Maiakóvski, nascido em julho de 1893, filiou-se ao Partido Social-Democrata dos Trabalhadores Russos, futuro Partido Bolchevique (depois PCUS) em 1908, aos quinze anos. Foi preso em 1910 e, após a Revolução de Outubro de 1917, trabalhou para o governo soviético, primeiro criando peças de incentivo durante a guerra civil – as famosas “Okna ROSTA” –, depois desenhando cartazes para campanhas sanitárias, entre outros. ROSTA é o acrônimo da Agência Telegráfica Russa, e okna significa janelas.
Com o propósito de informar uma população, em sua maior parte, analfabeta em um vasto país, os postos da Agência Telegráfica Russa passaram a difundir notícias e propaganda na forma de cartazes colados em suas janelas. De início contendo apenas os textos de telegramas militares com novidades do front, logo passaram a contar com frases e desenhos dos artistas cubofuturistas, que os criavam em ritmo diuturno.
O trabalho de criar os cartazes seria o mote central de “A aventura insólita que viveu V. Maiakóvski quando de sua estada na datcha”[1], poema que traz à tona, entre outras leituras possíveis, as contradições insolúveis entre Revolução e arte revolucionária, já a partir de seu título. Escrito no auge da guerra civil que contrapunha a Revolução à contrarrevolução (1920), refere-se, em primeiro lugar, à “aventura”, não do povo russo, ou da classe operária, ou do Exército Vermelho, nem ao menos de um batalhão, mas do próprio poeta. Tal aventura é uma “estada na datcha”, ou seja, um fim de semana no campo. Trata-se de peça em que Maiakóviski aparece como um trabalhador braçal a serviço da revolução proletária (a criar intermináveis cartazes populares para a ROSTA), mas, mesmo nessa condição, é uma espécie de gigante capaz de enfrentar o próprio sol.
O sol simboliza, no texto, o ócio, o ócio dourado de alguém (pois o astro é antropomorfizado, recebendo forma humana) que não faz nada exceto “vagar entre as nuvens”, dia após dia, enquanto o poeta se cansa (e se sente afrontado, como se verá) a criar cartazes para a Revolução.
O ocaso ardia em cento e quarenta sóis,
em julho deslizava o verão,
fazia calor,
o calor ardia
assim era na datcha.
A colina de Púchkino acorcundava-se
na montanha de Akulov,
E ao pé da montanha –
havia uma aldeia,
encurvada de tetos de cortiça.
E atrás da aldeia
havia um buraco,
e para esse buraco, com certeza,
descia o sol, toda vez,
lentamente e fielmente.
E no dia seguinte
de novo
a inundar o mundo
erguia-se o sol escarlate.
E dia após dia a enfurecer-me terrivelmente
isso começou.
E assim uma vez enfureci-me tanto
que tudo desbotou de medo,
à queima-roupa eu gritei ao sol:
‘Desce!
chega de vadiar nesse calor tórrido!’
Eu gritei ao sol: ‘Parasita!
Tu estás aconchegado nas nuvens,
mas aqui, sem saber quando é verão e quando é inverno
é um tal de senta! desenha cartazes!’ [2]
The sunset blazed like sixty suns.
July was under way.
The heat was dense,
he heat was tense,
upon that summer’s day.
The slope near Pushkino swelled up
into Akulov Hill,
while at the foot
a village stood,
roofs like a warped-up frill.
Behind the village
was a hole;
by evening, sure though slow,
into that hole the sun would roll,
to sleep, for all I know.
And then,
next morning,
crimson-clad,
the sun would rise and shine,
till finally it made me mad —
the same each blasted time!
Till once so crazy I became
that all turned pale with fright.
‘Get down, you loafer!
to the sun’
I yelled with all my might.
‘Soft job, sun’, I went on to shout,
‘this coming up to roast us,
While I must sit, year in, year out,
and draw these blooming posters!’ [3]
A irritação do poeta leva-o não apenas a desafiar o próprio sol, mas a fazê-lo de maneira irônica, convidando-o para um chá (outra forma de ócio, de lazer ocioso):
‘Ouve’, testa de ouro,
‘que tal deixar os negócios de lado
e vir tomar um chá comigo?’
