sexta-feira, 31 de maio de 2019

NOS OLHOS DO INTRUSO, de Rubens Figueiredo






Não lembro a primeira vez. Mas aqui e ali comecei a ouvir comentários: aquela é a cidade que interessa, é onde as coisas acontecem, o futuro fugiu para lá. Advertências que repetiam a verdade mais simples, não há como negar. Hoje, parecem ressoar a voz de um oráculo. Mas era uma verdade que entendi mal, que me apressei em traduzir totalmente errado, nos termos da euforia de um menino, ou até de um tolo. 

Talvez eu pudesse ter ficado como estava, talvez o futuro ainda dormisse bem longe até hoje, se naquela noite eu não tivesse ido ao teatro. Três atores representavam vários papéis e a história da peça quase não importava. O espetáculo consistia muito mais na velocidade e na perfeição das metamorfoses dos atores. Em poucos minutos, eles trocavam de roupa, peruca e maquiagem, encarnavam outra voz, outra personalidade, e tudo com um vigor que só podia nascer de um tipo de vida. 

No final da peça, algumas fileiras à minha frente, aconteceu. Quando as pessoas se levantaram, entrevi, no intervalo das cabeças, um homem parecido com alguém que eu conhecia. Talvez fosse a dança de tantos rostos a meu redor, mas o efeito era o de muitas feições distintas convergindo e se sobrepondo no ar transparente. 

Uma desconfiança incômoda me obrigou a olhar melhor e então deparei com um sujeito igual a mim mesmo, apenas um pouco mais novo. 

Sacudido por uma espécie de insulto, experimentei o temor de estar sendo sorrateiramente substituído. 

Com os olhos naquele homem, esqueci que devia continuar andando. 

As pessoas atrás de mim, na minha fileira, me repreenderam com resmungos. Tentei me livrar do meu estupor, mas o máximo que consegui foi observar o homem da maneira mais discreta que podia. As fileiras escorriam todas na mesma direção, o público escoava ligeiro para o funil da saída e logo o perdi de vista. 

Se uma coisa deriva sempre de outra, se todo fato espalha efeitos em todas as direções, por que não ver no que se seguiu uma continuação, um sistema? Podia parecer um desses acasos bobos, uma dessas situações tão corriqueiras que nem paramos para pensar. Em um intervalo de semanas, pelo menos três amigos se aproximaram de mim para dizer que me tinham visto em lugares que eu não conhecia, locais aonde eu nunca fora, fazendo coisas que eu absolutamente não podia ter feito, porque estava ocupado, em outra parte. 

Na primeira vez, juro, tentei negar. Depois, diante da alegre certeza da pessoa à minha frente, me resignei a ouvir em silêncio. A seguir, de uma maneira que eu mal percebi, passei pouco a pouco a acreditar que era eu mesmo que ia àqueles lugares e punha em prática aquelas ações. Eu até sorria e pelo menos uma vez cheguei a inventar explicações adicionais, coerentes, que vi serem bem aceitas pelo meu ouvinte. 

Outros talvez não prestassem atenção. Outros talvez não encadeassem uma coisa à outra. Sei que, mesmo na vida mais banal, há lugar para tudo. 

Mas, um dia, no centro da cidade, um homem completamente desconhecido me cumprimentou com familiaridade. O sinal fechou e, enquanto eu atravessava a rua, o homem, andando em sentido contrário, acenou ligeiro com a mão. Receoso de me mostrar mal-educado com algum conhecido, correspondi ao aceno. O sinal abriu, os carros e ônibus andaram, bloquearam minha visão e eu o perdi na multidão da calçada oposta. 

Tempos depois, eu vinha andando distraído pela rua. Quando dei por mim, uma pessoa que não pude reconhecer me dirigia palavras apressadas. Mencionou de passagem um nome estranho para mim como se fosse um amigo comum. Depois pediu desculpas pela pressa, se despediu e foi embora. 

Algo desse tipo se repetiu ainda, talvez em um espaço de alguns meses, duas ou três situações que outras pessoas poderiam interpretar como encontros fortuitos com lunáticos, do tipo que prolifera nas ruas, eu sei. Mas a minha lua é a mesma de todo mundo. 

Aos poucos, as atividades que esses desconhecidos atribuíam a mim começaram a me parecer familiares. As pessoas que eles mencionavam chegaram a se tornar íntimas para mim, com seus nomes e suas ambições cotidianas. Tudo ia se incorporando à minha memória. O meu passado se expandia com um novo elenco de pessoas e fatos, ao mesmo tempo em que o meu presente também se ampliava, numa espécie de movimento de conquista. Minha vida abarcava muitas outras vidas e assim eu conseguia me sentir mais vivo do que nunca. 

Um dia, numa rua do centro, tomei coragem. Arrisquei cumprimentar alguém que eu, com absoluta certeza, não conhecia. Após um instante de surpresa bem natural, nas circunstâncias, a pessoa respondeu ao meu cumprimento, de forma discreta. Sua expressão deu a entender que, naquele momento, não tinha tempo para conversar comigo como gostaria, e seguiu adiante. 

Por que pedir mais? Vi naquilo uma confirmação, e não poderia ser de outro modo. Agora, eu olhava o mundo à minha volta com o ardor de uma simpatia desconhecida. Via as pessoas entrando e saindo pelas portarias dos prédios, contemplava a fila de cabeças voltadas para mim nas janelas dos ônibus e sabia que no mundo ninguém mais seria para mim um estranho. 

Vivi assim um tempo, até que, certa manhã, o telefone me acordou. A voz do outro lado avisou que uma determinada pessoa havia morrido. Citou um nome, que não reconheci nem me dei ao trabalho de memorizar. Mas anotei a hora e o lugar do funeral. A voz ainda lamentou que ele tivesse morrido ainda jovem, e garantiu que “todos” iriam lá. 

Cheguei em cima da hora, um pouco atrasado até. Achei que por isso ninguém se aproximou para me cumprimentar. Raciocinei que temiam perturbar a cerimônia. Uma música de órgão descia gelada das paredes e só um segundo antes de o caixão ser fechado distingui as feições do defunto. 

Foi rápido, uma sombra correu sobre o véu transparente. Mas creio ter reconhecido o homem que eu, nem sei quanto tempo antes, vira no teatro. O homem igual a mim. Com a tampa fixada em seu lugar, o caixão deslizou por uma esteira na direção de uma porta e desapareceu no crematório. 

Antes que eu me refizesse da surpresa, todos haviam ido embora sem sequer se despedir de mim. Em poucos dias, as coisas começaram a mudar. 

