segunda-feira, 13 de maio de 2024

ODE TO A NIGHTINGALE / ODE A UM ROUXINOL, John Keats

 





My heart aches, and a drowsy numbness pains

My sense, as though of hemlock I had drunk,

Or emptied some dull opiate to the drains

One minute past, and Lethe-wards had sunk:

‘Tis not through envy of thy happy lot,

But being too happy in thine happiness,—

That thou, light-winged Dryad of the trees

In some melodious plot

Of beechen green, and shadows numberless,

Singest of summer in full-throated ease.



O, for a draught of vintage! that hath been

Cool’d a long age in the deep-delved earth,

Tasting of Flora and the country green,

Dance, and Provençal song, and sunburnt mirth!

O for a beaker full of the warm South,

Full of the true, the blushful Hippocrene,

With beaded bubbles winking at the brim,

And purple-stained mouth;

That I might drink, and leave the world unseen,

And with thee fade away into the forest dim:



Fade far away, dissolve, and quite forget

What thou among the leaves hast never known,

The weariness, the fever, and the fret

Here, where men sit and hear each other groan;

Where palsy shakes a few, sad, last gray hairs,

Where youth grows pale, and spectre-thin, and dies;

Where but to think is to be full of sorrow

And leaden-eyed despairs,

Where Beauty cannot keep her lustrous eyes,

Or new Love pine at them beyond to-morrow.



Away! away! for I will fly to thee,

Not charioted by Bacchus and his pards,

But on the viewless wings of Poesy,

Though the dull brain perplexes and retards:

Already with thee! tender is the night,

And haply the Queen-Moon is on her throne,

Cluster’d around by all her starry Fays;

But here there is no light,

Save what from heaven is with the breezes blown

Through verdurous glooms and winding mossy ways.



I cannot see what flowers are at my feet,

Nor what soft incense hangs upon the boughs,

But, in embalmed darkness, guess each sweet

Wherewith the seasonable month endows

The grass, the thicket, and the fruit-tree wild;

White hawthorn, and the pastoral eglantine;

Fast fading violets cover’d up in leaves;

And mid-May’s eldest child,

The coming musk-rose, full of dewy wine,

The murmurous haunt of flies on summer eves.



Darkling I listen; and, for many a time

I have been half in love with easeful Death,

Call’d him soft names in many a mused rhyme,

To take into the air my quiet breath;

Now more than ever seems it rich to die,

To cease upon the midnight with no pain,

While thou art pouring forth thy soul abroad

In such an ecstasy!

Still wouldst thou sing, and I have ears in vain—

To thy high requiem become a sod.



Thou wast not born for death, immortal Bird!

No hungry generations tread thee down;

The voice I hear this passing night was heard

In ancient days by emperor and clown:

Perhaps the self-same song that found a path

Through the sad heart of Ruth, when, sick for home,

She stood in tears amid the alien corn;

The same that oft-times hath

Charm’d magic casements, opening on the foam

Of perilous seas, in faery lands forlorn.



Forlorn! the very word is like a bell

To toll me back from thee to my sole self!

Adieu! the fancy cannot cheat so well

As she is fam’d to do, deceiving elf.

Adieu! adieu! thy plaintive anthem fades

Past the near meadows, over the still stream,

Up the hill-side; and now ‘tis buried deep

In the next valley-glades:

Was it a vision, or a waking dream?

Fled is that music:—Do I wake or sleep?



Tradução de Augusto de Campos:



Meu peito dói; um sono insano sobre mim

Pesa, como se eu me tivesse intoxicado

De ópio ou veneno que eu sorvesse até o fim,

Há um só minuto, e após no Letes me abismado:

Não é porque eu aspire ao dom de tua sorte,

É do excesso de ser que aspiro em tua paz –

Quando, Dríade leve-alada em meio à flora,

Do harmonioso recorte

Das verdes árvores e sombras estivais,

Lanças ao ar a tua dádiva sonora.



Ah! um gole de vinho refrescado longamente

Na solidão do solo muito além do chão,

Sabendo a flor, a seiva verde e a relva quente,

Dança e Provença e sol queimando na canção!

Ah! uma taça de luz do Sul, plena e solar,

Da fonte de Hipocrene enrubescida e pura,

Com bolhas de rubis à beira rebordada

Nos lábios a brilhar,

Para eu saciar a sede até chegar ao nada

E contigo fugir para a floresta escura.



Fugir e dissolver-me, enfim, para esquecer

O que das folhas não aprenderás jamais:

A febre, o desengano e a pena de viver

Aqui, onde os mortais lamentam os mortais;

Onde o tremor move os cabelos já sem cor

E o jovem pálido e espectral se vê finar,

Onde pensar é já uma antevisão sombria

Da olhipesada dor,

Onde o Belo não pode erguer a luz do olhar

E o Amor estremecer por ele mais que um dia.



Adeus! Adeus! Eu sigo em breve a tua via,

Não em carro de Baco e guarda de leopardos,

Antes, nas asas invisíveis da Poesia,

Vencendo a hesitação da mente e os seus retardos;

Já estou contigo! suave é a noite linda,

Logo a Rainha-Lua sobe ao trono e luz

Com a legião de suas Fadas estelares,

Mas aqui não há luz,

Salvo a que o céu por entre as brisas brinda

Em meio à sombra verde e ao musgo dos lugares.



Não posso ver as flores a meus pés se abrindo,

Nem o suave olor que desce das ramagens,

Mas no escuro odoroso eu sinto defluindo

Cada aroma que incensa as árvores selvagens,

A impregnar a grama e o bosque verde-gaio,

O alvo espinheiro e a madressilva dos pastores,

Violetas a viver sua breve estação;

E a princesa de maio,

A rosa-almíscar orvalhada de licores

Ao múrmuro zumbir das moscas do verão.



Às escuras escuto; em mais de um dia adverso

Me enamorei, de meio-amor, da Morte calma,

Pedi-lhe docemente em meditado verso

Que dissolvesse no ar meu corpo e minha alma.

Agora, mais que nunca, é válido morrer,

Cessar, à meia-noite, sem nenhum ruído,

Enquanto exalas pelo ar tua alma plena

No êxtase do ser!

Teu som, enfim, se apagaria em meu ouvido

Para o teu réquiem transmudado em relva amena.



Tu não nasceste para a morte, ave imortal!

Não te pisaram pés de ávidas gerações;

A voz que ouço cantar neste momento é igual

À que outrora encantou príncipes e aldeões:

Talvez a mesma voz com que foi consolado

O coração de Rute, quando, em meio ao pranto,

Ela colhia em terra alheia o alheio trigo;

Quem sabe o mesmo canto

Que abriu janelas encantadas ao perigo

Dos mares maus, em longes solos, desolado.



Desolado! a palavra soa como um dobre,

Tangendo-me de ti de volta à solidão!

Adeus! A fantasia é véu que não encobre

Tanto como se diz, duende da ilusão.

Adeus! Adeus! Teu salmo agora tristemente

Vai-se perder no campo, e além, no rio silente,

Nas faldas da montanha, até ser sepultado

Sob o vale deserto:

Foi só uma visão ou um sonho acordado?

A música se foi – durmo ou estou desperto?




(Ilustração: Mikhail Vasilevich Nesterov - The Nightingale is Singing)

sexta-feira, 10 de maio de 2024

A TEIMOSA MANIA DE CORTAR CABEÇAS, de Roberto Pompeu de Toledo

 

 


Faz algum tempo que não se cortam cabeças no Brasil. Mas quantas já se cortaram!

O jornal O Globo, dentro de uma série de reportagens sobre a guerrilha do PC do B no Araguaia, nos anos 70, contou em sua edição de 29 de abril como morreu Osvaldo Orlando da Costa, o "Osvaldão", um negro alto (1,98 metro) e forte, campeão de boxe e atletismo antes de virar chefe do grupo que imitava Che Guevara nos matos do Brasil Central. Osvaldão foi abatido num milharal, numa tarde de março de 1974, por uma patrulha do Exército.

