sábado, 30 de novembro de 2024

CHROMO RUSTICO, de Antonio Tavernard [*]

 


Para a alma delicada e affectuosa da IACY


No terreiro da fazenda

em noite sem viração...

A lua fazendo renda

sobre a areia... Solidão...

Apenas, lá num recanto,

elle de linho alvejando,

ella de cassa e chitão,

arrulhavam cochichando,

a Rita e o Sebastião.



Dizia elle em quebranto:

—"Qondo nos dois se ajuntá,

meu amô, amô primêro,

a gente vae se aninhá

nas terras de Zé Lôrêro,

num ranchinho de sapê,

Lá fora, muito coquêro...

Lá dentro, eu e vancê...



Ella ajuntava, faceira,

em voz baixa, quasi extinta:

— "Dispois, nos dois e um fiinho,

todos tres agarradinho

que nem pétala de frô:



Tres pessoa bem distincta,

mas Cuma só verdadeira...

E a verdadeira é o amô..



Final: a lua escondida

com vergonha de espiar...

—"Meu pecado!" — "Mea vida!..."



E o resto eu não sei contar.



[*] Manteve-se a ortografia original.



(A Semana nº 667, 23.5.1931)



(Ilustração: Almeida Júnior - paisagem do interior)

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O BOTO, de Osvaldo Orico

 



O boto é o dom Juan da planície amazônica. Seu prestígio, longe de diminuir com as dissipações do tempo, ganha novos florões com os casos que todo dia lhe aumentam o lendário e a fé de ofício. O papel que lhe atribuem não difere muito das proezas que assinalaram a famosa personagem de Tirso de Molina.

O asqueroso mamífero pisciforme, com aqueles seus dois a três metros de comprimento, com aquele focinho pontiagudo e encabelado, passa por ser um herói mais atrevido, em matéria de amor, do que os tipos de Merimeé. Assim pelo menos o criou ou perfilhou a gente simples do extremo norte.

Em suas Cenas da vida amazônica, descreve-o José Veríssimo: "O boto, a uiara do índio, ocupa largo espaço na sua imaginação, e o nosso interior está cheio de contos maravilhosos sobre este animal. O boto, como a sereia antiga, canta e qual o dela, tem seu canto o dom de seduzir. Ai da donzela que o ouve por noite de luar! Os índios criam que o boto aproveitava-se das ocasiões em que as mulheres se banhavam, para seduzi-las e gozá-las, e anda mais que, revestindo formas de mancebo gentil, vinha, às vezes, por noite alta, partilhar a rede das virgens das florestas, não raro atribuindo a este dom Juan fluvial a gravidez de muitas. Esta crença, o último fato parece comprová-lo, é filha da imaginação da mulher, que porventura procurou assim encobrir uma falta que, ao menos em algumas tribos, atraía sérios castigos. Não há muito tempo que ouvi dizer que um boto, sob formas humanas, fora alta noite render finezas a uma rapariga e os que narravam o fato faziam com a maior boa fé... O boto faz naufragar canoas que vão moças, para se apossar delas. Os olhos deste animal são considerados preciosos amuletos para abrandar corações de amantes, seus dentes preservativo excelente contra dores destes órgãos e contra perigos de primeira dentição. Outra espécie da mesma família o tucuxi, é, segundo acreditam, bastante amigo do homem, a quem socorre e livra travando luta com o boto. Desta crença no boto resulta uma enfermidade nervosa, que acomete homens e mulheres, sob a denominação de uiara".

Analisando o destino particular de cada um dos seres privilegiados pela mitologia zoológica, o erudito e viajado Couto de Magalhães informa que a sorte dos peixes foi confiada a um ser sobrenatural, que se transforma em boto. "Ainda hoje, no Pará, não há uma só povoação do interior que não tenha para narrar ao viajante uma série de histórias grotescas e extravagantes, ora melancólicas e ternas, em que ele figure como herói. É um grande amador das nossas índias; e muitas delas atribuem seu primeiro filho a alguma esperteza desse deus, que ora a surpreendeu no banho, ora se transformou na figura mortal para seduzi-las; ora as arrebatou para debaixo d’água, onde a infeliz foi forçada a entregar-se-lhe. Nas noites de luar, na Amazônia, conta o povo do Pará que, muitas vezes, os lagos se iluminam e que ouvem as cantigas das festas e o bate-pé das danças" com que se celebram as conquistas desse irresistível Lovelace.