‘Look here’, I cried, ‘you Goldy-Head,
it’s time you changed you ways.
Why not step in for tea’?
Como acontece nas fábulas, o sol ouve. Ouve e reage. E reage aceitando o convite, encaminhando-se para a datcha de Maiakóvski, que, de início, sente pavor e espanto, mas, em seguida, por meio de um giro narrativo, em que a presença próxima do sol parece confundir a lucidez do narrador, consegue conversar “calmamente” com o astro sentado à sua mesa.
O que eu inventei! Estou perdido!
Para mim, de boa vontade,
ele mesmo,
abrindo seus largos passos-raios
vem à terra.
Quero não mostrar meu susto
e dou uns passos para trás.
Seus olhos já estão no jardim.
Já está atravessando o jardim.
Pelos postigos, pelas portas,
pelas frestas entrando,
a massa do sol desaba,
irrompe;
reconduzindo o fôlego
disse com voz de baixo:
‘Eu rechaço meus fogos
pela primeira vez desde a criação’.
‘Tu me chamaste? Manda vir o chá,
poeta, manda vir a geleia!’
com lágrimas nos olhos devido ao calor
eu perdi a cabeça
e [disse] a ele – [olhando] para o samovar:
‘E então, astro, senta!’
O diabo atiçou minha ousadia
a gritar com ele, – e eu, confuso
sentei no cantinho do banco
com medo que a coisa fosse piorar.
Mas uma estranha claridade do sol
emanou – e esquecendo
qualquer solenidade, sento a falar
com o astro calmamente.
What have I done!
Corona, beams and all,
itself,
with giant strides the sun
is coming at my call.
I try to cover up my fear,
retreating lobster-wise;
it’s coming, it’s already near,
I see its white-hot eyes.
Trough door and window,
chink and crack
it crammed into the room.
Then stopped
to get its hot breath back,
and blimey, did it boom!
‘I’m changing my itin’rary
the first time since creation.
Now, poet, out with jam and tea,
else why this invitation ?’
Myself scarce fit to match two words,
half-barmy with the heat,
I somehow nodded kettlewards:
‘Come on, orb, take a seat!’
The hollering won’t come to good.
My impudence be dashed!
Thought I and sat as best I could
upon the bench, abashed.
But strange to say, with every ray
I felt the stiffness ease,
and cramped formality gave way
to frankness by degrees.
Maiakóvski está agora frente a frente com o sol, ou seja, o grande astro cara a cara com a grande personalidade do poeta. Ele torna a reclamar do excesso de trabalho para a “ROSTA que me devora” (“что-де заела Роста”). A resposta do sol, por sua vez, dá mais uma volta no parafuso de surpresas que é a narrativa do poema: o sol pergunta se Maiakóvski acredita ser fácil brilhar. E para provar que não é, desafia o poeta a fazê-lo:
Disso, daquilo, falo eu,
de como a ROSTA me comeu a mordidas
e o sol: ‘Bem, não te aflijas,
olha para as coisas simplesmente!
Ou pensas que é fácil para mim brilhar? Vamos, experimenta!
E aí vais – é preciso ir,
vais e brilhas, ao mesmo tempo!’
I spoke of this and spoke of that,
about the beastly ROSTA
‘There, there’, he said, ‘don’t sulk, my lad,
there’s things worse than a poster.
You s’pose it’s easier to shine all day up there? Just try!
But since the job’s been earmarked mine
my motto’s do or die!’
E o poeta o faz. É de surpreender sua franqueza e sua falta de romantismo revolucionário ao se referir ao trabalho de propaganda em prol da Revolução. Mas isso se mostra inevitável numa leitura mais aprofundada. Apenas o mais cego dos intérpretes acreditaria que cartazes feitos de afogadilho para camponeses poderiam criar a oportunidade para um grande artista produzir o melhor de si. Trata-se do contrário: o trabalho para a Revolução cerceia o grande poeta, quase o impede de “brilhar” em seus versos.