De helicóptero, o corpo foi levado a Ximbioá. Cortaram-lhe a cabeça. O guerrilheiro tinha granjeado a fama de invencível, na região. Resolveu-se mostrar àquela gente crédula que ele não era invencível. Uma testemunha disse ao repórter Amaury Ribeiro Jr., de O Globo, que viu um oficial apresentando em triunfo a cabeça do guerrilheiro, e perguntando: "Cadê o homem imortal?"

Voltem-se oitenta anos. Desfecho da revolução gaúcha de 1893. O principal líder rebelde, Gumercindo Saraiva, é morto no dia 10 de agosto de 1894 e enterrado, mas os governistas ainda não se sentem saciados. O coronel Firmino de Paula manda desenterrar o cadáver e colocá-lo à beira da estrada. O general Francisco Rodrigues Lima vai dizendo, ao aproximar-se: "As orelhas são minhas". Os soldados dirigem zombarias ao cadáver. Cortam-lhe a cabeça.

Avancem-se 44 anos. Julho de 1938. Madrugada. Lampião, o "Rei do Cangaço", e sua mulher, Maria Bonita, mais nove companheiros, são finalmente localizados em seu refúgio da fazenda de Angico, no sertão de Sergipe, e mortos. Cortam-lhes as cabeças, que em seguida são exibidas nas escadarias da igreja matriz de Santana do Ipanema. Uma foto eternizou a cena: onze cabeças distribuídas em filas que sobem os degraus. Há filas no alto e filas embaixo, como nas poses dos times de futebol, antes do jogo. As de Lampião e Maria Bonita seriam depois levadas em peregrinação até Salvador, onde, mumificadas, ficariam expostas no Museu Nina Rodrigues.

Recue-se um ano. 1937. A comunidade messiânica do Caldeirão, liderada pelo Beato Lourenço, no Ceará, é dizimada pela polícia. Quinhentos fiéis são mortos. Cadáveres são degolados.

Recuem-se 242 anos. Novembro de 1695. Acabou o Quilombo dos Palmares e foi morto seu líder, Zumbi. O cadáver é levado a Porto Calvo, hoje Alagoas, onde é decepado por um escravo, perante as autoridades. Lavra-se um "Auto de decapitação do negro Zumbi". Em seguida a cabeça é transportada ao Recife e ali colocada em exibição pública, para, segundo o governador Melo e Castro, "satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente o julgavam imortal".

Avancem-se 97 anos. Tiradentes. Enforcado no Rio de Janeiro, ele tem o corpo esquartejado. O cadáver inicia então uma viagem de volta a Minas Gerais, durante a qual pedaços vão sendo deixados nas praças centrais de diferentes cidades. A cabeça é reservada para exibição no alto de um poste no centro de Ouro Preto.

Avancem-se 105 anos. 1897. Canudos vive seus últimos dias. Euclides da Cunha escreve, em Os Sertões: "Os soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, fracamente exposta a garganta, degolavam-na".

Ainda Canudos. Seis de outubro de 1897. Finalmente dentro do arraial, as tropas ficam sabendo que Antônio Conselheiro morrera duas semanas antes, de morte natural, e fora enterrado. Uma comissão dirige-se então à sepultura. Euclides da Cunha escreve:

"Desenterraram-no cuidadosamente. (...) Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal, extinto aquele terribilíssimo antagonista. Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita -- e como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores. Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio".

A História do Brasil é assombrada por cabeças sem corpo e corpos sem cabeça.



(VEJA - Ensaio, 8/5/96)

(Ilustração : Artemisia Gentileschi - Salome with the Head of Saint John the Baptist ca. 1610-1615)

terça-feira, 7 de maio de 2024

DESIDERATA / DESIDERATA, de Max Ehrmann

 


 

Go placidly amid the noise and haste,

and remember what peace there may be in silence.

As far as possible without surrender

be on good terms with all persons.

Speak your truth quietly and clearly;

and listen to others,

even the dull and the ignorant;

they too have their story.

 

Avoid loud and aggressive persons,

they are vexations to the spirit.

If you compare yourself with others,

you may become vain and bitter;

for always there will be greater and lesser persons than yourself.

Enjoy your achievements as well as your plans.

 

Keep interested in your own career, however humble;

it is a real possession in the changing fortunes of time.

Exercise caution in your business affairs;

for the world is full of trickery.

But let this not blind you to what virtue there is;

many persons strive for high ideals;

and everywhere life is full of heroism.

 

Be yourself.

Especially, do not feign affection.

Neither be cynical about love;

for in the face of all aridity and disenchantment

it is as perennial as the grass.

 

 

Take kindly the counsel of the years,

gracefully surrendering the things of youth.

Nurture strength of spirit to shield you in sudden misfortune.

But do not distress yourself with dark imaginings.

Many fears are born of fatigue and loneliness.

Beyond a wholesome discipline,

be gentle with yourself.

 

You are a child of the universe,

no less than the trees and the stars;

you have a right to be here.

And whether or not it is clear to you,

no doubt the universe is unfolding as it should.

 

Therefore be at peace with God,

whatever you conceive Him to be,

and whatever your labors and aspirations,

in the noisy confusion of life keep peace with your soul.

 

With all its sham, drudgery, and broken dreams,

it is still a beautiful world.

Be cheerful.

Strive to be happy.

 

Tradução de Iva Sofia Gonçalves Lima:

 

Siga tranquilamente entre a pressa e a inquietude, lembrando-se que há sempre paz no silêncio.

Tanto quanto possível, sem se humilhar, mantenha boas relações com todas as pessoas.

Fale a sua verdade mansa e claramente e ouça a dos outros, mesmo a dos insensatos e ignorantes, pois eles também têm sua própria história.

 

Evite as pessoas escandalosas e agressivas. Elas afligem o nosso espírito.

Se você se comparar com os outros, tornar-se-á presunçoso e magoado, pois haverá sempre alguém superior e alguém inferior a você.

Você é filho do Universo, irmão das estrelas e árvores. Você merece estar aqui, e mesmo sem você perceber, a Terra e o Universo vão cumprir o seu destino.

Desfrute das suas realizações, bem como dos seus planos. Mantenha-se interessado em sua carreira, ainda que humilde, pois ela é um ganho real na fortuna cambiante do tempo.

Tenha cautela nos negócios, pois o mundo está cheio de astúcias, mas não se torne um cético porque a virtude sempre existirá. Muita gente luta por altos ideais e em toda a parte a vida está cheia de heroísmo.

 

Seja você mesmo, principalmente. Não simule afeição. Não seja descrente do amor, porque mesmo diante de tanta aridez e tanto desencanto ele é tão perene quanto a selva.

 

Aceite com carinho o conselho dos mais velhos e seja compreensivo com os arroubos inovadores da juventude.

Alimente a força do espírito que o protegerá no infortúnio inesperado, mas não se desespere com perigos imaginários. Muitos temores nascem do cansaço e da solidão, e a despeito de uma disciplina rigorosa. Seja gentil para consigo mesmo.

Portanto, esteja em paz com Deus como quer que você o conceba e quaisquer que sejam seus trabalhos e as aspirações. Na fatigante confusão da vida, mantenha-se em paz com sua própria alma, apesar de todas as falsidades, fadigas e desencantos. O mundo ainda é bonito.

Seja prudente e faça tudo para ser feliz!

 

(Desiderata: um caminho para a vida)

 

Tradução de Isaias Edson Sidney:

 

Serenamente caminhe entre o barulho e a pressa,

e lembre-se de quanta paz pode haver no silêncio.

Não se humilhe,

mas atenda com educação a todas as pessoas.

Fale o que você pensa calma e claramente;

e ouça o que lhe dizem,

mesmo as coisas tolas e estúpidas;

todos merecem ser ouvidos.

Evite gente barulhenta e agressiva,

que só lhe trazem aborrecimentos.

