quarta-feira, 30 de março de 2022
NOCHE OSCURA / NOITE ESCURA, de São João da Cruz
sábado, 26 de março de 2022
A ESTÓRIA DA SALAMANCA DO JARAU, de Érico Veríssimo
quarta-feira, 23 de março de 2022
A MULHER NASCIDA NA SERRA DO SEM FIM, de Marceli Andresa Becker
a mulher nascida na serra sem fim surge nua
não há cor em suas unhas, e os fios dos seu cabelo secam ao natural. a planta dos seus pés é mais áspera que a das mulheres das cidades grandes, porque no fim de semana ela caminha descalça no chão de pedra do quintal. estendendo roupa. comendo uva colhida de uma videira tímida
(tímida porque é uma uva que quase não vinga; ainda assim, há famílias que insistem em cultivá-la)
essas famílias são tristes. há todo um reino de azuis em jogo
–
ela se olha no espelho. tira a calcinha branca de algodão, velha
sei que é velha porque não a imagino mais tendo o aplique de laço que geralmente acompanha o modelo (no meio do laço, no ponto de encontro das curvas do laço, uma pedrinha de strass). o aplique se soltou, por causa do tempo, das tantas lavagens
–
aos domingos, depois de amar e ser amada, ela costuma dormir, de bruços. as pernas semiabertas, imóveis, numa geometria em que poderíamos vislumbrar o ângulo do telhado da casa
quero dizer: o telhado da casa como se o tivéssemos visto antes de sua constituição objetiva, numa fase de pré-realidade
ao anoitecer acorda; levanta-se, caminha em silêncio pelo corredor, pela sala
–
a mulher do interior da serra sem fim lava a calcinha sempre no banheiro, sob esse outro paradigma náutico – quando no vapor o espaço-tempo resgata o mar como desolação. e a certa altura do banho nenhum limite separa o que é o vapor da umidade típica de sua respiração e o que é o vapor da água do chuveiro
–
por vezes uma pássara prenha entra em algum dos vãos do beiral do telhado. com o ninho já construído, ela se instala e põe seus ovos. em períodos de chuvas mais intensas, de ventos mais fortes, é comum que um dos filhotes caia – recém-nascido, horrível. roxo. sem penas, só cabeça e bico
no dia seguinte a mulher varre o quintal e junta o cadaverzinho com a pá. e ocorre que, em meio às cascas de uvas comidas (um montante delas, reunidas num canto, entre folhas secas), em meio a essa escola rude de tinturaria do que foi vindima
e fome
esse cadaverzinho se torna ainda mais roxo; passa despercebido
–
o banho demora em geral uns dez minutos; é um banho rápido. os chuveiros, muito antigos
ao longo desse tempo ela lava a calcinha
molhada de sêmen. ao lavá-la, gosta de pensar que
em vez de descer com a água pelo ralo – o sêmen, tal como o álcool, volatiliza-se, dissipando-se com as gotículas de vapor do ambiente
ela toma banho. e respira fundo, fundo, sentindo como se o homem que há pouco penetrou seu sexo estivesse agora penetrando seu pulmão
depois
com a toalha enrolada no cabelo, como um animal inaudito – uma espécie mítica, meio mulher, meio rinoceronte (a toalha enrolada como um corno imenso no centro da cabeça)
anda. abre a porta de acesso aos fundos. pega um prendedor da cestinha – e, de pés descalços, ainda morna e predatória, pendura a calcinha no varal
–
pernoitam e amanhecem nos varais, as calcinhas. as mulheres recolhem-nas perto do meio-dia, depois do período do vapor
vestem-nas. passam a tarde com elas.
à noite surgem nuas, e os homens amam-nas e dizem que seus grandes lábios cheiram a cerração
–
pela manhã, o sol aparece aos poucos. com seus cabelos volumosos, ondulados, as mulheres mimetizam em menor escala a cena da travessia da claridade nas copas das árvores
a cerração imanta os quartos, imanta os móveis e as cortinas; e os mortos participam desse processo todo, no espaço; em silêncio
de fora, a certa distância, a casa nessas manhãs mal pode ser vista. o contorno dos telhados e das chaminés se perde
–
na casa fabula-se outra casa – em ruínas
—
(caderno da serra sem fim, excerto de prosa poética maior, narrativa em trabalho)
(Ilustração: Niceas Romeo Zanchett - mulher na hora de dormir -1980)
domingo, 20 de março de 2022
REALIDADE DEMENCIAL, de Ernesto Sábato
quinta-feira, 17 de março de 2022
THE MUSIC OF VILLA-LOBOS / A MÚSICA DE VILLA-LOBOS, de Olga Cabral
Someone is speaking a lost language.
It is the music of Villa-Lobos.