‘Vamos, poeta,
vamos raiar, vamos cantar
no mundo de trastes cinzentos.
Eu, sol, verterei o que é meu,
e tu, o que é teu, os versos’.
A parede das trevas,
a prisão da noite,
sob o sol caíram, ambas,
De versos e luzes uma profusão
brilhe a toda!
‘Come, poet, up!
Let’s sing and shine,
however dull the earth is.
I’ll pour the sunshine that is mine,
and you – your own, in verses!’
The walls of gloom, the jails of night
our double salvo crushed,
and helter-skelter, verse and light
in jolly tumult rushed.
“A parede das trevas,/a prisão da noite/ caíram”: elas podem, se se quiser, ser tomadas como metáforas da Revolução. Mas o poema, na verdade, não sustenta essa interpretação. Primeiro, porque, no caso do sol, não se trata de revolução, mas de luz física: “as paredes de trevas da prisão da noite” de fato sucumbem à sua luz. Segundo, porque no caso do poeta se trata de fazer brilharem seus versos apesar de tudo, por exemplo, tendo de criar cartazes “devoradores” para a ROSTA: “Vamos, poeta!”. Não se cogita, então, de fazer tais cartazes “brilharem”, terem grandeza etc., mas de conseguir manter a grandeza do poeta a despeito deles: “Vamos cantar e brilhar/ no mundo de trastes cinzentos”. O termo original, “хлам”, que também pode ser traduzido por lixo, permite uma versão ainda mais dura deste verso: “Mundo de lixo cinza” – no qual “Eu, o sol, verterei o que é meu, e tu, o que é teu, os versos”. Em suma: crie versos luminosos no mundo escuro. Porque, como aqui explicitado pelo sol e como reiterado pelo narrador ao final, é isso o que ambos devem simplesmente fazer (fica implícito que tal obrigação advém do fato de o sol ser o sol do mesmo modo que Maiakóvski deve ser, portanto, um poeta “iluminado”):
Светить всегда,
светить везде,
до дней последних донца,
светить -
и никаких гвоздей!
Вот лозунг мой и солнца! [4]
Numa tradução bastante literal:
Brilhar sempre,
brilhar em toda parte,
até secar o último dos dias,
brilhar –
e sem desculpa!
Esse é o meu lema e do sol!
Em outras três diferentes traduções:
Brilhar sempre,
brilhar em todo lugar
até os últimos dias do guerreiro
brilhar –
e sem desculpa nenhuma!
Eis o meu lema –
e do sol. [5]
Brilhar sempre,
brilhar em toda a parte,
até ao dia em que a fonte da vida se esgote,
brilhar –
e é tudo!
É o nosso lema – meu
e do sol! [6]
Shine up on high,
shine down on earth,
till life’s own source runs dry –
shine on –
for all your blooming worth,
so say both sun and I! [7]
De todas as traduções consultadas, a de Augusto de Campos é a que menos dá a conhecer e a reconhecer o poema. Eu me deterei aqui em sua última e significativa estrofe, porque, neste caso, a parte fala pelo todo.
Brilhar pra sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
gente é pra brilhar,
que tudo o mais vá pro inferno,
este é o meu slogan
e o do sol. [8]
Em primeiro lugar, Campos inclui no poema metáfora que um dos maiores metaforizadores da poesia moderna, o próprio Maiakóvski, nele não introduziu. Mesmo porque é banal: “brilhar como um farol”. Em russo, não há farol algum no texto. E “brilhar como um farol” representa equívoco semântico, pois implicaria diminuição do sol, justamente quando o poema afirma e reitera a ideia de brilhar acima e apesar de tudo. Além disso, Maiakóvski não se propõe a ser, nesse poema, “um farol da Revolução”, bem ao contrário. O “Farol da Revolução” seria, a partir de 1922 e, sobretudo, nos anos 1930, Stalin, que sequer é mencionado nesta peça. Em termos mais gerais, sua dicção não é pop, como aqui se leva a crer, entre outras coisas, pela irrupção de ninguém menos do que Roberto Carlos em plena estepe russa: “que tudo mais vá pro inferno” (Jovem Guarda, 1965). A começar do original.
