O boto é o dom Juan da planície amazônica. Seu prestígio, longe de diminuir com as dissipações do tempo, ganha novos florões com os casos que todo dia lhe aumentam o lendário e a fé de ofício. O papel que lhe atribuem não difere muito das proezas que assinalaram a famosa personagem de Tirso de Molina.
O asqueroso mamífero pisciforme, com aqueles seus dois a três metros de comprimento, com aquele focinho pontiagudo e encabelado, passa por ser um herói mais atrevido, em matéria de amor, do que os tipos de Merimeé. Assim pelo menos o criou ou perfilhou a gente simples do extremo norte.
Em suas Cenas da vida amazônica, descreve-o José Veríssimo: "O boto, a uiara do índio, ocupa largo espaço na sua imaginação, e o nosso interior está cheio de contos maravilhosos sobre este animal. O boto, como a sereia antiga, canta e qual o dela, tem seu canto o dom de seduzir. Ai da donzela que o ouve por noite de luar! Os índios criam que o boto aproveitava-se das ocasiões em que as mulheres se banhavam, para seduzi-las e gozá-las, e anda mais que, revestindo formas de mancebo gentil, vinha, às vezes, por noite alta, partilhar a rede das virgens das florestas, não raro atribuindo a este dom Juan fluvial a gravidez de muitas. Esta crença, o último fato parece comprová-lo, é filha da imaginação da mulher, que porventura procurou assim encobrir uma falta que, ao menos em algumas tribos, atraía sérios castigos. Não há muito tempo que ouvi dizer que um boto, sob formas humanas, fora alta noite render finezas a uma rapariga e os que narravam o fato faziam com a maior boa fé... O boto faz naufragar canoas que vão moças, para se apossar delas. Os olhos deste animal são considerados preciosos amuletos para abrandar corações de amantes, seus dentes preservativo excelente contra dores destes órgãos e contra perigos de primeira dentição. Outra espécie da mesma família o tucuxi, é, segundo acreditam, bastante amigo do homem, a quem socorre e livra travando luta com o boto. Desta crença no boto resulta uma enfermidade nervosa, que acomete homens e mulheres, sob a denominação de uiara".
Analisando o destino particular de cada um dos seres privilegiados pela mitologia zoológica, o erudito e viajado Couto de Magalhães informa que a sorte dos peixes foi confiada a um ser sobrenatural, que se transforma em boto. "Ainda hoje, no Pará, não há uma só povoação do interior que não tenha para narrar ao viajante uma série de histórias grotescas e extravagantes, ora melancólicas e ternas, em que ele figure como herói. É um grande amador das nossas índias; e muitas delas atribuem seu primeiro filho a alguma esperteza desse deus, que ora a surpreendeu no banho, ora se transformou na figura mortal para seduzi-las; ora as arrebatou para debaixo d’água, onde a infeliz foi forçada a entregar-se-lhe. Nas noites de luar, na Amazônia, conta o povo do Pará que, muitas vezes, os lagos se iluminam e que ouvem as cantigas das festas e o bate-pé das danças" com que se celebram as conquistas desse irresistível Lovelace.
Sugestiva por todos os aspectos, a lenda do boto vem atraindo o interesse e o encanto de poetas e escritores, que lhe tem dedicado numerosas páginas.
Raul Bopp tem, a respeito, estes versos:
" – Joaninha Vintém: Conte um causo
– Causo de que? – Qualquer um
– Vou contar causo do boto:
Putirum Putirum
Amor. Chovia
Chuveriscou
Tavo lavando roupa, Maninha
quando boto me pegou.
– Ó Joaninha Vintém
Boto era feio ou não?
– Ai era um moço loiro, Maninha
tocador de violão.
Me pegou pela cintura...
– Depois o que aconteceu?
- Gentes!
Olha a tapioca embolando no tacho.
– Mas que boto safado
Putirum Putirum"
Do mesmo modo que existe vasta tradição oral, conta-se hoje numerosa tradição escrita a respeito das façanhas e sortilégios do boto. Ele tem inspirado poetas, prosadores, pintores e músicos. Waldemar Henrique, apreciado compositor paraense, que está fazendo dos nossos motivos folclóricos o grande encanto da sua música, foi buscar a uma poesia de Antônio Tavernard, poeta amazônico de profunda sensibilidade, inspiração para uma de suas mais expressivas canções:
Ei-la:
"Tajapanema chorou no terreiro
Tajapanema chorou no terreiro
E a virgem morena fugiu no costeiro.
Foi boto, sinhô,
Foi boto, sinhá,
Que veiu tentá
E a moça levou
No tar dançará
Aquele doutô
Foi boto, sinhá
Foi boto, sinhô,
Tajapanema se pôs a chorar
Tajapanema se pôs a chorar
Quem tem filha moça é bom vigiar.
O boto não dorme
No fundo do rio;
Seu dom é enorme.
Quem quer que o viu
Que diga, que informe
Si lhe resistiu,
O boto não dorme
No fundo do rio".
Freud e os seus discípulos teriam um vasto campo de observações na esteira enluarada das aventuras do boto, esse dom Juan lacustre que, sob a capa de cetáceo, deixa as margens solitárias e vai, pelas caladas da noite, surpreender o fácil coração das raparigas crédulas.
Nunes Pereira, que é um grande conhecedor das coisas amazônicas e para quem são familiares quase todos os assuntos da região, explica logicamente a fama que rodeia as aventuras do boto. O conhecido mamífero notabiliza-se, em verdade, pelas suas esquisitas manifestações quando sente o "odor di femina". A crendice não quer saber se os cetáceos dispõem ou não de pituitária. O caboclo tem razão em apontá-lo como um perigosos sátiro fluvial, um fauno das águas. Sentindo o cheiro do corpo feminino, logo se aproxima. E fica excitado se descobre o fluxo menstrual. Conta-se, no interior, que quando as cunhãs se arriscam a viajar "incomodadas", o boto logo descobre o rastro, e agitado, chega e vira as canoas.
A propósito disso, Nunes Pereira forneceu a Valdemar Henrique assunto para uma curiosa canção regional: Manha-nungara (mãe de criação da cunhã) em que o fato aparece velado no mistério da música.
(Vocabulário de crendices amazônicas).
(Ilustração: Bára Puletz - O boto do Rio Amazonas)
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