Não se compare com os outros,

Isso pode torná-lo vaidoso e amargo;

sempre haverá pessoas melhores e piores que você.

Comemore suas conquistas e faça planos.

 

Orgulhe-se de seu trabalho, por mais humilde que seja;

ele é sua âncora ante as incertezas da vida.

Seja cauteloso nos negócios;

pois o mundo está cheio de trapaceiros.

Mas não deixe que isso o torne cego para as boas oportunidades;

muitas pessoas lutam por altos ideais;

em todos os lugares, a vida está cheia de heroísmo.

Seja você mesmo.

Principalmente, não finja afeto.

Nem seja cínico sobre o amor;

pois diante de toda insensibilidade e desencanto

 ele é tão perene quanto a grama.

 

Aceite com tranquilidade a passagem do tempo,

conservando o frescor da juventude.

Cultive a força de espírito para protegê-lo das adversidades da vida.

 Não se angustie com pensamentos sombrios.

Muitos medos brotam do cansaço e da solidão.

Cultive uma vida saudável, cuide de si mesmo.

Você é uma criança do universo,

não menos importante que as árvores ou as estrelas;

você tem o direito de estar aqui.

E mesmo que não esteja claro para você,

não há dúvida de que o universo está em constante evolução, como sempre.

 

Portanto, esteja em paz com Deus,

seja qual for a sua concepção dele,

e quaisquer que sejam suas tarefas e aspirações,

nesta vida confusa e agitada,

esteja em paz consigo mesmo.

Com toda essa falsidade, lutas e sonhos desfeitos,

 tem ainda o mundo muitas belezas.

 Cultive a alegria.

Busque a felicidade.

 

(Ilustração: Ada Breedveld - our pleasure)

sábado, 4 de maio de 2024

PROBLEMAS CAUSADOS POR GUTENBERG: A EXPLOSÃO DA INFORMAÇÃO NOS PRIMÓRDIOS DA EUROPA MODERNA, de Peter Burke

 



Gutenberg e a imprensa de há muito vêm sendo celebrados. Desde o século XVI a máquina impressora é descrita como tendo literalmente marcado uma época. Tem sido vista como o símbolo de uma nova era, associada com freqüência à pólvora (outra invenção atribuída aos alemães) e às vezes também à bússola. Francis Bacon vinculava a imprensa ao progresso do conhecimento (o advancement of learning, segundo suas palavras), ao ideal da pansofia e ao sonho utópico de anular as consequências do pecado original.

A ideia de comemorar centenários com celebrações festivas era extremamente rara antes de 1617, ano em que os protestantes alemães celebraram o centenário da afixação em Wittenberg das famosas teses de Martinho Lutero. Mesmo assim, uma celebração semelhante aconteceu em 1640, ano que se acreditava marcar o bicentenário da invenção de Gutenberg. Esse festival, um jubilaeum typographicum celebrado em Leipzig, coincidiu com a publicação de dois estudos da história da imprensa, um de Mark Boxhorn e o outro de Bernhard von Mallinkrot, ambos enaltecendo a nova invenção. Muitas descrições subseqüentes da imprensa adotaram um tom semelhante (1).

Neste artigo, porém, minha abordagem será menos triunfalista. Tradicionalmente a imprensa de tipos móveis é vista como a solução de um problema, como um modo de garantir o suprimento de textos para atender sua crescente demanda no final da Idade Média, uma época em que o número de homens e mulheres alfabetizados estava aumentando. Todavia, essa não é a única perspectiva possível. No que segue — sem intenção alguma de negar o feito de Gutenberg, ou mesmo o dos chineses ou coreanos, que também haviam inventado formas de imprensa — gostaria de examinar algumas das conseqüências imprevistas da invenção, seus efeitos colaterais, os problemas que com ela surgiram.

Parece inevitável que nas atividades humanas todas as soluções de um problema mais cedo ou mais tarde acabem gerando outros problemas. Como sugeriu o geógrafo sueco Torsten Hägerstrand, o processo de inovação sempre tem um aspecto positivo e um aspecto negativo, um “lado destrutivo” e um lado criativo. O lado destrutivo ele denomina “denovação” em oposição à inovação (2). No caso da Revolução Industrial, por exemplo, basta pensar nos operadores de teares manuais que não conseguiam competir com a nova tecnologia, bem como na mão-de-obra infantil nas novas fábricas.

As descrições “triunfalistas” da nova invenção com as quais comecei este artigo foram contrabalançadas desde o início pelo que poderíamos chamar de narrativas “catastrofistas”. A imprensa foi descrita pelo humanista francês Guillaume Fichet — que introduziu a máquina impressora em Paris — como o “cavalo de Tróia” (3). Diferentes grupos sociais levantaram diferentes críticas ao novo instrumento. Por exemplo, os copistas os e os “papeleiros” (que vendiam livros manuscritos) e os cantores contadores de histórias profissionais, todos temiam — como acontecera com os operadores de teares manuais na Revolução Industrial — que a imprensa os privaria de seu meio de vida.

Os eclesiásticos, por sua vez, temiam que a imprensa estimulasse leigos comuns a estudar textos religiosos por conta própria em vez de acatar o que lhes dissessem as autoridades (4). Tinham razão. No século XVI, na Itália por exemplo, sapateiros, tintureiros, pedreiros e donas-de-casa, todos reivindicavam o direito de interpretar as escrituras (5). O Índice Católico dos Livros Proibidos, criado depois do Concílio de Trento, foi uma tentativa de lidar com esse problema. Outra possibilidade era, naturalmente, as igrejas adotarem o novo meio na tentativa de usá-lo para seus próprios objetivos. Na Suécia protestante, por exemplo, no século XVII a Igreja organizou uma campanha de alfabetização — talvez a primeira dessa natureza na história moderna — que visava a estimular a leitura da Bíblia (6). Todavia, tal solução por sua vez gerava novos problemas. A publicação, do século XVII em diante, de livros baratos como Fortunatus e Ulspegel mostra que, depois de aprender a ler, as pessoas comuns não se restringiam à leitura da Bíblia, como desejaria o clero.

Na década de 1620 às preocupações religiosas somaram-se preocupações políticas. Ludovico Zuccolo, um escritor italiano, evocava a imagem das barbearias cheias de gente comum discutindo as medidas dos governantes. Essas preocupações refletiam em parte uma reação ao surgimento nessa época de jornais impressos, conduzindo a um debate resumido no tratado Vom Gebrauch und Missbrauch der Zeitungen (1700), de Johann Peter von Ledwig. Governos autoritários criticados pela imprensa enfrentavam um dilema muito semelhante ao das igrejas. Se não respondessem às críticas, poderiam dar a impressão de que não tinham argumentos a apresentar. Se, por outro lado, respondessem, ao fazê-lo estimulavam a própria liberdade de julgamento político que desaprovavam. É natural então que o inglês Sir Roger L’Estrange, o principal censor da imprensa depois da restauração de Carlos II, se perguntasse “se a invenção da tipografia não trouxera mais malefícios do que vantagens para o mundo cristão” (7).

Os estudiosos, ou mais genericamente os que buscassem o conhecimento, também enfrentavam problemas. Observemos deste ponto de vista a assim-chamada “explosão” da informação — uma metáfora desconfortável que faz lembrar a pólvora – subseqüente à invenção da imprensa. A informação se alastrou “em quantidades nunca vistas e numa velocidade inaudita” (8). Alguns estudiosos logo notaram as desvantagens do novo sistema. O astrônomo humanista Johann Regiomontanus observou, por volta de 1464, que os tipógrafos negligentes multiplicariam os erros. Outro humanista, Niccolò Perotti, propôs em 1470 um projeto defendendo a censura erudita. Mais sério ainda era o problema da preservação da informação e, ligado a isso, o da seleção e crítica de livros e autores. Em outras palavras, a nova invenção produziu uma necessidade de novos métodos de gerenciamento da informação.