Sugestiva por todos os aspectos, a lenda do boto vem atraindo o interesse e o encanto de poetas e escritores, que lhe tem dedicado numerosas páginas.

Raul Bopp tem, a respeito, estes versos:



" – Joaninha Vintém: Conte um causo

– Causo de que? – Qualquer um

– Vou contar causo do boto:



Putirum Putirum



Amor. Chovia

Chuveriscou

Tavo lavando roupa, Maninha

quando boto me pegou.



– Ó Joaninha Vintém

Boto era feio ou não?

– Ai era um moço loiro, Maninha

tocador de violão.



Me pegou pela cintura...

– Depois o que aconteceu?



- Gentes!

Olha a tapioca embolando no tacho.



– Mas que boto safado

Putirum Putirum"

Do mesmo modo que existe vasta tradição oral, conta-se hoje numerosa tradição escrita a respeito das façanhas e sortilégios do boto. Ele tem inspirado poetas, prosadores, pintores e músicos. Waldemar Henrique, apreciado compositor paraense, que está fazendo dos nossos motivos folclóricos o grande encanto da sua música, foi buscar a uma poesia de Antônio Tavernard, poeta amazônico de profunda sensibilidade, inspiração para uma de suas mais expressivas canções:

Ei-la:



"Tajapanema chorou no terreiro

Tajapanema chorou no terreiro

E a virgem morena fugiu no costeiro.



Foi boto, sinhô,

Foi boto, sinhá,

Que veiu tentá

E a moça levou



No tar dançará

Aquele doutô

Foi boto, sinhá

Foi boto, sinhô,



Tajapanema se pôs a chorar

Tajapanema se pôs a chorar

Quem tem filha moça é bom vigiar.



O boto não dorme

No fundo do rio;

Seu dom é enorme.

Quem quer que o viu

Que diga, que informe

Si lhe resistiu,

O boto não dorme

No fundo do rio".

Freud e os seus discípulos teriam um vasto campo de observações na esteira enluarada das aventuras do boto, esse dom Juan lacustre que, sob a capa de cetáceo, deixa as margens solitárias e vai, pelas caladas da noite, surpreender o fácil coração das raparigas crédulas.

Nunes Pereira, que é um grande conhecedor das coisas amazônicas e para quem são familiares quase todos os assuntos da região, explica logicamente a fama que rodeia as aventuras do boto. O conhecido mamífero notabiliza-se, em verdade, pelas suas esquisitas manifestações quando sente o "odor di femina". A crendice não quer saber se os cetáceos dispõem ou não de pituitária. O caboclo tem razão em apontá-lo como um perigosos sátiro fluvial, um fauno das águas. Sentindo o cheiro do corpo feminino, logo se aproxima. E fica excitado se descobre o fluxo menstrual. Conta-se, no interior, que quando as cunhãs se arriscam a viajar "incomodadas", o boto logo descobre o rastro, e agitado, chega e vira as canoas.

A propósito disso, Nunes Pereira forneceu a Valdemar Henrique assunto para uma curiosa canção regional: Manha-nungara (mãe de criação da cunhã) em que o fato aparece velado no mistério da música.



(Vocabulário de crendices amazônicas).



(Ilustração: Bára Puletz - O boto do Rio Amazonas)

domingo, 24 de novembro de 2024

SALMO DE LAS MADERAS / SALMO DAS MADEIRAS, de Jorge Debravo

 




Hay maderas oscuras y profundas como tus ojos y tus cabellos.

Porque tus ojos y tus cabellos son como maderas profundas y charoladas.



Hay maderas suaves y livianas como tu piel y tu alegría.

Porque tu piel y tu alegría son como maderas suaves y livianas.



Hay maderas recias y macizas como tus piernas y tus espaldas.

Porque tus piernas y tus espaldas son como maderas recias y macizas.



Hay maderas húmedas y rojas como la piel de tus labios y de tu lengua.

Porque la piel de tus labios y de tu lengua es como una madera roja y empapada de salvia.



Hay maderas olorosas y vivas como el olor de tu cuerpo.

Porque el olor de tu cuerpo es como el olor de las maderas cortadas en los tempos de lluvias.



Hay maderas que al ser trabajadas dan notas musicales y perfectas.

Tu amor es una nota musical y perfecta como el sonido que dan ciertas maderas cuando son trabajadas.



Hay maderas que se quejan en las noches de lluvia y en las tardes de tormenta.

Porque eres triste y eso te embellece y purifica, te pareces a estas maderas que se quejan en las noches de lluvia y en las tardes de tormenta.