Encostei no balcão de uma lanchonete, pedi um cafezinho, na esperança de que o garçom conversasse um minuto comigo, sobre o tempo, o trânsito, o que fosse. Mas ele logo virou a cara para o meu sorriso, como se estivesse diante de um estranho, um intrometido. 

A rigor, aqui e ali, eu descobria motivos para pensar que me consideravam um importuno. Em lugares onde eu esperava ser recebido como um irmão, me rechaçavam com a frieza e a hostilidade educada que só se descarrega sobre os intrusos. Mesmo nos ambientes que, antes, eram para mim perfeitamente familiares - meu trabalho, minha vizinhança, meus colegas - eu me via tratado como alguém indesejável. Foi nessa altura que resolvi me mudar para uma outra cidade, a cidade de que eu ouvia falar com tanta simpatia. 

Tratei de me adaptar o mais depressa possível. Tentei refazer minha vida, reconstituir à minha volta um convívio humano que me justificasse. 

Mas isso se revelou difícil. Pelo menos, eu não era tratado como um invasor. Acho que eu poderia ter vivido assim bastante tempo, sem maiores problemas. Mas agora isso não será possível. Há poucos dias, em uma barbearia, rodeado de espelhos que corriam diante de mim e às minhas costas, entendi o que era o futuro e por que ele estava nesta cidade. 

O barbeiro terminou de aparar meu cabelo, ergueu dos meus ombros o pano branco com um floreio do braço e então me levantei. Quando contemplava a mim mesmo no espelho, reparei com o canto dos olhos o reflexo de um homem, umas três cadeiras à esquerda. Ele me fitava com insistência. Tinha um ar quase desnorteado, na verdade, e achei que já devia estar me observando desde algum tempo. 

Por instinto, desviei o rosto pois o homem me pareceu agitado. Fingi que não o via e estou certo de que o deixei convencido disso. Mas os espelhos permitiam olhares diagonais. Por esse ângulo, pude notar que o sujeito era extraordinariamente parecido comigo. Apenas um pouco mais velho. 

Fui para a rua. Forcei minhas pernas a caminhar e vi a calçada fugindo para trás sob os meus passos. Sei agora por que vim para esta cidade. O olhar admirado do homem na barbearia foram as boas-vindas e também uma despedida para mim. Já posso sentir o calor das chamas estalando. Mas, até que chegue a minha vez, esse sujeito ainda vai ouvir falar muito de mim. 



(Cem melhores contos brasileiros do século



(Ilustração: Shupliak Oleg; optical illusion paintings)






terça-feira, 28 de maio de 2019

Z, de António Maria Lisboa



  


As formas, as sombras, a luz que descobre a noite

e um pequeno pássaro



e depois longo tempo eu te perdi de vista

meus braços são dois espaços enormes

os meus olhos são duas garrafas de vento



e depois eu te conheço de novo numa rua isolada

minhas pernas são duas árvores floridas

os meus dedos uma plantação de sargaços



a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim.





(Ossóptico e Outros)



(Ilustração: Gustav Klimt)



sábado, 25 de maio de 2019

FISSURA DE JUNK, de William S. Burroughs






Numa manhã de abril, acordei meio fissurado. Fiquei ali deitado, observando as sombras no teto de estuque branco. Me lembrei de um tempo muito remoto, quando eu deitava ao lado da minha mãe e ficava olhando as luzes da rua deslizarem do teto pras paredes. Senti uma saudade aguda dos apitos de trem, do som de piano ecoando na rua, de folhas secas. 

Fissura de junk, quando moderada, sempre me traz de volta a magia da infância. “Nunca falha”, pensei. “É que nem um pico. Será que os outros junkies também curtem essa maravilha?” 

Fui ao banheiro tomar um pico. Há tempos andava espetando a mesma veia. A agulha entupiu duas vezes. O sangue escorria pelo meu braço. O junk se espalhou pelo meu corpo, uma injeção de morte. O sonho acabara. Fiquei olhando o sangue escorrer do cotovelo pro pulso. Senti uma súbita compaixão pelas veias e tecidos violados. Enxuguei com carinho o sangue do meu braço. 

— Vou cair fora disto — eu disse em voz alta. 

Preparei uma solução de ópio e pedi ao Ike pra não aparecer por uns dias. Ele disse: — Tomara que você consiga, garoto. Tomara que você caia mesmo fora. Quero ficar paralítico se não estiver sendo sincero. 

Em quarenta e oito horas a provisão de morfina no meu corpo se exauriu. A solução que eu havia preparado mal dava pra controlar a fissura. Tomei tudo, com duas pastilhas de nembutal, e dormi várias horas. Quando acordei, minha roupa estava empapada de suor. Meus olhos lacrimejavam e ardiam. O corpo todo estava dolorido e sensível. Me virei na cama, arqueando as costas e esticando pernas e braços. Daí, puxei as pernas e os joelhos e enfiei as mãos unidas entre as coxas. A pressão das mãos disparou o gatilho tênue de um orgasmo típico da fissura. Levantei e fui trocar de cueca. 

Ainda tinha um pouco de ópio no fundo da garrafa. Dei um último gole e saí pra comprar quatro tubos de tabletes de codeína. Tomei a codeína com chá quente e me senti melhor. 

Ike disse: — Você está indo rápido demais. Me deixa preparar uma solução pra você. — Eu o ouvia na cozinha, irradiando o processo: — Um pouquinho de canela, pro caso dele começar a vomitar… um pouco de salva pra caganeira… uns cravos pra limpar o sangue… 

Eu nunca tinha provado nada tão ruim. Mas a beberagem baixou minha fissura a um nível tolerável e com isso eu me sentia meio de barato o tempo todo. Não era um barato de ópio; era um barato da privação. Junk é uma inoculação de morte que mantém o corpo em estado de emergência. Quando se suspende o junk, a emergência continua. As sensações se aguçam, o viciado adquire consciência dos seus trâmites viscerais num grau nada confortável, o movimento peristáltico torna-se incontrolável. Seja qual for a sua idade, o viciado em processo de desintoxicação se sujeita aos excessos emocionais de uma criança ou adolescente. 

Depois de engolir por três dias a beberagem do Ike, caí no álcool. Eu nunca bebia quando estava no junk ou na fissura de junk. Porém, beber ópio é diferente de se aplicar o pozinho branco. Dá pra misturar ópio e bebida. 

No começo, eu só bebia depois das cinco da tarde. Uma semana mais tarde, eu já estava bebendo às oito da manhã; passava o dia e a noite bêbado, e amanhecia de porre no dia seguinte. 