Na alta Idade Média o problema fora a escassez, a falta de livros. No século XVI o problema era o da superfluidade. Antonfrancesco Doni, escritor italiano, em 1550 já se queixava da existência de “tantos livros que não temos tempo para sequer ler os títulos”. Livros eram uma “floresta” na qual os leitores poderiam se perder, segundo Jean Calvin (9). Eram um “oceano” pelo qual os leitores tinham de navegar, ou uma “inundação” de material impresso em meio a qual era difícil não se afogar (10). As metáforas de florestas e oceanos eram topoi (*), naturalmente, mas como topoi em geral também expressavam a experiência vivida. O bibliotecário francês Adrien Baillet temia que a multiplicação de livros trouxesse consigo uma nova época de barbárie. “On a sujet d’appréhender que la multitude de livres qui augmentent tous les jours d’une manière prodigieuse, ne fasse tomber les siècles suivants dans une état aussi fâcheux qui étoit celuy où les barbares avoit jeté les précédents” (11)(**).

Até mesmo Conrad Gesner, o humanista suíço que cunhou a expressão “a ordem dos livros” (ordo librorum), recentemente adotada por Roger Chartier como título de um de seus trabalhos, também se queixava da “multidão confusa e irritante de livros” (confusa et noxia illa librorum multitudo). Mais que uma ordem de livros, o que alguns contemporâneos percebiam era uma “desordem de livros” que precisava ser controlada. Este é certamente um problema com que nós também estamos brigando atualmente, nos primórdios da mídia eletrônica. Por essa razão o estudioso alemão Michael Giesecke descreveu seu estudo sobre a imprensa germânica dos séculos XV e XVI como um “Fallstudie über die Durchesetzung neuer Informations- und Kommuni-kationstechnologien”. Giesecke faz uma descrição voltada para o sistema daquilo que chama “Das Typographeum als Informationsystem”.

Neste artigo, por outro lado, gostaria de apresentar uma descrição mais voltada para o agente em termos de uma seqüência de problemas e soluções, embora admitindo que essas soluções muitas vezes se tornam ações humanas institucionalizadas que se solidificam em estruturas sociais.

Vale a pena repetir alguns dados estatísticos muito conhecidos para lembrar a escala das mudanças que aconteceram no início das comunicações modernas. Por volta do ano de 1500 havia impressoras em mais de 250 centros europeus e elas já haviam produzido cerca de 27 mil edições. Fazendo uma estimativa conservadora de 500 exemplares por edição, haveria então algo em torno de 13 milhões de livros em circulação no ano de 1500 numa Europa de 100 milhões de habitantes (excluindo-se o mundo ortodoxo, que escrevia em grego ou russo ou eslavo eclesiástico). Já para o período entre 1500 e 1750, foram publicados na Europa tantos volumes cujos totais os estudiosos da história do livro não conseguem ou não querem calcular (com base no índice de produção do século XV o total estaria ao redor de 130 milhões, mas de fato o índice de produção aumentou dramaticamente).

A multiplicação dos livros criou imediatamente um problema para um grupo profissional, o dos bibliotecários, embora seja óbvio que eles se tornaram ainda mais indispensáveis. Em 1745 uma das principais bibliotecas européias, a do Vaticano, abrigava apenas 2.500 volumes. No início do século XVII a Bodleian Library de Oxford tinha 8.700 títulos, e a biblioteca imperial de Viena, 10 mil. Em meados do mesmo século a biblioteca de Wolfenbüttel abrigava 28 mil volumes, enquanto a Ambrosiana de Milão tinha 46 mil (sem contar os manuscritos). Em meados do século XVIII um cidadão de Londres, Sir Hans Sloane, havia acumulado 50 mil volumes (que depois formariam o núcleo do que é hoje a British Library). Foi preciso construir prédios enormes para abrigar tantos livros (Fischer von Erlach’s Hofbibliothek em Viena, por exemplo), os quais, por sua vez, exigiram financiamentos.

A existência de livros impressos facilitou mais do que nunca a tarefa de encontrar informações — desde que antes se encontrasse o livro certo. Para isso, foi preciso compilar catálogos para grandes bibliotecas, particulares ou públicas. Baillet compilou um catálogo em 32 volumes para seu patrão, o magistrado Lamoignon, um trabalho que ajuda a explicar seu desabafo, como já mencionado, sobre o advento de uma época de barbárie. A compilação desses catálogos criou o problema de como organizá-los. Por assunto ou por autor numa lista em ordem alfabética? Se por assunto, segundo o tradicional currículo das universidades ou de um modo novo e mais adequado às novas descobertas (um problema que, entre outros, preocupava Leibniz)?

Também existia o problema do acesso. Como poderiam os leitores descobrir que livros estavam disponíveis numa determinada biblioteca? Como particularmente poderiam os leitores de outras cidades ou países saber que valeria a pena empreender uma viagem para uma determinada biblioteca em busca de um determinado livro? Imprimiram-se alguns catálogos, como o da Bodleian Library de Oxford do início do século XVII. Uma alternativa ao catálogo de determinada biblioteca era uma bibliografia impressa, o catálogo de uma biblioteca ideal ou da “biblioteca sem paredes” (como a chama Chartier, adaptando uma expressão de André Malraux) (12).

O humanista suíço Conrad Gessner (1516-65), por exemplo, um verdadeiro polímata, que escreveu sobre zoologia, botânica, química, geologia e lingüística, foi também o autor da enorme Bibliotheca Universalis (1545-55), uma tentativa de compilar uma bibliografia completa de obras eruditas organizada por autor e por assunto (13). Vale a pena refletir por um instante sobre os problemas práticos de uma iniciativa como essa. Imagine Gessner viajando para visitar bibliotecas na Itália e em outros países, fazendo suas volumosas anotações, utilizando inúmeras penas de ave, que a toda hora precisavam ser apontadas, e tendo de manter suas anotações em ordem (talvez, como fariam futuros pesquisadores, em tiras de papel ou no verso de cartas de baralho).

Do ponto de vista do leitor, nem sempre era fácil encontrar informações bibliográficas num repositório tão vasto como o de Gessner. Assim, bibliografias gerais foram sucedidas por outras mais específicas e fáceis de manusear, incluindo-se bibliografias nacionais como a Bibliothèque Françoise de La Croix du Maine (1584) e bibliografias organizadas por assunto no campo de teologia, direito, medicina, história e assim por diante, como a Bibliotheca Historica de Boldanus (1620). Algumas bibliografias procuravam ser abrangentes, outras eram deliberadamente seletivas. Uma longa série de Bibliothecae Selectae ou Bibliothèques Choisies (desde o jesuíta Possevino no século XVII até o protestante Formey no século XVIII), às vezes na forma de orientação para quem desejasse formar uma biblioteca, ajudava os leitores a fazerem sua escolha entre livros concorrentes (14). O Polímata de Daniel Morhof (durante um certo tempo bibliotecário de Kiel) e descrições semelhantes de historia literária ofereciam não exatamente uma história da literatura no sentido moderno, mas um guia para o mundo dos livros e suas instituições — em outras palavras, informações sobre informações.

Como o aparecimento de bibliografias em meados do século XVI, o aparecimento de resenhas cem anos mais tarde foi uma resposta a um problema que se tornara cada vez mais agudo, o problema do discernimento, como o chamava Baillet, em outras palavras o de discernir entre os bons e os maus livros. As resenhas apareciam em revistas eruditas, que foram em parte criadas por essa razão: a Philosophical Transactions da Sociedade Real de Londres e o Journal des Savants de Paris na década de 1660, as Acta Erudictorum de Leipzig e as Nouvelles de la Republique des Lettres de Amsterdã na década de 1680, e assim por diante. O título “Notícias da república das letras” explica muito bem a finalidade dessas revistas. Apareciam a cada um ou dois meses trazendo informações acerca de novos livros, incluindo-se resumos e às vezes apreciações críticas. Como as bibliografias, algumas dessas revistas eram especializadas, entre elas a Dänische, a Pölnische e a Schwesdische Bibliothek.