Hay maderas que tienen un sabor y perfume tan propios que, cuando se las huele o se las besa, ya no son olvidadas nunca más en la vida.

Porque eres fatalmente inolvidable, te pareces a esas maderas que se recuerdan hasta la muerte cuando se las huele o se las besa.



Tradução de Antonio Miranda:



Existem madeiras escuras e profundas como teus olhos e teus cabelos.

Porque teus olhos e teus cabelos são como madeiras profundas e envernizadas.



Existem madeiras suaves e leves como tua pele e tua alegria.

Porque tua pele e tua alegria são como madeiras suaves e leves.



Existem madeiras intensas e maciças com tuas pernas e tuas costas.

Porque tuas pernas e tuas costas são como madeiras intensas e maciças.



Existem madeiras úmidas e rubras como a pele de teus lábios e de tua língua.

Porque a pele de teus lábios e de tua língua é como uma a madeira rubra e empada de seiva.



Existem madeiras olorosas e vivas como o odor de teu corpo.

Porque o odor de teu corpo é como o odor das madeiras cortadas durante as chuvas.



Existem madeiras que ao serem trabalhadas produzem notas musicais e perfeitas.

Teu amor é uma nota musical e perfeita como o som de certas madeiras quando são trabalhadas.



Existem madeiras que se queixam nas noites de chuva e nas tardes de tormenta.

Porque és triste e isso te embeleza e purifica, te assemelhas a essas madeiras que se queixam nas noites de chuva e nas tardes de tormenta.



Existem madeiras que têm um sabor e perfume tão próprios que, quando as cheiramos e as beijamos, já não as olvidaremos jamais por toda a vida.

Porque és fatalmente inesquecível, pareces com essas madeiras que recordamos até a morte quando as cheiramos ou as beijamos.



(Tres poetas centroamericanos, 1987)



(Ilustração: escultura de Gustav Vigeland - kneeling man embracing a standing Woman)

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

SOBRE A ORIGEM DA VIDA, de Marcelo Gleiser

 



Dos grandes mistérios que despertam enorme interesse tanto de especialistas quanto do público em geral, poucos são tão fascinantes quanto a questão da origem da vida. Existem várias facetas diferentes, cada uma com seu conjunto de questões em aberto. Uma das mais óbvias diz respeito à possível existência de vida extraterrestre. Se existe vida na Terra, por que não supor que ela exista também em outros planetas?

Essa pergunta em geral é respondida com outra pergunta. Do que a vida precisa para existir? Se usarmos a Terra como base - e só conhecemos a vida aqui -, consideramos que são essenciais a água líquida, certos compostos químicos e calor ou alguma outra fonte de energia. Água líquida impõe que o planeta não esteja muito distante ou muito perto de sua estrela.

Caso contrário, teria apenas água congelada ou vapor. A água líquida cria o meio onde as reações químicas que sustentam a vida podem ocorrer. Não é à toa que somos mais de 60% água.

Planetas que podem ter água líquida estão na chamada “zona habitável”, um cinturão cuja distância varia com o tipo de estrela. No caso do Sol, cobriria Vênus, Terra e Marte. Imediatamente, vemos que estar na zona habitável não é suficiente. Vênus tem uma temperatura que vai além de 500C, por causa de um acentuado efeito estufa. Marte, como foi descoberto recentemente, teve água líquida no passado, tem alguma hoje e também tem gelo, mas não foram encontrados rios, oceanos ou lagos. A possibilidade de vida lá hoje não é nula, mas é remota.

Aprendemos que composição e densidade da atmosfera e a história do planeta são determinantes. A vida precisa de certos elementos químicos. Carbono, nitrogênio, oxigênio e hidrogênio são essenciais. Fósforo, ferro, cálcio, potássio também são importantes. Esses elementos são sintetizados em estrelas durante seus últimos estágios de vida. Quando a estrela “morre”, explode com tremenda violência, emitindo esses e todos os outros elementos da tabela periódica pelo espaço interestelar. Planetas capazes de desenvolver formas de vida precisam estar numa região com os ingredientes certos. Fora isso, os ingredientes precisam ser combinados corretamente. Pelo que vemos aqui, mesmo as formas mais primitivas de vida dependem de compostos orgânicos consistindo de cadeias muito longas de átomos de carbono ligados a uma série de radicais.