Toda manhã, ao acordar, eu mandava ver benzedrina, sanicin e uma pedrinha de ópio, com café preto e um trago de tequila. Daí, deitava de novo e tentava reconstituir a noite anterior, e o dia também. Em geral, me dava um branco a partir do meio-dia. Às vezes, a gente acorda de um sonho e pensa: “Meu Deus, será que eu fiz mesmo isso?”. A fronteira entre o dizer e o pensar se torna ambígua. “Eu falei aquilo ou só pensei?”. 

Não é comum um junky largar o bagulho por decisão própria. Eu nunca tinha largado antes, a não ser quando não conseguia nenhum tipo de junk e tinha que jogar a toalha. Ninguém consegue se rebaixar tanto quanto um junky que se curou sozinho. 

Depois de dez dias de tratamento, minha deterioração era chocante. Minha roupa estava toda manchada e espessa, de tanta bebida derramada. Nunca tomava banho. Perdi peso, minhas mãos tremiam, andava derrubando coisas, tropeçando em cadeiras e levando tombos. Mas parecia ter energia e capacidade ilimitadas para encarar o bebum, o que nunca acontecera antes. Minhas emoções estavam estilhaçadas. Tive um acesso de sociabilidade incontrolável, que me levou a conversar com qualquer um em quem eu pudesse grudar. Fazia confissões íntimas desagradáveis a pessoas totalmente estranhas. Fazia, às vezes, propostas sexuais na lata a pessoas que não haviam demonstrado nenhum sinal de reciprocidade. 

A cada tantos dias, Ike aparecia. — Tô contente de ver que você tá abandonando o junk, Bill. Quero ficar paralítico se não estiver dizendo a verdade. Mas, se você ficar muito fissurado e começar a vomitar, olha aqui cinco centigramas de morfina. 

Ike não via com bons olhos minhas bebedeiras. — Você tá bebendo bem, hein? Tá ficando pirado, cara. Olha só a tua cara: horrível. Melhor voltar aos bagulhos do que beber desse jeito. 



(Junky; tradução Companhia das Letras) 



(Ilustração: Christiaan Tonnis ~ William S. Burroughs)



quarta-feira, 22 de maio de 2019

TESTEMUNHO INCONTESTADO, de E. M. de Melo e Castro






1

Camões, mas que Camões?
Que mundo em transição se fixa nesta língua
Que margem se afirma
          na língua que se inventa?
Que poeta transita
          no mundo que se fixa?
Que poema se afixa
          na mente que se alarga
          à escala do Globo Universal
          e amarga?
Que contrários se afrontam
          nos ossos que nos tentam?
Camões, mas que Camões é este
          que nos marca?

2

          homem ou texto
    olho vazado ou letra
       miséria ou redondilha
    bruxo velho ou brochura
      sabedoria ou ilha
       pesadelo ou visão
    aventureiro ou máquina
    tensa gasta ou tensão
   um cego amor ou mundo
       novidade ou idade
      horizonte ou imagem
         Camões ou re-Camões
       Fortuna ou coisa amada
       mudança ou só desejo
                ?

3

o lírico nas lonas

o épico e o hípico
que só a pé andou

corre o mundo em degredo
liberta-se em prisões

só um olho lhe basta
para a visão dos tempos
que novos se dispersam

e em não contradição se contradiz

4

    dissipo a vida
se
    dissipo a morte
   
    aprendo a vida
se
    aprendo a morte
   
    sustento a vida
se
    sustenho a morte
   
re contenho a vida

se retenho a morte




(Re-Camões)



(Ilustração: Costa Araujo - Luís de Camoões – 2001)

domingo, 19 de maio de 2019

O ANTI-NATAL DE 1951, de Carlos Sussekind






No documento emitido pelo Juizado de Menores lê-se o seguinte: "Requisito-vos" (ao agente da Estação D. Pedro II, no Rio de Janeiro) "duas passagens de ida e volta em 1ª classe dessa estação até a Estação Presidente Franklin Roosevelt, em São Paulo, para o Dr. Lourenço Laurentis, Curador de Menores do Distrito Federal, e um menor, que viajam a serviço deste Juízo". 

Muito atencioso, o agente-ajudante que me atende na Central. Não me faz esperar. Mas, depois de carimbar a requisição, objeta-me que só amanhã poderá dar as passagens, pois o regulamento ferroviário exige antecedência de três dias, não de quatro. Adiantei-me, pois. Evito discutir, para que não surjam obstáculos futuros. 

A ideia de fazer essa viagem na companhia unicamente de meu filho, tendo eu me comprometido a não desviá-lo de suas leituras nem durante o percurso nem durante o dia inteiro (25 de dezembro) que passaremos em São Paulo, corresponde satisfatoriamente à nossa concepção (minha e dele) do anti-Natal. Atravessaremos a véspera natalina dentro do trem, sem desejar mal nem bem a quem quer que seja, ele lendo, eu nos meus devaneios. Dia 26 estaremos de volta. Não daremos nem receberemos presentes. O único presente tolerado é essa viagem de graça, que, a bem dizer, não é um presente, é um direito que me dá o cargo de Curador de menores. Doutor Lourenço e o filósofo Lourencinho estarão na deles, numa boa. 

Verifico que, se fosse de noturno, com leito de luxo, no "Santa Cruz", em cabine individual de dois passageiros, a viagem de ida e volta custaria ao Estado o triplo do preço desse trajeto feito em poltrona comum. Sairíamos do Rio às 22:30 do dia 24 e chegaríamos a São Paulo às 9 da manhã de 25. Magnífico, sem dúvida. Mas repugna à minha consciência abusar da requisição, proporcionando-nos esse luxo nababesco que ficaria documentado para sempre. Basta a fraude de dizer que eu e o Lourencinho vamos "a serviço do Juízo". 

Tentarei, em todo caso, combinar ida em noturno e volta em diurno, numa última homenagem ao meu escrúpulo. O abuso já não será tanto, nem deixarei de proporcionar a meu filho uma viagem repousada. Se tiver de ir e vir de diurno — o que seria a hipótese mais econômica —, a consciência ficará mais leve, mas não sei como se comportariam o fígado dele e os meus rins. Enfim, veremos. 