I try to remember: where was I
born? And from what continent
untimely torn? I might have been
a priestess among the caymans
guarding the eye-jewel of the
crocodile god. I might have sailed
orinocos of diamonds, seas of coconuts,
leased the equator for life and learned
my ancestral language.
But I have only some old sleeves of rain
in a trunk with spiders
to remember my ancestors by.
They have left me
nothing, and I have forgotten
that island of my birth
where the sun in his suit of mirrors
was seen once only with my vast fetal eye.
But in the music of Villa-Lobos
a god with a tower of green faces
comes striding across cities
of permafrost, and I am summoned
once again to the jaguar gardens
guarded by waterfalls
where the hummingbird people are at play
far from the cold auroras of the north.
Beyond modernity, we are warned
by placards in two languages that say
the same thing differently. In the yellow
wood where two roads diverge, we choose
both, not from arrogance but from
indecisiveness, which, like riding
two horses at one time, requires long
legs, strong thighs, and careless good
nature. The world flicks by, each leaf
magnified, as we sample this new bar
soap, that breakfast sandwich. Placards in
two languages praise soft drinks and party
politics. The world flicks by and bites
of speech elude their diagrams to hover
in the yellow wood. It is late and soon
the world will be different.
Tradução de Margarida Vale de Gato:
Alguém fala uma língua perdida.
É a música de Villa-Lobos.
Procuro lembrar-me: onde foi
que nasci? E de que continente
fora de tempo me dividi? Podia
ter sido vestal entre caimões
velando a gema do olho do deus
crocodilo, velejar talvez
por orinocos de diamantes, mares
de cocos, podia assumir toda a vida
o trespasse do equador para aprender
a minha língua ancestral.
Mas tenho só algumas mangas de chuva
num velho baú de aranhas
para lembrar os meus antepassados.
Não me deixaram
nada, e esqueci
essa ilha onde nasci
onde vi uma vez só
com meu vasto olho de feto
o sol no seu fato de espelhos.
Mas na música de Villa-Lobos
um deus com uma torre de verdes frontes
cruza a largos passos cidades
de piso gelado, e mais uma vez
convocam-me ao jardim dos jaguares
guardado pelas cascatas
onde brinca o povo dos colibris
longe das frias auroras do norte.
Para lá da modernidade, avisam-nos
placards em duas línguas a dizer
o mesmo de maneira diferente. No bosque
amarelado dividem-se duas estradas. Escolhemos
ambas, e não é por arrogância mas
por indecisão, coisa que, como montar
simultaneamente dois cavalos, requer pernas
compridas, coxas fortes, falta de complexos, boa
têmpera, o mundo passa e cintila, cada folha
ampliada, enquanto tomamos o novo elixir,
em loção, a sandes do pequeno-almoço. Placards
em duas línguas louvam gasosas, campanhas
políticas. O mundo passa e cintila e arranha
frases que driblam os diagramas, para pairarem
no bosque amarelado. É tarde e cedo
o mundo será diferente.
Tradução de Wagner Mourão Brasil:
Alguém fala uma língua perdida.
É a música de Villa-Lobos.
Tento lembrar: onde foi que
nasci? E em que continente
precocemente estraçalhado? Devo ter sido
uma sacerdotisa entre os caimães
velando a jóia que é o olho do
deus crocodilo. Devo ter navegado
por orinocos de diamantes, mares de cocos,
aluguei para sempre o equador e aprendi
minha língua ancestral.
Mas só tenho umas velhas capas de chuva
num baú cheio de aranhas
para lembrar meus ancestrais.
Eles não me deixaram
nada, e eu me esqueci
que aquela é a terra de meu nascimento
onde o sol em seu terno de espelhos
avistei por uma só vez com meu olho de feto.
Mas na música de Villa-Lobos
um deus com uma torre de verdes fachadas
com pressa avança pelas cidades
de sobsolo congelado, e sou de novo
convocada aos jardins do jaguar
vigiada por quedas d’água
onde as gentes dos beija-flores se divertem
longe das auroras frias do norte.
Para além da modernidade, somos avisados
em duas línguas pelos cartazes que dizem
a mesma coisa de modo diferente. No bosque
amarelo onde dois caminhos divergem, escolhemos
a ambos, não por arrogância mas por
indecisão, o que, como montar
dois cavalos num só tempo, exige
longas pernas, coxas fortes, e descuidada boa
disposição. O mundo dá uma espiada, cada folha
ampliada, enquanto provamos essa nova sopa
de bar, o sanduíche do desjejum. Cartazes
em duas línguas elogiam bebidas e políticas
de partido. O mundo dá uma espiada e pedaços
de discurso fogem de seus gráficos para perambular
pelo bosque amarelo. É tarde mas logo
o mundo será diferente.
(Ilustração: Vicente Júnior - Vila Lobos)
segunda-feira, 14 de março de 2022
AS EVIDÊNCIAS DO COTIDIANO, de Marilena Chauí