Essa solução, por sua vez, gerou o problema da localização das resenhas, ou mesmo de achar as revistas, que eram publicadas em tantas cidades diversas da Europa e às vezes duravam apenas alguns anos. Por essa razão a edição do Polímata de Morhof de 1747 (um guia que era constantemente revisto e ampliado) começava com uma lista em ordem alfabética das revistas dessa natureza.

Às bibliografias logo se juntaram estantes de outros livros de referência. Tinham títulos tais como “castelo”, “compêndio”, “corpus”, “catálogo”, “floresta”, “inventário”, biblioteca”, “espelho”, “repertório”, “teatro” ou “tesouro”, e ofereciam informações sobre palavras (dicionários), pessoas (dicionários biográficos), lugares (dicionários geográficos e atlas), datas (cronologias) e coisas (enciclopédias). Havia também coleções de muitos volumes de textos sobre tópicos específicos — leis, tratados, crônicas, decisões de concílios da Igreja, descrições de lugares exóticos feitas por viajantes etc. Em 1758 apareceu até um dicionário de dicionários, publicado em Paris e ridicularizado pelo literato exilado Melchior Grimm mas que mesmo assim satisfazia a uma necessidade real. Era o livro Table alphabéthique des dictionnaires de Durey de Noinville.

Esses livros não se destinavam apenas a estudiosos e grupos com interesses específicos mas também a pessoas que liam o jornal (daí os termos gazzetteer (jornalista de diário oficial) e Konversationslexikon). O aparecimento desse tipo de livros foi incrementado não só pelo aumento da informação, mas também pela competição. A comercialização do conhecimento já era visível na época de Gutenberg, como testemunham os volantes comerciais que anunciavam libri venales (livros à venda). Todavia, a comercialização deu um grande passo para a frente no século XVIII, participando do surgimento da “sociedade de consumo” na Inglaterra, na França, na Alemanha e em outros países por volta de 1750 (15).

Todas essas soluções de problemas criaram outros problemas e provocaram grandes mudanças nos estilos de leitura, escrita e organização de informações.

Escrevendo em 1819, Francis Jeffrey, um literato inglês, expressava seu temor de que “se continuarmos a escrever e rimar no ritmo atual por mais 200 anos, será preciso inventar alguma nova arte de leitura taquigráfica — caso contrário toda leitura será abandonada em desespero” (16). De um modo informal, era o que já vinha acontecendo havia séculos. Houve uma mudança da leitura “intensiva” para a “extensiva” (ou, na famosa metáfora de Francis Bacon, do hábito de “engolir” livros para o de “provar” deles). O final do século XVIII tem sido apresentado como um ponto crucial nesse aspecto (embora não se deva esquecer que os primeiros homens modernos, como nós mesmos, sabiam mudar de marcha e passar de uma modalidade de leitura para outra quando necessário) (17). Um novo vocabulário entrou em uso no início do período moderno para descrever essa “revolução na leitura”, incluindo-se palavras como “referir-se”, “consultar”, “ler superficialmente” e “pular”. Como comentava Jonathan Swift com seu costumeiro humor pessimista, “entrar no palácio do conhecimento pelo portão principal exige um consumo de tempo e formalidades. Gente muito apressada e pouco cerimoniosa se contenta com entrar pela porta dos fundos”. Essas formas de leitura equivaliam a “surfar pela internet”.

A modalidade de leitura “extensiva” estimulou mudanças no formato e na apresentação dos livros e foi por sua vez por elas estimulada. Ocorreram mudanças como a divisão do texto em capítulos, o acréscimo de sumários, índices (incluindo-se alguns índices de máximas assim como de assuntos ou de nomes de pessoas e lugares) e notas marginais indicando mudanças de tópicos. Houve uma considerável competição entre editores nessas questões. Os títulos das páginas com freqüência referiam-se ao número e à precisão dos índices, glossários e assim por diante para motivar a compra de uma edição específica de um texto clássico (18).

Foi o que aconteceu, por exemplo, com as cerca de cem edições do famoso Cortesão de Baldassare Castiglione, publicado pela primeira vez em italiano no ano 1528. Sucessivas edições foram acrescentando ao texto uma divisão em capítulos, além de sumário, índice e notas marginais. Um editor plagiou o índice de um concorrente, mas esqueceu que os números das páginas já não eram adequados para sua edição. Uma das conseqüências mais sérias desse aparato de acréscimos ou “paratexto” foi a mudança da mensagem do livro, que o transformou de um diálogo aberto que questiona regras de conduta em um livro que ensina como se comportar. O paratexto tornou-se um sistema autorreferente. O índice, por exemplo, baseava-se nas observações marginais e não mais no texto, e incluía orientações como “O cortesão deve saber dançar” (19). Não devemos subestimar o poder do formato na definição de percepções e expectativas, o Erwartungshorizont (***) dos leitores.

Mudanças também ocorreram na maneira de escrever: especificamente, surgiu a “nota de rodapé”, fenômeno típico do século XVIII, analisado num recente ensaio erudito e elegante de Anthony Grafton (20). Não se deve tomar muito literalmente o termo “nota de rodapé”. O que aconteceu de importante foi a difusão da prática erudita de providenciar algum tipo de orientação para o leitor de um determinado texto: onde encontrar provas e informação adicional, podendo essa orientação aparecer no próprio texto, na margem (“nota lateral”), no pé da página (“notas inferiores”), no fim do texto ou em apêndices especiais contendo documentos.

A ideia principal dessas novas práticas era facilitar a volta às “fontes”, com base no princípio de que a informação, como a água, era tanto mais pura quanto mais perto chegava da nascente. A nota histórica, como a descrição detalhada de uma experiência, tinha o intuito de permitir que o leitor repetisse a experiência se assim lhe aprouvesse.

A volta às fontes (ad fontes) foi um lema dos humanistas da Renascença bem como dos reformadores protestantes. Alguns historiadores do século XVI tiveram o cuidado de referir-se aos manuscritos em que baseavam seus relatos do passado. Como prática comum, todavia, a nota de rodapé remonta ao século XVII. No século XVIII alguns leitores estavam habituados a contar com ela, como testemunha a queixa de Horace Walpole a David Hume em 1758 a respeito da ausência de “referências nas margens” de sua obra History of England. Hume admitiu em sua resposta que a prática de apresentar referências “uma vez introduzida, deveria ser observada por todos os escritores”. Um novo código de conduta erudita fora estabelecido. Hoje, sem dúvida, precisamos de um código de conduta semelhante para a internet.

Finalmente, houve mudanças na organização da informação, especialmente com o surgimento da ordem alfabética em substituição à organização por assunto. A idéia da ordem alfabética não era nova (já fora empregada no século XI na enciclopédia bizantina conhecida como Suidas). A inovação agora era a abrangência dessa modalidade de organização e a forma como veio a suplantar classificações mais hierárquicas. Até o final do século XVII, a organização por ordem alfabética era bastante rara, a ponto de o editor de um livro de referência sobre o mundo muçulmano (Bibliothèque orientale de Herbelot) julgar necessário antecipar suas escusas, declarando que seu método “não provoca tanta confusão como se poderia imaginar”. De qualquer maneira, houve uma mudança a longo prazo a partir das enciclopédias do século XVI, como a Margarita Philosophica de Gregor Reisch, que foi organizada como o currículo das universidades e podia ser lida do início até o fim, até as enciclopédias do século XVIII organizadas em ordem alfabética para facilitar a consulta, o que virtualmente impossibilitava sua leitura do princípio ao fim.

As novas modalidades de leitura, escrita e organização da informação provocaram por sua vez suas próprias consequências imprevistas, tanto no campo social quanto no intelectual.