Precipitado no meu otimismo, faço, depois do jantar, uma descrição para a família toda reunida de como é o trem encantado em que viajaremos os dois. Vagões de aço inoxidável. As poltronas forradas de camurça. Giratórias. Ninguém em pé, todos acomodados, de fisionomias risonhas. A composição move-se deslizando, sem nenhuma trepidação, nenhum ruído, não entra pó, o ar que circula é como o do cinema Metro, trem de cinema, primeiro você pensa que é por causa do dia chuvoso, mas deixe chegar uma estação, abrir-se a porta e verá que é como se se abrisse uma fornalha. É a temperatura que faz lá fora. Dentro do carro, no entanto, a mesma inalterável e suavíssima ambiência! Moças e rapazes falam-se aos beijos. Quando não se beijam, cantam. Um sonho! 

Diante da minha expansão, Lourencinho tem o comentário desalentador de que só vai a São Paulo para me acompanhar, e que não sabe, afinal, se isso de anti-Natal funcionará mesmo. Se nem o anti-Natal o seduz, meu Deus, que se pode esperar desse rapaz? Deve ser a perspectiva da viagem fatigante. Mas não é só isso, não. Quando lhe falo no que faremos para conhecer a cidade, onde não piso desde 1920 — há mais de 30 anos, portanto —, adverte logo: — Desista disso de querer mostrar parques e avenidas e monumentos e pessoas! Iremos cada qual para seu lado. 

Vou buscar as passagens na estação. Outro subagente. Atencioso, como o de ontem. Entretanto, fez-me esperar 25 minutos para verificar se a assinatura era mesmo do juiz de menores, um desaforo. Conclui dizendo, amabilíssimo, que só amanhã, 22, poderá me dar os bilhetes, pois o regulamento fala em "três dias antes da viagem": sendo esta no dia 24, os três dias contam-se 22, 23 e 24. Considera 24 como sendo ao mesmo tempo o dia da viagem e a véspera! Evito discutir etc. 

Risadas do homenzinho quando lhe falo em "noturno" e "Santa Cruz". A requisição menciona apenas "passagem de 1ª". Sem especificar "noturno", só se pode subentender "diurno". A fim de não dificultar a interpretação favorável em São Paulo, para a volta, escreve "tarifa noturna", o que permitirá que eu cogite de noturno de lá para cá. Mas, noturno em "trem de madeira", sem leito de qualquer espécie. Nem, sequer, poltrona. A poltrona, mesmo para o diurno, tem de ser paga à parte. São 60 para a ida e outros 60 para a volta. Quer dizer que a requisição do Juízo de Menores só me deu o direito de andar dentro do trem até São Paulo e de São Paulo aqui. Custará isso ao Estado 568 cruzeiros redondos. Acho infinita graça, agora, na minha ingenuidade de falar em "escrúpulo" de pleitear coisa melhor. . . O Governo sabe com quem lida. As bandalheiras não se fazem assim, com recibo. Elas se aninham noutras dobras. 

Volto no dia seguinte, o guichê das passagens está se abrindo, sou o primeiro passageiro atendido. Entretanto, não posso ter os assentos que peço, na sombra. "Nós aqui desconhecemos os lugares que são no sol e os que ficam na sombra. As ordens são para destacá-los automaticamente, sem intervenção de quem quer que seja". Conformo-me. Ele lê a requisição. O outro funcionário, ao datá-la, pôs certo 21.12.1951; mas, quando se referiu ao dia da viagem, escreveu, sabe-se lá por que, 24.12.1952, equívoco palpável, evidente. Mas S. Exa. o bilheteiro do guichê nº 1 acha que deve ser retificado. Atendo-o, ainda nisto. No guichê n° 5 já está outro funcionário, diverso do "amabilíssimo" com quem falei ontem. Objeta-me que a retificação não é da sua competência, e que o funcionário que poderia fazê-la só começará a trabalhar às 4 da tarde. Não posso tolerar semelhante absurdo. Volto então ao agente substituto. Ouve-me em silêncio. Manda chamar o bilheteiro. Fala-lhe. E se volta para mim, austeramente: — O funcionário tem razão. Ele não pode retificar um erro que não cometeu. Mas o senhor, também, não vai pagar pelo que se fez sem sua culpa. Atenda-o, portanto, Sr. Freitas. Se o algarismo puder ser modificado, modifique-o. Se não puder, extraia outro passe. 

E dá-me as costas. O algarismo não pôde ser modificado. Depois de ajustar pachorrentamente os carbonos e de "experimentar" noutro papel, de rascunho, Freitas pega solenemente o lápis, calca-o, descobre o carbono e diz: 

— Não deu certo. — Espero, pois, 15 minutos para que ele extraia novo passe. 

Seria justo que minha odisseia terminasse aí. Mas não terminou. Vou para o bilheteiro do guichê n° 1. Examina os novos passes, pede-me a carteira funcional e me diz secamente: 60 cruzeiros pelas duas poltronas. Dou-lhe o dinheiro, mas pergunto: 

— Que é que essas poltronas têm de mais? 

Ele não demora na resposta: 

— Nada. 

— Então por que se paga à parte? Se eu não pagasse, iria em pé? 

O homem ajusta os óculos ao nariz, fita-me serenamente, reflete no que vai dizer. Responde-me: 

— Iria. 

Quer dizer: um funcionário, viajando a serviço do Estado, tendo sua passagem requisitada pelo Juízo de Menores, em nome do Ministro da Justiça, não tem direito sequer a viajar sentado nas 11 horas do percurso. 

Mas ainda há mais. Pergunto, delicadamente, ao ditador que tenho pela frente, se as poltronas 37 e 38 do carro "B" ficam, ou não, na sombra. Com uma irritação mal disfarçada em calma "superior", responde-me: 

— Meu caro senhor, quer um conselho? Peça a Deus que sejam na sombra, porque só Ele pode decidir. 

Ali a justiça divina já está feita de antemão. Qualquer dos lugares é igual nos benefícios e nas desvantagens. Em 11 horas de viagem, de 7:25 às 18:25, quem tiver sol pela manhã não o terá mais à tarde, e quem, pela manhã, gozar da sombra, escaldará com o sol de depois do meio-dia. 

Rimo-nos, ambos, para descarregar os nervos, evidentemente tensos, tensíssimos. Desejo-lhe Feliz Natal com toda a sinceridade. Posso respirar, enfim. As providências que tinha de tomar para garantir nosso anti-Natal, meu e do meu filho, já estão tomadas. 



(Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século)



(Ilustração: Tetsuya Ishida)





quinta-feira, 16 de maio de 2019

MARRIAGE / MATRIMÔNIO, de Gregory Corso






Should I get married? Should I be good?

Astound the girl next door with my velvet suit and faustus hood?

Don’t take her to movies but to cemeteries

tell all about werewolf bathtubs and forked clarinets

then desire her and kiss her and all the preliminaries

and she going just so far and I understanding why

not getting angry saying You must feel! It’s beautiful to feel!