Os átomos de carbono são os ossos da espinha dorsal, dando suporte ao resto. Como que esses átomos formaram cadeias tão complexas? Essa questão permanece em aberto. Mas em 1953, Stanley Miller fez uma grande descoberta: combinando substâncias que acreditava terem feito parte da atmosfera primitiva (metano, gás carbônico, água e outros), Miller isolou-as num frasco e passou faíscas elétricas que simulavam raios.

Para sua surpresa, ao examinar os compostos acumulados no fundo do frasco, percebeu que tinha sintetizado alguns aminoácidos, componentes fundamentais das proteínas. Miller não produziu a vida no laboratório, mas demonstrou que processos naturais podem tornar uma química simples numa química complexa.

Assim como o experimento de Miller, a vida precisa de uma fonte de energia. Aqui, estamos acostumados com o Sol. Mas a descoberta de formas de vida que vivem na mais completa escuridão, em fossas submarinas profundas, demonstra que processos químicos independentes da luz podem gerar a energia capaz de impulsionar os mecanismos da vida. Não basta afirmar que o vasto número de planetas no cosmo torna a vida extraterrestre inevitável. O que aprendemos é que, mesmo se existir, será rara.



(Ilustração: Cecilia Lofgren - the origin of life)

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

LO QUE SIENTE LA MANO / O QUE SENTE A MÃO, de Idea Vilariño

 


 

Lo que siente la mano

lo que carga

que sostiene

no es mi frente mi piel mi inteligencia

es el hueso gentil

la calavera

con sus tibios disfraces

con sus órbitas

por el momento llenas

con la suelta mandíbula que un día

remedará la risa

ese día en que deje tirados por ahí

mi esqueleto liviano

mi cráneo regular

y quede yo

mis labios y mis pies

mi pelo mis mejillas

mis ojos mi color

y todo lo que fui

lentamente

obviamente

pudriéndose

pudriéndose

volviéndose ceniza.

 

Tradução de Priscilla Campos:

 

O que sente a mão

o que carrega

segurando

não é minha testa minha pele minha inteligência

é o osso gentil

a caveira

com seus disfarces mornos

com suas órbitas

por um momento cheias

com a mandíbula solta que um dia

imitará a risada

naquele dia em que deixei abandonado por aí

meu esqueleto leviano

meu crânio regular

e eu fico

meus lábios e meus pés

meu cabelo minha bochecha

meus olhos minha cor

e tudo que eu fui

devagar

obviamente

apodrecendo

apodrecendo

virando cinza.

 

(Nocturnos, 1955)

 

(Ilustração: Alyssa Monks)

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

DESCULPAS À FAMÍLIA MESQUITA, de Tom Cardoso


 

Minha filha de 15 anos já sabe falar alemão, inglês e espanhol.

Outro dia, entrou em casa chutando a mochila. Tinha tirado 8,1 em Biologia.

Abri o armário. Fui fuçar o meu histórico escolar. Estavam ali, os boletins dos tempos de Virgília, a escola estadual onde passei boa parte da minha juventude até conseguir completar o colegial. Perto de mim, Damares é uma acadêmica brilhante.

Eu era tão preguiçoso e cara de pau, que uma vez, precisando entregar um trabalho enorme de ciências, colei o capítulo inteiro de um livro do Mario Schenberg, ele mesmo, o lendário físico, amigo de meu pai e de Albert Einstein. Contava com a ignorância do professor de física para não ser desmascarado.

Acho que até ganharia um dez, com louvor, se não tivesse, distraído, incluído no texto a seguinte frase: "veja a figura ao lado".

Em 1990, já reprovado quatro vezes, consegui tirar 6,5 em OSPB (Organização Social e Política Brasileira) e ainda ganhei um elogio do professor por ser o único a explicar razoavelmente quem era Golbery do Couto e Silva. Um isolado momento de glória de minha vida escolar.

Eu era um caso curioso. Semi-analfabeto - não sei até hoje conjugar nenhum tipo de verbo e não faço a menor ideia do que seja adjunto adverbial -, lia, desde os onze anos, todos os colunistas dos quatro jornais trazidos pelo meu pai (também jornalista): JB, O Globo, Estadão e Folha.

Com 12 anos li "Minha Razão de Viver", do Samuel Wainer, e "A Regra do Jogo", do Claudio Abramo. Decidi ser jornalista.

Minha mãe dizia que eu precisava, pelo menos, aprender inglês, e me colocou na Cultura Inglesa, em Pinheiros, que ficava em frente à lendária loja de discos do Edgar, que virou até tema de filme.

Descia do ônibus direto pra loja. Nunca entrei na Cultura. Foi lá que ouvi Toy Dolls pela primeira vez. Não entendi porra nenhuma da letra, mas nem era esse mesmo o propósito dos caras.