Uma das consequências sociais da organização da informação foi o surgimento de novas ocupações. A imprensa trouxe consigo não apenas um novo grupo social de editores, mas também aliou ocupações tais como a de revisor e bibliotecário. A eles se juntaram, nos séculos XVII e XVIII, na execução da tarefa de administrar materiais impressos, indexadores, editores e catalogadores profissionais ou semiprofissionais e compiladores de enciclopédias. Ainda era possível para um indivíduo compilar uma enciclopédia, como fez Pierre Bayle no fim do século XVII, ou Ephraim Chambers no início do XVIII. Todavia, a nova tendência era trabalhar em equipe, como no famoso caso da Encyclopédie ou, um pouco antes, no empreendimento do editor alemão Johann Heinrich Zedler de Leipzig. A enciclopédia de Zedler, Grosses Voolständiges Universal-Lexicon aller Künste und Wissenschaften, publicada em 64 volumes in-folio (duas colunas por página) entre 1732 e 1754, resultou dos esforços de nove colaboradores eruditos e (a partir do volume 19) um editor em tempo integral, Carl Günther Ludovici, que cuidava de problemas técnicos, entre eles a remissão recíproca (21). Em outras palavras, as novas enciclopédias ampliadas dependiam de uma diversidade profissional que era maior, do ponto de vista social e intelectual, do que a de seus predecessores.

A divisão do trabalho intelectual não se limitou a enciclopédias. Houve uma tendência geral para a especialização e fragmentação em detrimento do ideal geral do conhecimento. O surgimento da historia literária sugere que houve um deslocamento de objetivos: o mundo dos livros estava se tornando um objeto de estudo em si mesmo mais do que um meio de entender o mundo em sua amplitude. Bacon, como vimos, havia associado a imprensa com a pansofia. A trágica ironia foi que o surgimento da imprensa tornou esse ideal cada vez mais irrealista.

O escritor religioso Richard Baxter já observava a respeito da crescente fragmentação do conhecimento em seu Holy Commonwealth (1659): “Dividimos artes e ciências em fragmentos, de acordo com as limitações de nossas capacidades, e não somos tão pansóficos a ponto de uno intuitu enxergarmos o todo”. Talvez tenha ocorrido um avanço do conhecimento no nível coletivo, no sentido de que foram feitas novas descobertas e de que mais informação foi disponibilizada em materiais impressos. Mas no nível do indivíduo houve uma séria perda.

É difícil dizer quem foi o último polímata, mas pelo final do século XVII era evidente que essa espécie estava ameaçada. O estudioso inglês Meric Casaubon (filho de Isaac Casaubon, que era mais conhecido) escreveu uma apologia do que ele chamava de “conhecimentos gerais” em meados do século XVII, mas o tratado permaneceu no prelo até o final do século XX (22).

Leibniz conseguiu fazer contribuições originais em campos tão diversos como matemática e história, sem mencionar biblioteconomia. Todavia, alguns de seus mais famosos colegas do século XVII — como Jan Amos Comenius, Athanasius Kircher e Olaus Rudbeck — estiveram à beira da excentricidade, se é que não caíram nela, como se apenas a obsessão pelo estudo pudesse buscar o ideal da pansofia numa época em que os obstáculos práticos se tornavam cada vez maiores e mais óbvios do que antes.

O autor do artigo sobre gens de lettres da Encyclopédie estava mais resignado, declarando que “o conhecimento universal já não está ao alcance do homem” (la science universelle n’est plus à la portée de l’homme). Tudo o que se poderia fazer nas novas circunstâncias era tentar evitar a mesquinhez intelectual pelo incentivo ao “espírito filosófico”, estabelecendo conexões e extraindo as implicações mais amplas de estudos especializados. Esse conselho continua absolutamente pertinente para nós hoje.



NOTAS:

(1) Entre os mais importantes, L. Febvre & H.-J. Martin, L’apparition du livre (Paris, 1958), e E. Eisenstein, The printing press as an agent of change (2 v., Cambridge, 1979).

(2) Hägerstrand, Some unexplored problems in the modeling of culture transfer and transformation, in P.J. Hugill & D.B. Dickson (eds.) The transfer and transformation of ideas and material culture (College Station, Texas, 1988), p. 217-232.

(3) Discutido em M. Giesecke, Der Buchdruck in der frühen Neuzeit (1991, 2nd. ed. Frankfurt 1998), p. 168 e ss.

(4) M. Lowry, The world of Aldus Manutius (Oxford, 1979), p. 24-41; B. Richardson (1998) The debates on printing in Renaissance Italy, La Bibliofilia 100, p. 135-55.

(5) L. Davidico, citado em G. Fragnito, La Bibbia al rogo: la censura ecclesiastica e I volgarizzamenti della Scrittura: 1471-1605 (Bologna, 1997), p. 73.

(6) E. Johansson, The history of literacy in Sweden (1977: reproduzido em H.J. Graff (ed.), Literacy and social development in the West (Cambridge 1981), p. 151-182.

(7) G. Kitchin, Sir Roger l’Estrange (London, 1913).

(8) E.C. Tennant, The protection of invention: printing privileges in early Modern Germany, in G.S. Williams & S.K. Schindler (eds.) Knowledge, science and literature in early Modern Germany (Chapel Hill, 1996) p.7-48, em especial p.9.

(9) Citado em G. Cavallo & R. Chartier (eds.) A history of reading in the West (Cambrige, 1999), p. 234.

(10) Basnage, citado em H.H.M. van Lieshout, Dictionnaires et diffusion de savoir, in H. Bots & F. Waquet (eds.), Commercium litterarium (Amsterdam and Maarssen, 1994), p. 134.

(11) A. Baillet, Jugements des savants sur les principaux ouvrages des anciens (4 v., Paris, 1685-1686), prefácio.

(12) Chartier, L’ordre des livres (Aix-en-Provence, 1992).

(13) Serrai, Conrad Gessner (ed.) M. Cochetti (Rome, 1990); H. Zedelmaier, Bibliotheca Universalis und Bibliotheca Selecta: Das problem der Ordnung des gelehrten Wissens in der frühen Neuzeit (Cologne, 1992), p. 3-153.

(14) E. Canone, Bibliothecae selectae da Cusano a Leopardi (Florence, 1993); Zedelmaier (1992).

(15) N. McKendrick, J. Brewer & J.H. Plumb, The birth of a consumer society (London, 1982); R. Sandgruber, Die Anfänge der Konsumgesellschaft (Vienna, 1982); J. Brewer & R. Porter (eds.), Consumption and the world of goods (London, 1993); D. Roche, Histoire des choses banales (Paris, 1997).

(16) Citado em M. Phillips, Society and sentiment: genres of historical writing in Britain, 1740-1820 (Princeton, 2000), p. 294.

(17) R. Witmann, "Was there a reading revolution at the end of the eighteenth century?” in Cavallo & Chartier, p. 284-312.

(18) B. Richardson, Print culture in Renaissance Italy: the editor and the vernacular text, 1470-1600 (Cambridge, 1994).

(19) P. Burke, The fortunes of the courtier (Cambridge, 1995), p. 42-44, 73-75.

(20) A. Grafton, The footnote: a curious history (London, 1997).

(21) P.E. Carels & D. Flory, J. H. Zedler’s Universal Lexicon, in F.A. Kafker (ed.), Notable Encyclopaedias (Oxford, 1981), p. 165-195.

(22) M. Casaubon, General learning, R. Serjeantson editor (London, 1999).

Notas do blog:

(*) O termo é de Aristóteles, pensador que viveu há 24 séculos e ainda hoje é referência importante na filosofia, na política, nas artes, na ciência em geral. Ele nomeava topoi (plural de tópos) as verdades aceitas que formam a base dos entendimentos e orientam as escolhas cotidianas.

(**)"Temos motivos para temer que a multidão de livros que aumenta a cada dia de maneira prodigiosa não fará com que os séculos seguintes caiam em um estado tão desastroso quanto aquele em que os bárbaros lançaram os anteriores"

(***) Expressão de origem alemã (traduzida em inglês por horizon of expectation e en francês por horizon d'attente), que provém da fenomenologia de Husserl e da hermenêutica de Gadamer. Horizonte de expectativas.