Instead take her in my arms lean against an old crooked tombstone

and woo her the entire night the constellations in the sky—



When she introduces me to her parents

back straightened, hair finally combed, strangled by a tie,

should I sit knees together on their 3rd degree sofa

and not ask Where’s the bathroom?

How else to feel other than I am,

often thinking Flash Gordon soap—

O how terrible it must be for a young man

seated before a family and the family thinking

We never saw him before! He wants our Mary Lou!

After tea and homemade cookies they ask What do you do for a living?



Should I tell them? Would they like me then?

Say All right get married, we’re losing a daughter

but we’re gaining a son—

And should I then ask Where’s the bathroom?



O God, and the wedding! All her family and her friends

and only a handful of mine all scroungy and bearded

just wait to get at the drinks and food—

And the priest! he looking at me as if I masturbated

asking me Do you take this woman for your lawful wedded wife?

And I trembling what to say say Pie Glue!

I kiss the bride all those corny men slapping me on the back

She’s all yours, boy! Ha-ha-ha!

And in their eyes you could see some obscene honeymoon going on―



Then all that absurd rice and clanky cans and shoes

Niagara Falls! Hordes of us! Husbands! Wives! Flowers! Chocolates!

All streaming into cozy hotels

All going to do the same thing tonight

The indifferent clerk he knowing what was going to happen

The lobby zombies they knowing what

The whistling elevator man he knowing

The winking bellboy knowing

Everybody knowing! I’d be almost inclined not to do anything!

Stay up all night! Stare that hotel clerk in the eye!

Screaming: I deny honeymoon! I deny honeymoon!

running rampant into those almost climactic suites

yelling Radio belly! Cat shovel!

O I’d live in Niagara forever! in a dark cave beneath the Falls

I’d sit there the Mad Honeymooner

devising ways to break marriages, a scourge of bigamy

a saint of divorce—



But I should get married I should be good

How nice it’d be to come home to her

and sit by the fireplace and she in the kitchen

aproned young and lovely wanting my baby

and so happy about me she burns the roast beef

and comes crying to me and I get up from my big papa chair

saying Christmas teeth! Radiant brains! Apple deaf!

God what a husband I’d make! Yes, I should get married!

So much to do! like sneaking into Mr Jones’ house late at night

and cover his golf clubs with 1920 Norwegian books

Like hanging a picture of Rimbaud on the lawnmower

like pasting Tannu Tuva postage stamps all over the picket fence

like when Mrs Kindhead comes to collect for the Community Chest

grab her and tell her There are unfavorable omens in the sky!

And when the mayor comes to get my vote tell him

When are you going to stop people killing whales!

And when the milkman comes leave him a note in the bottle

Penguin dust, bring me penguin dust, I want penguin dust—



Yet if I should get married and it’s Connecticut and snow

and she gives birth to a child and I am sleepless, worn,

up for nights, head bowed against a quiet window, the past behind me,

finding myself in the most common of situations a trembling man

knowledged with responsibility not twig-smear nor Roman coin soup—

O what would that be like!

Surely I’d give it for a nipple a rubber Tacitus

For a rattle a bag of broken Bach records

Tack Della Francesca all over its crib

Sew the Greek alphabet on its bib

And build for its playpen a roofless Parthenon



No, I doubt I’d be that kind of father

not rural not snow no quiet window

but hot smelly tight New York City

seven flights up, roaches and rats in the walls

a fat Reichian wife screeching over potatoes Get a job!

And five nose running brats in love with Batman

And the neighbors all toothless and dry haired

like those hag masses of the 18th century

all wanting to come in and watch TV

The landlord wants his rent

Grocery store Blue Cross Gas & Electric Knights of Columbus

Impossible to lie back and dream Telephone snow, ghost parking—

No! I should not get married I should never get married!

But—imagine If I were married to a beautiful sophisticated woman

tall and pale wearing an elegant black dress and long black gloves

holding a cigarette holder in one hand and highball in the other

and we lived high up a penthouse with a huge window

from which we could see all of New York and even farther on clearer days

No, can’t imagine myself married to that pleasant prison dream—



O but what about love? I forget love

not that I am incapable of love

it’s just that I see love as odd as wearing shoes—

I never wanted to marry a girl who was like my mother

And Ingrid Bergman was always impossible



And there’s maybe a girl now but she’s already married

And I don’t like men and—

but there’s got to be somebody!

Because what if I’m 60 years old and not married,

all alone in a furnished room with pee stains on my underwear

and everybody else is married! All the universe married but me!



Ah, yet well I know that were a woman possible as I am possible

then marriage would be possible—

Like SHE in her lonely alien gaud waiting her Egyptian lover

so I wait—bereft of 2,000 years and the bath of life.





Tradução de M.D. Bandarra:





Devo casar-me? Devo ser bom?

Assustar a moça da porta ao lado com meu terno de veludo e capote faustoso?

Não levá-la ao cinema mas aos cemitérios

contar tudo sobre banheiras de lobisomem e clarinetes bifurcados

então desejá-la e beijá-la e todas as preliminares

e ela indo tão longe e eu entendendo o porquê

não me zangando e dizendo Você deve sentir! É lindo sentir!

Ao invés tomá-la em meus braços recostar em uma velha lápide encurvada

e cortejá-la toda a noite as constelações no céu-



Quando ela me apresentar a seus pais

coluna alinhada, cabelo enfim penteado, estrangulado por uma gravata

devo sentar-me joelhos unidos em seu sofá de interrogatório

e não perguntar Onde é o banheiro?

Como sentir senão que eu sou, sempre pensando no sabão do Flash Gordon-

Ó que terrível deve ser para um jovem

sentado diante da família e a família a pensar

Nós nunca o vimos antes! Ele quer nossa Mary Lou!

Depois do chá e biscoitos feitos em casa eles perguntam Que você faz pra viver?



Devo dizer-lhes: Eles gostariam de mim, então?

Dizem Tudo bem, casem, nós estamos perdendo uma filha

mas estamos ganhando um filho-

E devo eu então perguntar Onde é o banheiro?

Ó Deus, e o casamento! Toda a família e amigos dela

e só um punhado dos meus, esfarrapados e barbudos

esperam a hora dos drinks e da comida

E o padre! me olhando como se eu me masturbasse

perguntando Você aceita esta mulher como sua legítima esposa?

E eu tremendo o que dizer digo Azeito!

Eu beijo a noiva todos aqueles homens chatos dando tapinhas em minhas costas

Ela é toda sua, garoto! Ha-ha-ha!