O tempo passou. Com 19 anos, ainda no colegial, consegui uma vaga no Jornal da Tarde, na editoria de Esportes. Meu trabalho se resumia a comprar cigarro para os editores e buscar informações no arquivo para os repórteres.

- Tom, vai lá e compra um Hollywood e duas peras.

- Tom, vai lá e vê pra mim quantos jogos o Biro-Biro fez pelo Corinthians.

- Tom, paga essa conta lá no banco? Não esquece o comprovante.

Enfim, um boy disfarçado de estagiário de jornalismo, algo muito comum naquela época. Um bando de chefe feladaputa. As únicas exceções: Cosme Rímoli, Carlos Ferreira Lima e Denise Mirás, que nunca me mandaram fazer feira e ainda me ensinaram que não se deve, por exemplo, colocar crase antes de uma palavra masculina.

Com saco cheio de fazer tabela do campeonato paulista (confesso aqui que sempre roubei uns gols a mais para o Corinthians), parei no corredor o então editor do Caderno 2 do Estadão, Evaldo Mocarzel, e pedi uma vaga de estagiário na editoria de cultura.

O Evaldo era o carioca mais carioca da redação.

- Do que você entende, brother?

- Meu negócio é música.

- Sabe inglês?

- Praticamente minha primeira língua.

Eu sabia que a maioria dos repórteres daquela época não sabia inglês. Dos quatro responsáveis por cobrir música no Caderno 2, só o Jotabê Medeiros segurava uma entrevista inteira. E, além do mais, ninguém pediria para um estagiário fazer uma entrevista com o Quincy Jones. Eu não corria esse perigo.

Até que, uma semana depois, alguém gritou:

- Alguém viu o Jotabê?

O Jotabê tinha sumido, como sempre. Quem trabalhou nos anos 90 por lá sabe do que estou falando.

- Acharam o Jotabê? Ligação internacional pra ele.

Parece mentira, mas é verdade. Nos anos 90, até existia a figura do assessor de imprensa, mas muitos artistas dispensavam esse tipo de intermediário e ligavam diretamente para as redações, para dar a entrevista. A gravadora mandava o número e o cara ligava, de casa.

Logo se soube que o cara na linha, querendo falar com o Jotabê, era o Sting.

- Mauro, você fala com Sting?

- Mas nem a pau.

Mauro Dias, decano do jornalismo cultural, o cara que sabia tudo sobre música brasileira, mas nada sobre verbo to be.

- Haag, fala aqui com o Sting?

- Quem é esse cara mesmo? Me tira dessa?

- Toninho?

- Não dá, tô fechando uma matéria.

- Gente, o homem já está há dez minutos na linha.

- Pode deixar que eu falo com o cara.

Eu comecei a falar um inglês inventado, pior que o do Raoni. O Sting começou a gritar e desligou. Fiz a matéria, que foi publicada no dia 4 de abril de 1996. É só olhar no acervo do Estadão. Minha carreira deslanchou.

Peço aqui minhas desculpas à família Mesquita.



(Ilustração: Enoch Wood - young Franklin at the press)

terça-feira, 12 de novembro de 2024

בוכים / OS PARAQUEDISTAS CHORAM, de יים חפר, Haim Hefer

 


     

הכותל הזה שמע הרבה תפילות

הכותל הזה ראה הרבה חומות נוֹפלות

הכותל הזה חָש ידי נשים מקוֹנְנוֹת וּפִתְקָאות הנִתְחבוֹת בין אבניו

הכותל הזה ראה את רבי יהודה הלוי נִרמס לפניו

הכותל הזה ראה קיסרים קמים ונִמְחים

אך הכותל לא ראה עוד צנחנים בוכים...

הכותל הזה ראה אותם עייפים וסחוטים

הכותל הזה ראה אותם פצועים ושרוטים

רצים אליו בְּהַלמות לב, בִּשְאגות וּבְשתיקה

ומזנקים כמטורפים בסמטאות העיר העתיקה

והם שטופי אבק וְּצְרוּבי שפתיים

והם לוחשים: "אם אשכחך, אם אשכחך ירושלים"

והם קלים כַּנשר ועזים כַּלָביא

והטנקים שלהם - מֶרְכֶּבֶת האש של אליהו הנביא

והם עוברים כְּרעם, והם עוברים בְּזעם

והם זוכרים את כל השנים הנוראות

שבהן לא היה לנו אפילו כותל כדי לשפוך לפניו דמעות...