(Ilustração : Jean-Antoine Laurent - Gutenberg inventant l’imprimerie, 1831)

quarta-feira, 1 de maio de 2024

LAST LETTER / A ÚLTIMA CARTA, de Ted Hughes (*)

 




What happened that night? Your final night.

Double, treble exposure

Over everything. Late afternoon. Friday.

My last sight of you alive.

Burning your letter to me, in the ashtray,

With that strange smile. Had I bungled your plan?

Had it surprised me sooner than you purposed?

Had I rushed it back to you too promptly?

One hour later – you would have been gone

Where I could not have traced you.

I would have turned from your locked red door

That nobody would open

Still holding your letter,

A thunderbolt that could not earth itself.

That would have been electric shock treatment

For me.

Repeated over and over, all weekend,

As often as I read it, or thought of it.

That would have remade my brains, and my life.

The treatment that you planned needed some time.

I cannot imagine

How I would have got through that weekend.

I cannot imagine. Had you plotted it all?

Your note reached me too soon – that same day,

Friday afternoon, posted in the morning.

The prevalent devils expedited it.

That was one more straw of ill-luck

Drawn against you by the Post-Office

And added to your load. I moved fast,

Through the snow-blue, February, London twilight.

Wept with relief when you opened the door.

A huddle of riddles in solution. Precocious tears

That failed to interpret to me, failed to divulge

Their real import. But what did you say

Over the smoking shards of that letter

So carefully annihilated, so calmly,

That let me release you, and leave you

To blow its ashes off your plan – off the ashtray

Against which you would lean for me to read

The Doctor’s phone-number.

My escape

Had become such a hunted thing

Sleepless, hopeless, all its dreams exhausted,

Only waiting to be recaptured, only

Wanting to drop, out of its vacuum.

Two days of dangling nothing. Two days gratis.

Two days in no calendar, but stolen

From no world,

Beyond actuality, feeling, or name.

My love-life grabbed it. My numbed love-life

With its two mad needles,

Embroidering their rose, piercing and tugging

At their tapestry, their bloody tattoo

Somewhere behind my navel,

Treading that morass of emblazon,

Two mad needles, criss-crossing their stitches,

Selecting among my nerves

For their colours, refashioning me

Inside my own skin, each refashioning the other

With their self-caricatures,

Their obsessed in and out. Two women

Each with her needle.

That night

My dellarobbia Susan. I moved

With the circumspection

Of a flame in a fuse. My whole fury

Was an abandoned effort to blow up

The old globe where shadows bent over

My telltale track of ashes. I raced

From and from, face backwards, a film reversed,

Towards what? We went to Rugby St

Where you and I began.

Why did we go there? Of all places

Why did we got there? Perversity

In the artistry of our fate

Adjusted its refinements for you, for me

And for Susan. Solitaire

Played by the Minotaur of that maze

Even included Helen, in the ground-floor flat.

You had noted her – a girl for a story.

You never met her. Few ever met her,

Except across the ears and raving mask

Of her Alsatian. You had not even glimpsed her.

You had only recoiled

When her demented animal crashed its weight

Against her door, as we slipped through the hallway;

And heard it chocking on infinite German hatred.

That Sunday night she eased her door open

Its few permitted inches.

Susan greeted the black eyes, the unhappy

Overweight, lovely face, that peeped out

Across the little chain. The door closed.

We heard her consoling her jailor

Inside her cell, its kennel, where, days later,

She gassed her ferocious kupo, and herself.

Susan and I spent that night

In our wedding bed. I had not seen it

Since we lay there on our wedding day.

I did not take her back to my own bed.

It had occurred to me, your weekend over,

You might appear – a surprise visitation.

Did you appear, to tap at my dark window?

So I stayed with Susan, hiding from you,

In our own wedding bed – the same from which

Within three years she would be taken to die

In that same hospital where, within twelve hours,

I would find you dead.

Monday morning

I drove her to work, in the City,

Then parked my van North of Euston Road

And returned to where my telephone waited.

What happened that night, inside your hours,

Is as unknown as if it never happened.

What accumulation of your whole life,

Like effort unconscious, like birth

Pushing through the membrance of each slow second

Into the next, happened

Only as if it could not happen,

As if it was not happening. How often

Did the phone ring there in my empty room,

You hearing the ring in your receiver –

At both ends the fading memory

Of a telephone ringing, in a brain

As if already dead. I count

How often you walked to the phone-booth

At the bottom of St George’s terrace.

You are there whenever I look, just turning

Out of Fitzroy Road, crossing over

Between the heaped up banks of dirty sugar.

In your long black coat,

With your plait coiled up at the back of your hair

You walk unable to move, or wake, and are

Already nobody walking

Walking by the railings under Primrose Hill

Towards the phone booth that can never be reached.

Before midnight. After midnight. Again.

Again. Again. And, near dawn, again.

At what position of the hands on my watch-face

Did your last attempt,

Already deeply past

My being able to hear it, shake the pillow

Of that empty bed? A last time

Lightly touch at my books, and my papers?

By the time I got there my phone was asleep.

The pillow innocent. My room slept,

Already filled with the snowlit morning light.

I lit my fire. I had got out my papers.

And I had started to write when the telephone

Jerked away, in a jabbering alarm,

Remembering everything. It recovered in my hand.

Then a voice like a selected weapon

Or a measured injection,

Coolly delivered its four words

Deep into my ear: ‘Your wife is dead.’



Tradução e notas de Marcus Salgado:



O que aconteceu naquela noite? Tua última noite.

Dupla, tripla exposição [1]

De tudo. Viva eu te vi pela última vez

No cair da tarde de sexta-feira

A queimar no cinzeiro com um estranho sorriso

A carta a mim endereçada. Atrapalhei teus planos?

A surpresa chegou antes do previsto?

Minha resposta foi rápida demais?

Uma hora mais tarde e terias rumado

Para onde eu não te pudesse encontrar

E eu teria me afastado de tua porta fechada e vermelha

A que ninguém abriria

Com tua carta na mão,

Um raio que não conseguiu chegar à terra.

Isso para mim teria sido um tratamento de choque

Que se repetiria durante todo o final de semana

Quando eu a lesse ou nela simplesmente pensasse.

Isso teria reordenado meu pensamento e minha vida

O tratamento que planejavas necessitava de tempo

Não posso imaginar como

Teria suportado aquele fim de semana.

Não posso imaginar. Tinhas já tudo planejado?

Tua mensagem chegou bem depressa até mim – no mesmo dia,

Sexta à tarde, postada pela manhã.

Expediram-na os demônios que sempre prevalecem

Esse foi mais um dos lances de má sorte

Que contra ti cometeu o correio

E que se acrescentou a teu fardo. Saí rapidamente pela neve

Já azulada em fevereiro. Anoitecia em Londres.

Chorei de alívio quando abriste a porta.

Confusão de enigmas em solução. Lágrimas precoces

Que não pude interpretar, que fracassaram ao comunicar

Sua verdadeira importância. Porém, o que disseste

Sobre as cinzas ainda fumegantes dessa carta

Destruída com tanto cuidado, com tanta calma,

Permitiu que eu partisse, que eu te deixasse

Para soprares as cinzas de teu plano, do cinzeiro

Sobre o qual te debruçarias para que eu lesse

O número de telefone do médico.

Minha fuga

Converteu-se em assombração

Desesperançado e insone, com todos os sonhos exauridos.

E eu só queria tornar a capturá-los, só queria

Cair em algum lugar fora desse vazio.

Dois dias sem fazer nada. Dois dias grátis.

Dois dias fora de qualquer calendário, mas roubados

Do mundo

Para além da realidade, dos sentimentos e dos nomes.