E nos seus olhos você poderia ver acontecendo uma obscena lua-de-mel-



Então todo aquele absurdo arroz e latas barulhentas e sapatos

Cataratas do Niágara! Hordas de nós! Maridos! Esposas! Flores! Chocolates!

Todos manando para hotéis confortáveis

Todos vão fazer a mesma coisa esta noite

O recepcionista indiferente sabendo o que ia acontecer

Os zumbis do lobby sabendo o que

O ascensorista sabendo

O piscante mensageiro sabendo

Todo mundo sabendo! Eu estaria quase inclinado a não fazer coisa alguma!

Passar a noite em claro! Olhar vidrado nos olhos do recepcionista do hotel!

Gritando: Eu nego a lua-de-mel! Eu nego a lua-de-mel!

correndo desabalado pra dentro daquelas suítes quase culminares

berrando Barriga de rádio! Pá de gato!

Ó eu viveria eternamente no Niágara! em uma caverna escura debaixo das Cataratas

Sentado ali o Louco em lua-de-mel

formulando meios de destruir casamentos, um flagelo de bigamia

um santo do divórcio-



Mas eu devo casar-me Devo ser bom

Que bom seria voltar pra casa para ela

e sentar em frente à lareira e ela na cozinha

de avental, jovem e adorável querendo meu bebê

e tão feliz comigo ela queima o rosbife

e vem chorando e eu levanto da minha grande cadeira-do-papai

dizendo Dentes de natal! Cérebro radiante! Maçã surda!

Deus que marido eu daria! Sim! Devo casar-me!

Tanto a fazer! como esgueirar-me pela casa do Sr. Jones tarde da noite

e cobrir seus tacos de golfe com livros noruegueses de 1920

Como pendurar uma foto de Rimbaud no cortador de grama

como colar selos de Tannu Tuvu[**] por toda a cerca

como quando a Sra. Bondosa vier coletar para caridade

segurá-la e dizer Há sinais desfavoráveis no céu!

E quando o prefeito vier ganhar meu voto dizer a ele

Quando vocês vão fazer as pessoas pararem de matar baleias!

E quando vier o leiteiro deixar um bilhete para ele na garrafa

Pó de pinguim, me traga pó de pinguim, eu quero pó de pinguim-



Todavia se devo casar-me e for Connecticut e neve

e ela der à luz a uma criança e eu estiver insone, exausto,

noites em claro, cabeça inclinada contra uma janela quieta, o passado atrás de mim,



me encontrando, na mais comum das situações, um homem trêmulo

sapiente com responsabilidade não visco nos galhos nem sopa de moedas romanas-

Ó como seria isso!

Certamente eu o daria como chupeta um tacitus [*] de borracha

como chocalho um saco de discos de Bach quebrados

Pregar Della Francesca por todo seu berço

Bordar o alfabeto grego em seu babeiro

E construir seu chiqueirinho como um Parthenon sem teto



Não, eu duvido que desse um pai assim

nem rural nem neve nem janela quieta

e sim a quente fedida apertada cidade de Nova York

Seis lances de escada, baratas e ratos nas paredes

Uma gorda esposa Reichiana ganindo por sobre batatas Arrume um emprego!

E cinco pestinhas ranhentos apaixonados pelo Batman

E as vizinhas todas banguelas de cabelo espigado

como aquelas massas de megeras do século XVIII

todas querendo entrar e assistir TV

O senhorio quer seu aluguel

Mercearia Cruz Azul Gás e Cavaleiros Elétricos de Colombo

Impossível deitar e sonhar Neve telefônica, Estacionamento fantasma-

Não! Não devo casar-me Eu devo nunca casar-me!

Mas – imagine se eu fosse casado com uma mulher linda e sofisticada

alta e pálida vestindo um elegante vestido preto e longas luvas negras

Segurando uma piteira em uma mão e um cocktail na outra

e nós morássemos no alto de uma cobertura com uma imensa janela

da qual poderíamos ver toda Nova York e muito mais longe nos dias mais claros

Não, Não posso me imaginar casado com esta agradável prisão de sonho-

Ó mas e o amor? Esqueço do amor

não que eu seja incapaz do amor

é só que vejo o amor tão esquisito quanto usar sapatos-

Eu nunca quis casar-me com uma garota que fosse como minha mãe

E Ingrid Bergman sempre foi impossível

E há talvez uma garota agora mas ela já é casada

E eu não gosto de homens e-

mas tem que haver alguém!

Porque E se eu tiver 60 anos e não for casado

totalmente só em um cômodo mobiliado com manchas de mijo nas cuecas

e todo o resto do mundo estiver casado! Todo o universo estiver casado menos eu!



Ah, no entanto eu bem sei que se uma mulher fosse possível

como eu sou possível então o casamento seria possível-

Como ELA em sua solitária pompa estrangeira esperando seu amante egípcio

então eu espero – mal amado de 2000 anos e do banho da vida.



Notas:

[*] Tacitus, antiga moeda romana, homenagem ao Imperador de mesmo nome, e completa a referência logo a seguir, “sopa de moedas romanas”. Estas alusões completam o clima e se cruzam em outras partes do poema como a dos “velhos discos de Bach”, e, mais acima, os “selos de Tannu Tuvu”.

[**] República de Tuva, Tannu Tuvu, ou ainda Tannu Tuva, é um paisinho ao sul da Sibéria, espremido entre a união soviética e a mongólia , famoso por seus selos, muitos com estampas de pássaros e outros animais. Os desenhos e motivos são tão cobiçados e cultuados pelos colecionadores que existe até uma sociedade de colecionadores de selos de Tannu Tuva.


(Ilustração: Pietr Bruegel - The Wedding Dance)




segunda-feira, 13 de maio de 2019

COMO ADA LOVELACE, FILHA DE LORD BYRON, SE TORNOU A PRIMEIRA PROGRAMADORA DO MUNDO, de Maria Popova






Augusta Ada King, condessa de Lovelace, batizada Augusta Ada Byron em 10 de dezembro de 1815, mais tarde veio a ser conhecida simplesmente como Ada Lovelace. Hoje, ela é celebrada como a primeira programadora do mundo – a primeira pessoa a casar as capacidades matemáticas de máquinas computacionais com as possibilidades poéticas da lógica simbólica aplicada com imaginação. Essa combinação peculiar foi o produto da forma igualmente peculiar em que foi criada.

Onze meses antes de seu nascimento, seu pai, o grande poeta romântico e playboy escandaloso Lord Byron, se casou relutantemente com Annabella Milbanke, uma jovem reservada e matematicamente dotada de uma família rica.