והנה הם כאן עומדים לפניו ונושמים עמוק

והנה הם כאן מביטים עליו בַּכְּאֵב הַמָתוק

והדמעות יורדות והם מביטים זה בָּזֶה נבוכים

איך זה קורה, איך זה קורה שצנחנים בוכים

איך זה קורה שהם נוגעים נרגשים בקיר

איך זה קורה שמן הַבֶּכי הם עוברים לְשִיר

אולי מפני שבחורים בני י"ט שנולדו עם קום הַמְדִינה

נושאים על גבם - אלפיים שנה...



Tradução de Rafael Stern:



Este muro ouviu muitas orações

Este muro viu muitos outros muros tombarem

Este muro sentiu o toque de mulheres em luto, que choravam por seus filhos

Este muro sentiu bilhetes e pedidos serem depositados entre suas pedras

Este muro viu Rabbi Yehuda Halevi ajoelhado a sua frente

Este muro viu césares levantarem e caírem

Mas este muro nunca antes tinha visto paraquedistas chorarem.



Este muro os viu cansados e aflitos

Este muro os viu feridos e mutilados

Correndo em sua direção com os corações disparados, em alegria, choro, ou silêncio

Rastejando como predadores pelas ruelas da Cidade Velha



Cobertos de pó e com os lábios rachados,

Murmurando: “Se eu esquecer de ti, ó Jerusalém”...



Eles são leves e velozes como as águias; ferozes e valentes como leões

Seus tanques são como as carruagens de fogo do profeta Eliahu

E eles passam em fúria como um trovão

Relembrando os milhares de anos em que nem tínhamos um muro onde derramar nossas lágrimas.



E eis que chegam ao Muro

E, com a respiração pesada, soluçam em silêncio.

E o contemplam em doce lamentação.

As lágrimas escorrem e eles se entreolham confusos.

Como pode paraquedistas chorarem?

Como podem tocar o muro com tanta emoção?



O que aconteceu de repente

Que seu choro se transformou em canto?

Talvez porque estes garotos de dezenove anos, que nasceram junto com o Estado de Israel,

Carregam sobre seus ombros dois mil anos de dispersão.



(1967)



(Ilustração: Jean-Léon Gérôme - Muro das Lamentações – Israel)

sábado, 9 de novembro de 2024

GORGONZOLA, de Clarice Niskier

 


Não sou mais um queijo Minas Frescal, não sou mais uma Ricota, não sou um queijo amarelo qualquer para um lanche sem compromisso.

Não sou para qualquer um, nem para qualquer um dou bola, agora tenho status, sou um queijo Gorgonzola.

“Estamos envelhecendo, estamos envelhecendo, estamos envelhecendo”, só ouço isto.

No táxi, no trânsito, no banco, só me chamam de senhora.

E as amigas falam “estamos envelhecendo” como quem diz “estamos apodrecendo”.

Não estou achando envelhecer esse horror todo.

Até agora.

Mas a pressão é grande.

Então, outro dia, divertidamente, fiz uma analogia.

O queijo Gorgonzola é um queijo que a maioria das pessoas que eu conheço gosta. Gosta na salada, no pão, com vinho tinto, vinho branco, é um queijo delicioso, de sabor e aroma peculiares, uma invenção italiana, tem status de iguaria com seu sabor sofisticadíssimo, incomparável, vende aos quilos nos supermercados do Leblon, é caro e é podre.

É um queijo contaminado por fungos, só fica bom depois que mofa. É um queijo podre de chique.

Para ficar gostoso tem que estar no ponto certo da deterioração da matéria. O que me possibilita afirmar que não é pelo fato de estar envelhecendo ou apodrecendo ou mofando que devo ser desvalorizada.

Saibam: vou envelhecer até o ponto certo, como o Gorgonzola.

Se Deus quiser, morrerei no ponto G da deterioração da matéria.

Estou me tornando uma iguaria. Com vinho tinto, sou deliciosa.

Aos 50 fui uma mulher para paladares variados, aos 70 sou uma mulher para paladares sofisticados.

Não sou mais um queijo Minas Frescal, não sou mais uma Ricota, não sou um queijo amarelo qualquer para um lanche sem compromisso.

Não sou para qualquer um, nem para qualquer um dou bola, agora tenho status, sou um queijo Gorgonzola.





(Ilustração: James Ensor (1860-1949) - La dame en bleu)

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

SONETO NOJENTO, de Glauco Mattoso

 


Tem gente que censura o meu fetiche:

lamber pé masculino e o seu calçado.

