quarta-feira, 29 de junho de 2016

A BICICLETA, Alexandre O'Neill










O meu marido
saiu de casa no dia
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior. 





(As horas já de números vestidas -1981)





(Ilustração: Iberê Camargo - ciclista)




domingo, 26 de junho de 2016

CRÍTICA DA RAZÃO PURA, de Wander Piroli









Ouvi primeiro o ruído de cascos pisando a grama, mas continuei deitado de bruços na esteira que havia estendido ao lado da barraca. Senti nitidamente o cheiro acre, muito próximo. Virei-me devagar, abri os olhos. O cavalo erguia-se interminável à minha frente. Em cima dele havia uma espingarda apontada para mim e atrás da espingarda um velhinho de chapéu de palha, que disse logo o seguinte:


— Filhos de uma puta.

Pois não — tentei eu, ainda entorpecido pela bebida do almoço. O velho encaminhou o cavalo até o fogão, abaixou-se na sela e inspecionou o que restava na lenha.

— Filhos de uma puta.

Os moirões — pensei, pondo-me de pé. E andando de costas, sem tirar os olhos do velho, fui até a entrada da barraca e chamei pelo Dr. Fontes.

— Fale, querida — disse ele lá de dentro.

— Depressa, doutor — pedi.

— Filhos de uma puta — repetiu o velho emputecido, agora examinando a cerca destruída.

— São os moirões — expliquei para o Dr. Fontes, que saía da barraca com o óculos torto na cara amarrotada, os cabelos em desordem.

— Calma — ponderou Dr. Fontes.

— Filhos de uma puta — insistiu o velho de pele vermelha curtida, ossudo.

Cainca apareceu fora da barraca, nu, com o calção na mão:

— Mas que porra é essa?

— Chega pra lá — ameaçou o velho lá de cima do cavalo.

Cainca enfiou o calção.

— Bem — disse eu — se é por causa dos moirões.

— E o senhor tem dúvida? Olha lá o que vocês fizeram com a cerca. Será que algum filho da puta ainda tem alguma dúvida?

— Filho da puta, não senhor — disse Cainca.

— Filho da puta, sim — confirmou o velho brandindo a espingarda.

— Filho da puta é a buceta da mãe.

O velho apontou a espingarda.

— Atira não — gritei, segurando Cainca pelas costas.

— Nada de violência — propôs o Dr. Fontes, colocando-se a meio caminho entre o velho e Cainca. — O senhor desculpe.

— Desculpar uma merda — intrometeu-se Cainca

— Cala essa boca podre, animal.

— Mas, doutor.

— Cala a boca.

— Cala a boca — disse eu também.

— Mas ele tá chamando a gente de filho da puta.

— Isso agora é secundário — disse o Dr. Fontes, tecnicamente.

— Pra mim não é.

— Sua mãe é uma santa — afiançou o Dr. Fontes. — Agora, cale-se.

Cainca acalmou-se. Soltei-o. Dr. Fontes dirigiu-se ao velho:

— Abaixe a arma, por favor.

—O quê?

— A espingarda, meu bravo. Olha — Dr. Fontes ergueu a mão forense — quanto aos moirões.

— Não quero conversa — cortou o velho.

— E o que é que o senhor quer então? — Cainca quis saber.

— Muita calma. — Dr. Fontes repetiu o mesmo gesto amistoso. — Eu quero dizer que retiramos os moirões, mas não vamos dar prejuízo a ninguém. Pelo amor de Deus.

O pessoal aqui é gente boa — observei eu modestamente.

— Gente boa? — O velho fez uma careta em cima do cavalo mantendo a espingarda firme na mão direita, enquanto a esquerda segurava a rédea de couro.

— O senhor está vendo — entornei. — Tudo aqui é gente boa. Viemos só dar uma pescada. E ninguém quer dar problema pra ninguém.

O velho relaxou-se um pouco, os olhos muito azuis no rosto fino e curtido de sol. Estávamos os três à sua frente, a cinco passos do cavalo acaboclado que assistia tudo em omisso silêncio.