Minha vida amorosa tomou posse. Minha entorpecida vida amorosa

Com suas duas agulhas loucas,[2]

Tecendo sua rosa, perfurando e puxando com força

Na tapeçaria sua tatuagem sangrenta

Em algum lugar dentro de mim, atrás de meu umbigo,

Traçando esse brasão confuso,

Duas agulhas loucas cruzando os pontos,

Escolhendo entre meus nervos

Em função de suas cores, a me remodelar

Por dentro de minha pele, uma refazendo a outra

Como uma autocaricatura,

Seu obsessivo entrar e sair. Duas mulheres

Cada uma com uma agulha.

Naquela noite

Minha Susan dellarobbia.[3] Movimentei-me

Com a circunspecção

De uma chama num pavio. Toda minha fúria

Era um esforço abandonado para explodir

O velho globo sobre o qual as sombras dobram

Meu rastro denunciador de cinzas. Corri

De um lado a outro, olhando para trás, um filme invertido,

Rumo ao quê? Fomos até Rugby Street

Onde tu e eu começamos.[4]

Por que fomos lá? Com tantos lugares

Por que fomos lá? A perversidade

Na arte de nosso destino

Ajustou seus refinamentos para ti, para mim,

Para Susan. Jogo solitário

A que se entregava o Minotauro daquele labirinto [5]

Incluindo até mesmo Helen, no apartamento térreo.

Reparaste nela: personagem para um conto.

Não a conheceste. Poucos a conheceram

A não ser através dos ouvidos e da máscara delirante

De seu cão pastor-alemão. Tu nem mesmo a viste de relance.

Apenas te encolheste

Quando o cão demente lançou seu peso

Contra a porta enquanto deslizávamos pelo corredor

E o ouvíamos a engasgar em seu infinito ódio alemão.

Naquela noite de domingo ela deixou a porta aberta

Uns poucos centímetros

Susan saudou aqueles olhos negros, o infeliz

Sobrepeso e o rosto cativante que apareceram

Por trás da corrente do trinco. A porta se fechou.

Ouvimo-la a consolar o carcereiro

Dentro de sua cela, o canil, onde, dias depois,

Ela sufocou com gás a feroz criatura e a si mesma.

Eu e Susan passamos aquela noite

Em nosso leito nupcial. Não havia visto esta cama

Desde que nela nos deitamos em nossa primeira noite.

Não a levei de volta para minha cama.

Ocorrera-me que, com o final de semana,

Poderias aparecer, uma visita surpresa.

Apareceste, para tamborilar em minha sombria janela?

Permaneci com Susan, escondendo-me de ti,

Em nosso leito nupcial – o mesmo de que

Três anos depois a levariam para morrer

Naquele mesmo hospital onde, dentro de doze horas,

Eu te encontraria morta.

Na manhã de segunda

Levei-a ao trabalho, no centro,

E então estacionei meu veículo ao norte de Euston Road

E retornei para onde o telefone me esperava.

O que aconteceu naquela noite, em tuas horas,

Ninguém o sabe, é como se nunca tivesse acontecido.

A cumulação de toda tua vida,

Como um esforço inconsciente, como um nascimento

A fazer avançar a membrana de cada lento instante

Para o interior do seguinte, ocorreu

Como se não pudesse ocorrer

Como se não estivesse ocorrendo. Quantas vezes

Tocou o telefone em meu quarto vazio,

Tu a ouvir o toque no aparelho –

E de um lado e de outro da linha a memória

De um toque de telefone a se desvanecer

Na mente, como se já morta. Conto as vezes

Que possas ter caminhado até a cabine telefônica

No final de Saint George’s Terrace.[6]

Ali estás sempre que olho, saindo

De Fitzroy Road,[7] atravessando

Por entre as margens abarrotadas de açúcar sujo.

Em teu longo sobretudo negro

Tua trança enrolada na parte de trás do cabelo

Andas mas não consegues mover-te, ou acordar,

E já ninguém mais anda,

Andando pela balaustrada sob Primrose Hill [8]

Rumo à cabine telefônica nunca alcançada.

Antes da meia-noite. Depois da meia-noite. Novamente.

Novamente. Novamente. E, às raias da alvorada, novamente.

Em que posição dos ponteiros do relógio

Foi que fizeste tua última tentativa

Já bem além de minha capacidade de escutá-la, que sacudiste

O travesseiro daquela cama vazia? Uma última vez

Tocaste suavemente em meus livros e em meus papéis?

Quando cheguei o telefone dormia.

O travesseiro inocente. Meu quarto dormia,

Cheio da nívea luz matinal.

Acendi o fogo. Saquei meus papéis.

Mal tinha começado a escrever quando o telefone

Estremeceu, num alarme tagarela,

Recordando tudo. Em minha mão ele se recuperou.

E depois uma voz que soava como uma arma escolhida

Ou uma injeção medida

Friamente pronunciou as quatro palavras

No fundo de meu ouvido: “Sua esposa está morta”.

NOTA:


(*) Inédito até 2010 (quando foi resgatado do acervo da British Library e preparado para publicação no periódico New Statesman), “A última carta” se dispõe a lidar diretamente com o suicídio de Plath. O poema evoca o derradeiro encontro entre Ted e Sylvia, ocorrido poucos dias antes da morte da poeta. De acordo com a versão nele apresentada, Sylvia teria escrito um bilhete endereçado a Ted, com possível alusão ao suicídio. Postada na manhã de sexta, a correspondência deveria ter chegado às mãos do destinatário após sua morte, mas, por obra do eficiente serviço postal inglês, acabou por ser entregue no mesmo dia. A crer na narrativa do poema, Ted teria se dirigido à casa de Sylvia, onde ela queimou o bilhete, “com um estranho sorriso”. A publicação de “A última carta” gerou grande polêmica, tanto no que diz respeito à versão dos fatos apresentada por Ted Hughes, como no que se refere à edição póstuma de textos incompletos pertencentes ao espólio de um escritor. Quer se considere verídica ou fantasiosa a narrativa de Hughes, “A última carta” é um poema que, embora incompleto, contém inegáveis qualidades imagísticas e emocionais.



NOTAS DO TRADUTOR:



[1] Na linguagem fotográfica chama-se dupla ou tripla exposição quando a película é exposta, mais de uma vez, a imagens diferentes, que se sobrepõem. Trata-se de efeito artístico que gera uma aura fantasmagórica na fotografia.

[2] É possível pensar que na imagem das duas mulheres com suas agulhas loucas se encontra uma alusão ao comportamento emocionalmente instável de Sylvia Plath e Assia Wevill.

[3] Seria a poeta Susan Alliston, segundo Melvyn Bragg, um dos responsáveis pelo estabelecimento do texto e pela publicação do poema. O verso contém, ainda, uma possível menção à família de escultores florentinos della Robbia (Luca, Andrea e Giovanni), famosos pela graça, pela perfeição e pela sedução de suas figuras.

[4] Em março de 1956, na véspera de viajar para Paris, Sylvia Plath visitou Ted Hughes, que então residia no número 18 da Rugby Street – conforme se lê no poema “18 Rugby Street”, incluído em Birthday letters, livro de poemas publicado poucos meses antes da morte do poeta.

[5] A imagem da casa de Rugby Street como um labirinto também está presente no poema “18 Rugby Street”. Em certo momento, lê-se: “É mal-assombrada!/Quem entra nunca sai completamente!/Quem entra penetra um labirinto”.

[6] Próximo à Primrose Hill Road, portanto dentro do perímetro evocado pela geografia sentimental do poema.

[7] Sylvia Plath se matou na casa número 23 desta rua londrina. O endereço tem uma tradição literária, pois, antes de Sylvia, nele residiu o poeta W. B. Yeats.

[8] Nesta região de Londres situava-se um dos endereços de Sylvia e Ted quando casados: 3 Chalcot Square. Posteriormente, já separados, Sylvia voltou a habitar nas cercanias, em Fitzroy Road.



(Academia Brasileira de Letras, Revista Brasileira nº 69, ano XVIII, outubro-dezembro, 2011. P. 278-291.)



(Ilustração: Sylvia Plath - autorretrato, c.1946-1952)