Mas, só de ver no quê o povo é chegado,

não posso permitir que alguém me piche.



Onde é que já se viu ter sanduíche

de fruta ou vegetal mal temperado?

E pizza de banana? E chá gelado?

Frutos do mar? Rabada? Jiló? Vixe!



Café sem adoçar? Feijão sem sal?

Rã? Cobra? Peixe cru? Lesma gigante?

Farofa de uva passa? Isso é normal?



Quem gosta disso tudo não se espante

com minha preferência sexual:

lamber o pé e o pó do seu pisante.



(Centopeia - sonetos nojentos & quejandos)



(Ilustração: Madonna do Rosário - detalhe, c. 1607)

domingo, 3 de novembro de 2024

O TEMPO DIRÁ, de Rosiska Darcy de Oliveira

 



A humanidade sempre foi arrogante e curiosa. Se assim não fosse, não haveria ciência, essa história humana da natureza, contada pelos cientistas no ritmo em que desafiam seus mistérios, a transformam e reinventam. Até meio século atrás acreditávamos que, mais cedo ou mais tarde, seríamos capazes de solucionar qualquer problema. Até descobrirmos que o problema maior éramos nós mesmos.

Ferida narcísica, golpe mortal na autoimagem de onipotência, a noção de limite nasceu dos próprios cientistas e veio para ficar desde que o Clube de Roma anunciou que a natureza não era inesgotável, que mares e rios morriam, que ventos enlouqueciam, os polos derretiam espalhando icebergs à deriva, por obra e graça de nossos estilos de vida e das florestas que amputamos. De lá para cá a ecologia foi senhora da agenda científica e política, da insônia dos ansiosos e das revoltas juvenis.

Limite, uma noção até então estranha ao nosso espírito aventureiro, impôs suas razões. Meio Ambiente e Sustentabilidade entraram no vocabulário corrente, associados a uma correção de rota na trajetória desenfreada da economia e das sociedades.

Como nunca nos consideramos parte da natureza, essa consciência dos limites não afetou, na vida de cada um, a relação predatória com o tempo. Tampouco influiu na poluição dos dias por uma multiplicidade de vidas que transbordam das 24 horas, como se as energias humanas também fossem inesgotáveis e não fosse o tempo não renovável e, como tal, de alto valor.

Talvez a inexorabilidade da morte, essa certeza dolorosa sobre a qual pesa o silêncio, impeça a lucidez sobre o suicídio cotidiano que representa nossa estranha forma de vida.

Com amarga ironia, poderíamos perguntar quantas horas trabalhamos para a compra de um Patek Philippe? O homem mais rico do mundo, que compra foguetes espaciais para desbravar o universo, não encontra tempo à venda em nenhum leilão de raridades. A morte, única detentora desse bem escasso, não vende.

Gastamos nosso tempo como sempre gastamos a natureza, no marco da predação, como se a vida e as energias humanas fossem infinitas. O paradigma da onipotência e da falta de limite, o pressuposto de energias inexauríveis que desencadeou a crise ambiental e climática, é o mesmo que contaminou o cotidiano das pessoas e se traduz no consumo descontrolado do tempo em que o hoje invade o amanhã.

Nas megalópoles instalou-se a tirania da pressa que enche os consultórios de psiquiatras e cardiologistas. Enquanto a longevidade se afirma como um fato, os dias são percebidos como cada vez mais curtos. As horas se desentendem, disputam entre si o primado do inadiável. Vivemos vidas insustentáveis. No duplo sentido da palavra.

Nosso estilo vida resulta da conjunção aleatória de fatores aparentemente díspares que interagem, se retroalimentam e acabam por provocar um resultado desastroso.

A vida privada foi ocultada em seu valor. A sociedade contemporânea ainda não colocou como um direito, para homens e mulheres, a dispor de tempo para a vida privada. Deveria, quanto mais não fosse, em respeito à infinidade de gestos que, desde sempre, as mulheres fizeram para transformar cada um de nós em seres humanos melhores do que os animais selvagens que somos ao nascer. Esses gestos fundadores nunca mereceram um mísero registro nos livros de história da civilização, embora nos civilizar tenha sido a grande aventura educativa da espécie, a mais espetacular transformação da natureza em cultura levada a cabo pelas mulheres.

De difícil solução, a questão da compatibilização da vida privada com o mundo do trabalho, quando os “anjos do lar” já são mais da metade da força de trabalho, foi devolvida à intimidade dos casais onde não encontra resposta.