Relutantemente, porque Byron via em Annabella não uma perspectiva romântica, mas uma proteção contra suas paixões perigosas, como sua longa lista de casos indiscriminados com homens e mulheres.

O poeta veio então a ver sua esposa – que antes chamava carinhosamente de “Princesa dos Paralelogramas” em reverência por seus talentos matemáticos – como uma antagonista calculista, uma “Medeia Matemática”. Mais tarde, Lord Byron veio a zombar dela em seu famoso poema épico Don Juan:

“Sua ciência favorita era a matemática … Ela era um cálculo ambulante.”

Ada nunca se encontrou com seu pai, que morreu na Grécia aos trinta e seis anos. Ada tinha oito anos. Em seu leito de morte, ele implorou a seu criado: “Oh, minha pobre criança! – minha querida Ada! Meu Deus, eu poderia ter visto ela! Dê a ela a minha bênção”. A menina foi criada por sua mãe, que estava empenhada em erradicar qualquer vestígio da influência de seu pai, imergindo-a na ciência e matemática a partir dos quatro anos. Aos doze anos, Ada ficou fascinada pela engenharia mecânica e escreveu um livro chamado Flyology, no qual ilustrou com seus próprios projetos seu plano para a construção de um aparelho de voo. No entanto, ela sentia que parte dela – a parte poética – estava sendo reprimida. Em um ataque de desafio adolescente, ela escreveu para sua mãe:

Você não vai me conceder poesia filosófica. Inverta a ordem! Você vai me dar filosofia poética, ciência poética?

Com certeza, o mesmo atrito que causou o divórcio de seus pais, foi responsável pela fusão que tornou Ada a pioneira da “ciência poética”, Essa fricção frutífera é o que Walter Isaacson explora enquanto cria o perfil de Ada no capítulo inicial do livro “The Innovators: How a Group of Hackers, Geniuses, and Geeks Created the Digital Revolution”  (algo como: Os inovadores: Como um grupo de hackers, gênios e geeks criaram a Revolução Digital”), ao lado de pioneiros como Vannevar Bush, Alan Turing, e Stewart Brand. Isaacson escreve:

Ada herdou o espírito romântico do pai, um traço que sua mãe tentou minimizar ao ensiná-la matemática. A combinação produziu em Ada um amor pelo que ela chamou de “ciência poética”, que ligava sua imaginação rebelde a seu encantamento por números. Para muitos, inclusive seu pai, as sensibilidades rarefeitas da era romântica entraram em conflito com a euforia por tecnologia da Revolução Industrial. Ada porém, se sentia confortável na interseção de ambas as eras.

 Quando tinha apenas dezessete anos, Ada assistiu a um dos lendários salões de Charles Babbage. Lá, em meio a danças, leituras e jogos intelectuais, Babbage realizou uma demonstração dramática de sua Máquina Diferencial, uma uma máquina calculadora que estava construindo. Ada foi instantaneamente cativada por suas possibilidades poéticas, muito além do que o próprio inventor da máquina tinha imaginado. Mais tarde, uma de suas amigas comentaria: “A srta. Byron, jovem como era, entendeu seu funcionamento e viu a grande beleza da invenção”.

Isaacson esboça o significado desse momento, tanto na vida de Ada como na trajetória de nossa cultura:

O amor de Ada tanto pela poesia quanto pela matemática a preparou para ver a beleza em uma máquina de computação. Ela foi um exemplar da era da ciência romântica, que foi caracterizada por um entusiasmo lírico pela invenção e descoberta.

[…]

Foi um tempo não muito diferente do nosso. Os avanços da Revolução Industrial, incluindo a máquina a vapor, o tear mecânico e o telégrafo, transformaram o século 19 da mesma forma que os avanços da Revolução Digital – o computador, o microchip e a Internet – transformaram o nosso. No coração de ambas as eras foram os inovadores que combinaram imaginação e paixão com a maravilhosa tecnologia, uma mistura que produziu a ciência poética de Ada e que o poeta Richard Brautigan do século 20 chamaria de “máquinas de graça amorosa.”

Encantada pela perspectiva da “ciência poética” que imaginou possível, Ada quis convencer Charles Babbage a ser seu mentor. Em uma carta para ele, ela escreveu:

Tenho uma maneira peculiar de aprender, e acho que somente um homem peculiar pode me ensinar com sucesso… Não me considere presunçosa, …mas acredito que tenho o poder de ir tão longe quanto eu quiser em tais atividades, e onde existe uma determinação tão forte, eu quase deveria dizer uma paixão, como eu tenho por elas, eu me pergunto se não há sempre uma porção de genialidade natural também.

Aqui, Isaacson faz uma observação peculiar: “Seja devido aos seus opiáceos ou à sua criação ou a ambos”, escreve ele ao citar essa carta, “ela desenvolveu uma opinião um pouco desproporcional de seus próprios talentos e começou a descrever a si mesma como um gênio”. A ironia, claro, é que ela era um gênio – o próprio Isaacson reconhece pelo próprio ato de optar por abrir sua biografia de inovação com ela. Mas será que um homem com tal habilidade e tão firme confiança nessa capacidade seria descrito como tendo um “opinião desproporcional”, por ser alguém com uma “visão exaltada de seus talentos”, como Isaacson escreve mais tarde sobre Ada? Se uma mulher de brilho incontestável não pode orgulhar-se de seu próprio talento sem ser apelidada de delirante, então, certamente, há pouca esperança para o resto de nós meros mortais femininos de fazer qualquer afirmação de confiança sem ser acusado de arrogância.

Com certeza, se Isaacson não visse o imenso valor da contribuição cultural de Ada, ele não a teria incluído no livro – um livro que, nada menos, se abre e fecha com ela. Estas observações, portanto, são talvez menos uma questão de uma opinião pessoal lamentável do que um reflexo de convenções culturais limitadas e nossa ambivalência sobre o nível admissível de confiança que uma mulher pode ter em seus próprios talentos.

Isaacson, na verdade – apesar de contestar se Ada merece consagração como “a primeira programadora de computador do mundo” comumente atribuído a ela – mostra com clareza a relevância de sua contribuição:

A capacidade de Ada de apreciar a beleza da matemática é um dom que escapa a muitas pessoas, incluindo algumas que se consideram intelectuais. Ela percebeu que a matemática era uma linguagem adorável, uma que descreve as harmonias do universo e pode ser poética às vezes. Apesar dos esforços de sua mãe, ela permaneceu filha de seu pai, com uma sensibilidade poética que lhe permitia ver uma equação como uma pincelada que pintava um aspecto do esplendor físico da natureza, assim como ela podia visualizar o “mar vinho-escuro” ou uma mulher que “Anda em beleza, como a noite.” Mas o apelo das matemáticas foi ainda mais profundo; Era espiritual. Matemática “constitui a linguagem através da qual só podemos expressar adequadamente os grandes fatos do mundo natural”, disse ela, e nos permite retratar as “mudanças de relacionamento mútuo” que se desenrolam na criação. É “o instrumento através do qual a mente fraca do homem pode mais eficazmente ler as obras de seu Criador”.