A tradução é um diálogo e não um monólogo, o que não a limita ao campo da estética, mas a insere também no campo da ética. Desconsiderar a língua (ou o sentido) do original é tão questionável quanto desconsiderar sua linguagem (ou sua forma), embora esse equilíbrio ora proposto seja difícil de ser alcançado por qualquer tradutor, sempre em desvantagem. A desconsideração de Augusto de Campos, no caso desses versos, está na sequencia de frases banais, cuja “síntese” é nada menos do que esta: “gente é pra brilhar”. Ora, assim como não há nenhum “farol”, não há “gente” nenhuma no poema (o original traz, no último verso, o possessivo “мой”, meu, mas nenhum termo relativo a qualquer grupo ou coletivo). Trata-se de um “cara a cara” entre Maiakóvski e o sol. Trata-se da arte de um grande poeta, que ele, por sua própria grandeza, deve ter a capacidade de fazer “brilhar sempre”, ou seja, não importa em quais circunstâncias – por exemplo, fazendo cartazetes para a ROSTA.
Campos, por outro lado, aproxima-o, ainda, do jargão publicitário com a escolha equivocada da palavra slogan, quando o original fala em lema (mote, palavra de ordem), que não expressa mera propaganda, mas convicção (“лозунг”, traduzido na maioria das versões inglesas por motto). Slogan é uma frase publicitária, breve e incisiva, com fins persuasórios, exclusivamente comerciais. Por exemplo, “Coca-Cola é isso aí” ou “Se o bar é bom o chopp é Brahma”. Retomando: Maiakóvski está sendo irônico, pois lema é uma palavra do campo da política. E seu “lema” não poderia ser mais individualista: “brilhar sem desculpa”. Não importa nada, nem a ROSTA nem, no limite, a própria Revolução, pois o brilho, neste caso, é individual – como o do sol a brilhar solitário e indiferente a tudo. Brilhe e ponto.
Para evocar o famoso antagonismo Sartre-Camus, Maiakóvski é, neste caso, camusiano: “Entre minha mãe e a Revolução, fico com minha mãe”. Ou com minha poesia. O final do poema não é, portanto, – como Campos faz parecer – um arrazoado afetado de um “astro” pop alardeando brilhos fátuos para uma plateia espremida: “gente é pra brilhar”. O verso veio de uma letra de Caetano Veloso, mas de modo incompleto, truncado, o que o faz perder inclusive o sentido dado pelo tropicalista: “Gente é pra brilhar/ Não pra morrer de fome” (Bicho, 1977). O poema de Maiakóvski é – muito ao contrário do “monólogo” superficial augustiano – a afirmação corajosa de uma grande individualidade poética quando tudo isso, ou seja, ser afirmativo, corajoso e individualista, já se tornara francamente incômodo em um país comunista (além de incomodado por demandas como as da ROSTA) e começava a se tornar perigoso. [9]
Notas
[1]
Agradeço a Luis Dolhnikoff as sugestões que fez ao texto e à interpretação do
poema.
[2]
Tradução de Aurora F. Bernardini.
[3]
Tradução de Dorian Rottenberg.
[5]
Aurora F. Bernardini.
[6]
Manuel de Seabra.
[7]
Dorian Rottenberg.
[8]
Cem sóis de Maiakovski em um histórico verão russo.
[9]
Augusto de Campos, em todo caso, ao que tudo indica, parece ter traduzido
também a partir do inglês. Isto explicaria, ainda que jamais pudesse desculpar, o
“tudo mais vá pro inferno” – que, se não existe no poema de Maiakóvski,
encontra-se nesta tradução: “Always to shine, / to shine everywhere, / to the very deeps of the last days, / to shine – / and to hell with everything
else! / That is my motto – / and the sun’s!” (Max Hayward e George Reavey).
(Ilustração: Ekaterina Petrova-Trotskaya - Leningrado)