A vida real, que não perdoa, fez dessa ocultação uma angústia diária de homens e mulheres, ainda que silenciosa e sem lugar de expressão no mundo do trabalho que exerce pressão inclemente por mais e mais performances, rendimentos, cumprimento de metas, missões impossíveis em que o urgente atropela o importante. Pergunta-se mais “como” e “quando” do que “por quê” e “para quê”. Nesse reino da urgência, o estresse é a regra e a somatização o sintoma. Cada um é o contramestre de si mesmo, tanto mais severo quanto mais competitivo.

A fome de tempo está na origem da doença urbana epidêmica, que é a depressão.

Aceleradas são as megalópoles onde todos querem rapidez, ninguém se move, e explodem surtos em engarrafamentos de pesadelo. Quem sonhou com um carro suporta hoje a velocidade de um lombo de burro, enquanto envenena o ar que todos respiram e se envenena com a bílis da irritação.

Mas já vai longe o tempo em que a vida real era balizada por família e trabalho, no cenário das cidades. Ela foi atravessada por outra vida, que se desdobra ao infinito, a vida virtual.

A vida virtual tornou-se parte da vida real e já não é possível separá-las ou estabelecer, entre elas, uma hierarquia. A vida de cada um gira cada vez mais em torno de duas pequenas telas: o computador e o celular. Quem mergulha nessas telas cai, como Alice, do outro lado do espelho. As balizas de tempo não vigoram no ciberespaço. O tempo pode ser inventado, relativizando essa dimensão com que trabalhava o pensamento na construção da ideia mesma de real. O mundo se expande e encolhe ao mesmo tempo. Arte e política se submetem ao novo modo de viver. No país de Proust um concurso literário desafia escritores a um conto de 140 toques. Políticos comprimem em frases amputadas receitas para salvar seus países do caos. Google, o ciberoráculo, responde a qualquer questão, salvo de onde viemos e para onde vamos.

Quem não fala digital nativo passa seu tempo correndo atrás de tecnologias que, mal acabamos de dominar, já mudaram e cobram, em tempo, o preço do próprio tempo que elas prometiam nos poupar. Nos realfabetizamos uma vez por semana. Imigrantes no futuro, não estamos bem situados para entender o ciberespaço e suas zonas de sombra, essa população incorpórea em que qualquer um se desdobra em quantas vidas queira se atribuir. Quem se delicia no anonimato e se quer inimputável, sem lei, sem superego, sem tabu, somos nós mesmos, desmaterializados.

A vida virtual, essa vida a mais, é um rebatimento do mundo real, sem instituições, sem códigos de moral ou ética, de relacionamento entre pessoas, sem os interditos civilizatórios que domesticam a fera que dorme em cada um.

E assim íamos vivendo, aos trancos e barrancos, quando a máquina do mundo subitamente parou. Sem aviso prévio, um vírus desconhecido, contagioso e letal, trancou a população mundial em casa, condenando todos a uma coletiva convivência com o medo da morte. A pandemia do coronavírus derrubou as balizas já conhecidas do tempo e instalou um paradoxo desconhecido, uma vida sem futuro em que a morte e a doença sufocante, omnipresentes, tornavam o limite de cada um visível a olho nu.

A vida tornou-se, em qualquer idade, uma doença terminal. A temporalidade de zapping que moldava nosso cotidiano, fragmentado em múltiplas vidas, desapareceu, e em seu lugar emergiu uma vivência do tempo que ninguém conhecia, de improviso da sobrevivência. O tempo que nos faltava sobrou, ocioso, dedicado sobretudo, a chegar ao dia seguinte. Perplexos, confinados em nossos corpos vulneráveis, apelamos para nossa dimensão incorpórea, abrindo caminho para que a vida virtual primasse sobre a miserável natureza humana.

A vida mudou-se para o ciberespaço, único continente imune ao vírus. E se antes essa vida virtual já tinha vindo se acrescentar a uma acelerada vida real, agora ela reivindicava para si o primado do nosso tempo.

A pandemia deixou como sequela um aumento vertiginoso de tempo passado no ciberespaço. Muitos abandonaram seus espaços de trabalho. As famílias foram impactadas por esse tempo passado em casa de maneira inabitual. Ensaiam-se novos arranjos cotidianos. Que efeitos terá a longo prazo esse solavanco que sacudiu o mundo inteiro? Os tempos que correm, correm para onde? O tempo dirá.



(Ilustração: Salvador Dalí)