Essa capacidade de aplicar a imaginação à ciência caracterizou a Revolução Industrial, bem como a revolução da computação, para a qual Ada se tornaria uma santa padroeira. Ela conseguiu, como disse a Babbage, compreender a conexão entre poesia e análise de maneiras que transcendiam os talentos de seu pai. “Eu não acredito que meu pai era (ou poderia ter sido) um Poeta tal como eu vou ser uma Analista; Pois, para mim os dois vão junto de forma insolúvel”, escreveu.

Mas a contribuição mais importante de Ada veio de seu papel tanto como uma voz para as ideias de Babbage, numa época em que a sociedade as considerava ridículas, quanto como um amplificador de seu potencial além do que o próprio Babbage imaginara. Isaacson escreve:

Ada Lovelace apreciou plenamente o conceito de uma máquina de uso geral. Mais importante ainda, ela imaginou um atributo que poderia torná-la realmente surpreendente: poderia potencialmente processar não apenas números, mas qualquer notação simbólica, incluindo musical e artística. Ela viu a poesia em tal ideia, e começou a encorajar os outros a ver também.

Em seu complemento para o Mecanismo Analítico de Babbage escrito em 1843, simplesmente intitulado Notas, ela delineou quatro conceitos essenciais que moldariam o nascimento da computação moderna um século mais tarde. Primeiro, ela imaginou uma máquina de propósito geral capaz não só de executar tarefas pré-programadas, mas também de ser reprogramada para executar uma gama praticamente ilimitada de operações – em outras palavras, como Isaacson aponta, ela imaginou o computador moderno.

Seu segundo conceito se tornaria uma das bases da era digital – a ideia de que tal máquina poderia lidar com muito mais do que cálculos matemáticos; Que poderia ser uma “Medeia Simbólica” capaz de processar notações musicais e artísticas. Isaacson escreve:

Essa percepção se tornaria o conceito central da era digital: qualquer parte de conteúdo, dados ou informações – música, texto, imagens, números, símbolos, sons, vídeo – poderia ser expressa em forma digital e manipulada por máquinas. Mesmo Babbage não conseguiu enxergar isso plenamente; Ele se concentrou em números. Mas Ada percebeu que os dígitos nas engrenagens poderiam representar outras coisas além de quantidades matemáticas. Assim ela fez o salto conceitual de máquinas que eram meros calculadores para aqueles que agora chamamos de computadores.

Sua terceira inovação era um esboço de passo a passo de “o funcionamento do que chamamos agora um programa de computador ou algoritmo”. Mas foi sua quarto inovação, observa Isaacson, que foi e continua a ser o mais importante – a questão de saber se as máquinas podem pensar de forma independente, e que ainda lutamos para responder na era das fantasias inspiradas na Siri, como vemos no filme Her. Ada escreveu em suas Notas:

O Mecanismo Analítico não tem pretensões para originar qualquer coisa. Pode fazer qualquer coisa que nós saibamos como ordená-lo a executar. Pode seguir análise; mas não tem poder de antecipar quaisquer relações analíticas ou verdades.

No capítulo final, intitulado “Ada Forever”, Isaacson considera as implicações duradouras desta pergunta:

Ada também poderia se justificar em se gabar de que estava correta, pelo menos até agora, em sua controvérsia: que nenhum computador, por mais poderoso que fosse, seria realmente uma máquina “pensante”. Um século depois de sua morte, Alan Turing apelidou isto de “a objeção de Lady Lovelace” e tentou descartá-la fornecendo uma definição operacional de uma máquina pensante – em que uma pessoa que faz perguntas não fosse capaz de distinguir a máquina de um humano – e previu que um computador poderia passar neste teste dentro de algumas décadas. [Saiba mais sobre o Teste de Turing] Até agora, entretanto, são mais de sessenta anos, e as máquinas que tentam enganar as pessoas no teste conseguem, na melhor das hipóteses, tentativas toscas de conversas do que um pensamento real. Certamente, nenhuma das máquinas conseguiu quebrar a regra de Ada, de “originar” pensamentos próprios. [Isso está mudando rapidamente! Mas mesmo o cienstita Michael Dyer, que está criando programas de computador capazes de inventar histórias, aprender dos próprios erros e ter emoções como o ser humano, não tem certeza se já é possível dizer que esses computadores pensam. Leia entrevista com o cientista Michael Dyer, ]

Ao encapsular o legado supremo de Ada, Isaacson mais uma vez toca em nossa ambivalência sobre as mitologias do gênio – talvez ainda mais do gênio das mulheres – e encontra a sabedoria em suas próprias palavras:

Como ela mesma escreveu nessas “Notas”, referindo-se ao Mecanismo Analítico, mas em palavras que também descrevem sua reputação flutuante: “Ao considerar qualquer novo assunto, frequentemente há uma tendência de supervalorizar o que achamos que já é interessante ou notável; e, em segundo lugar, por uma espécie de reação natural, subestimar o verdadeiro estado do caso “.

A realidade é que a contribuição de Ada foi profunda e inspiradora. Mais do que Babbage ou qualquer outra pessoa de sua época, ela foi capaz de vislumbrar um futuro em que as máquinas se tornariam parceiros da imaginação humana, juntos tecendo tapeçarias tão bonitas como as do tear Jacquard. Sua apreciação pela ciência poética levou-a a celebrar uma máquina de cálculo que foi dispensada pelo meio científico de seu tempo e ela percebeu como o poder de processamento de um dispositivo desse tipo poderia ser usado em qualquer forma de informação. Assim Ada, condessa de Lovelace, ajudou a semear as sementes para uma era digital que floresceria cem anos mais tarde.

Ada morreu de um câncer de útero progressivamente debilitante em 1852, quando ela tinha trinta e seis – a mesma idade que Lord Byron. Ela pediu que  fosse enterrada em um túmulo rural, ao lado do pai que nunca conheceu, mas cuja sensibilidade poética moldou profundamente seu próprio gênio de “ciência poética”.


(Tradução de Krystal Campioni)



(Ilustração: Ada Lovelace, circa 1840)