada da economia e das sociedades.
Como nunca nos consideramos parte da natureza, essa consciência dos limites não afetou, na vida de cada um, a relação predatória com o tempo. Tampouco influiu na poluição dos dias por uma multiplicidade de vidas que transbordam das 24 horas, como se as energias humanas também fossem inesgotáveis e não fosse o tempo não renovável e, como tal, de alto valor.
Talvez a inexorabilidade da morte, essa certeza dolorosa sobre a qual pesa o silêncio, impeça a lucidez sobre o suicídio cotidiano que representa nossa estranha forma de vida.
Com amarga ironia, poderíamos perguntar quantas horas trabalhamos para a compra de um Patek Philippe? O homem mais rico do mundo, que compra foguetes espaciais para desbravar o universo, não encontra tempo à venda em nenhum leilão de raridades. A morte, única detentora desse bem escasso, não vende.
Gastamos nosso tempo como sempre gastamos a natureza, no marco da predação, como se a vida e as energias humanas fossem infinitas. O paradigma da onipotência e da falta de limite, o pressuposto de energias inexauríveis que desencadeou a crise ambiental e climática, é o mesmo que contaminou o cotidiano das pessoas e se traduz no consumo descontrolado do tempo em que o hoje invade o amanhã.
Nas megalópoles instalou-se a tirania da pressa que enche os consultórios de psiquiatras e cardiologistas. Enquanto a longevidade se afirma como um fato, os dias são percebidos como cada vez mais curtos. As horas se desentendem, disputam entre si o primado do inadiável. Vivemos vidas insustentáveis. No duplo sentido da palavra.
Nosso estilo vida resulta da conjunção aleatória de fatores aparentemente díspares que interagem, se retroalimentam e acabam por provocar um resultado desastroso.
A vida privada foi ocultada em seu valor. A sociedade contemporânea ainda não colocou como um direito, para homens e mulheres, a dispor de tempo para a vida privada. Deveria, quanto mais não fosse, em respeito à infinidade de gestos que, desde sempre, as mulheres fizeram para transformar cada um de nós em seres humanos melhores do que os animais selvagens que somos ao nascer. Esses gestos fundadores nunca mereceram um mísero registro nos livros de história da civilização, embora nos civilizar tenha sido a grande aventura educativa da espécie, a mais espetacular transformação da natureza em cultura levada a cabo pelas mulheres.
De difícil solução, a questão da compatibilização da vida privada com o mundo do trabalho, quando os “anjos do lar” já são mais da metade da força de trabalho, foi devolvida à intimidade dos casais onde não encontra resposta.
A vida real, que não perdoa, fez dessa ocultação uma angústia diária de homens e mulheres, ainda que silenciosa e sem lugar de expressão no mundo do trabalho que exerce pressão inclemente por mais e mais performances, rendimentos, cumprimento de metas, missões impossíveis em que o urgente atropela o importante. Pergunta-se mais “como” e “quando” do que “por quê” e “para quê”. Nesse reino da urgência, o estresse é a regra e a somatização o sintoma. Cada um é o contramestre de si mesmo, tanto mais severo quanto mais competitivo.
A fome de tempo está na origem da doença urbana epidêmica, que é a depressão.
Aceleradas são as megalópoles onde todos querem rapidez, ninguém se move, e explodem surtos em engarrafamentos de pesadelo. Quem sonhou com um carro suporta hoje a velocidade de um lombo de burro, enquanto envenena o ar que todos respiram e se envenena com a bílis da irritação.
Mas já vai longe o tempo em que a vida real era balizada por família e trabalho, no cenário das cidades. Ela foi atravessada por outra vida, que se desdobra ao infinito, a vida virtual.
A vida virtual tornou-se parte da vida real e já não é possível separá-las ou estabelecer, entre elas, uma hierarquia. A vida de cada um gira cada vez mais em torno de duas pequenas telas: o computador e o celular. Quem mergulha nessas telas cai, como Alice, do outro lado do espelho. As balizas de tempo não vigoram no ciberespaço. O tempo pode ser inventado, relativizando essa dimensão com que trabalhava o pensamento na construção da ideia mesma de real. O mundo se expande e encolhe ao mesmo tempo. Arte e política se submetem ao novo modo de viver. No país de Proust um concurso literário desafia escritores a um conto de 140 toques. Políticos comprimem em frases amputadas receitas para salvar seus países do caos. Google, o ciberoráculo, responde a qualquer questão, salvo de onde viemos e para onde vamos.
Quem não fala digital nativo passa seu tempo correndo atrás de tecnologias que, mal acabamos de dominar, já mudaram e cobram, em tempo, o preço do próprio tempo que elas prometiam nos poupar. Nos realfabetizamos uma vez por semana. Imigrantes no futuro, não estamos bem situados para entender o ciberespaço e suas zonas de sombra, essa população incorpórea em que qualquer um se desdobra em quantas vidas queira se atribuir. Quem se delicia no anonimato e se quer inimputável, sem lei, sem superego, sem tabu, somos nós mesmos, desmaterializados.
A vida virtual, essa vida a mais, é um rebatimento do mundo real, sem instituições, sem códigos de moral ou ética, de relacionamento entre pessoas, sem os interditos civilizatórios que domesticam a fera que dorme em cada um.
E assim íamos vivendo, aos trancos e barrancos, quando a máquina do mundo subitamente parou. Sem aviso prévio, um vírus desconhecido, contagioso e letal, trancou a população mundial em casa, condenando todos a uma coletiva convivência com o medo da morte. A pandemia do coronavírus derrubou as balizas já conhecidas do tempo e instalou um paradoxo desconhecido, uma vida sem futuro em que a morte e a doença sufocante, omnipresentes, tornavam o limite de cada um visível a olho nu.
A vida tornou-se, em qualquer idade, uma doença terminal. A temporalidade de zapping que moldava nosso cotidiano, fragmentado em múltiplas vidas, desapareceu, e em seu lugar emergiu uma vivência do tempo que ninguém conhecia, de improviso da sobrevivência. O tempo que nos faltava sobrou, ocioso, dedicado sobretudo, a chegar ao dia seguinte. Perplexos, confinados em nossos corpos vulneráveis, apelamos para nossa dimensão incorpórea, abrindo caminho para que a vida virtual primasse sobre a miserável natureza humana.
A vida mudou-se para o ciberespaço, único continente imune ao vírus. E se antes essa vida virtual já tinha vindo se acrescentar a uma acelerada vida real, agora ela reivindicava para si o primado do nosso tempo.
A pandemia deixou como sequela um aumento vertiginoso de tempo passado no ciberespaço. Muitos abandonaram seus espaços de trabalho. As famílias foram impactadas por esse tempo passado em casa de maneira inabitual. Ensaiam-se novos arranjos cotidianos. Que efeitos terá a longo prazo esse solavanco que sacudiu o mundo inteiro? Os tempos que correm, correm para onde? O tempo dirá.
(Ilustração: Salvador Dalí)
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