— Tá certo — Cainca procurou ajudar, esforçando-se para imprimir à voz um tom sordidamente ameno e fraudulentamente conciliador. Tiramos os moirões. A gente errou, mas a gente paga.

Dr. Fontes meteu rápido a mão no bolso do macacão:

— É só o senhor falar quanto é, nós pagamos, pedimos desculpa se o senhor quiser — e pronto.

— Pagar? — rosnou o velho. — Pagar o quê?

— Os moirões, é evidente.

— Os moirões. Eu quero eles de volta.

Lá estavam os moirões, ou melhor, o resto dos moirões, metidos no fogáo cavado na terra e de onde ainda saía uma pífia fumaça. A dez metros da Rural, passava a cerca dividindo o campo imenso e montanhoso que se estendia verde pelo horizonte a fora, sem uma única árvore. Nada.

— Por favor — tornou o Dr. Fontes. — É só o senhor ter a bondade de dizer o valor dos moirões, nós pagamos.

— Quero os paus onde eles estavam — retrucou o velho. — Quero a cerca no mesmo lugar.

Mesmo assim, Dr. Fontes tirou um maço de notas da carteira. Mas não conseguiu sensibilizar o velho homem.

— Não quero saber de dinheiro — disse ele. — E só dar o dinheiro e está tudo resolvido? Invadir o terreno dos outros, arrebentar cerca, é?

— Nós estamos propondo um negócio correto — argumentou o Dr. Fontes. — Estamos propondo uma indenização. É o mesmo que refazer a cerca. E a gente paga até a mais, por causa do aborrecimento.

O velho encostou o cano da arma no pescoço imóvel do cavalo e ficou avaliando o Dr. Fontes com os seus enrugados olhos azuis.

— Certo? É só o senhor falar quanto é. — Dr. Fontes animou-se, exibindo a dinheirama aberta nas mãos.

— Quero a cerca como estava — redarguiu o velho — do mesmo jeito, no mesmo lugar.

— Puta que os bunda — disse Cainca.

— Assim é pior — observei.

— Porra, mas não tem jeito de conversar com ele.

— Deixe ficar — pedi, e depois me dirigi ao velho: — olha, o Dr. Fontes é advogado. Ele entende dessas coisas.

— Adevogado? corrigiu o velho, medindo o Dr. Fontes, cuja elegância de bota e macacão desbotado não endossava sua jurídica condição.

— Advogado — entusiasmei-me — e dos melhores. O que ele está propondo é o que está na lei. Se alguém dá um prejuízo tem que indenizar a outra parte.

Esperei que o velho reagisse. Ele se inclinou um pouco para a frente. Tive a impressão, sondando sua cara toda sulcada e curtida, que ele agora não estava se sentindo bem. Continuei:

— Nós destruímos sua cerca sem má intenção. Agora temos que pagar, que indenizar o senhor. Assim o assunto fica encerrado. O senhor fala é tanto, e nós pagamos.

— Quero a minha cerca — respondeu o velho. Ao mesmo tempo em que levava a mão à barriga murcha. Seu rosto estava começando a suar

— Pra mim este papo tá furado — disse Cainca; foi até a Rural e apanhou a sacola que estava dependurada na porta aberta.

— Larga isso aí — ordenou o velho

— Largar, é? — Cainca enfiou a alça no pescoço.

— Um momento — pediu o Dr. Fontes, e encaminhou-se para Cainca

— Cainca, você está piorando a situação.

— Desculpe, doutor, mas estou puto da vida.

— Eu sei, rapaz. Deixe a sacola aí até a gente chegar a um acordo.

— Dr. Fontes, por favor: o senhor e o Moacir conversam com ele. Eu vou só conferir as linhas.

Cainca ajeitou a sacola, deu as costas para o velho, desceu o pequeno barranco até alcançar a margem do Paraopeba. Começava a entardecer, e os últimos raios de sol reverberavam na água encachoeirada. Olhei para o Dr. Fontes e vi que tínhamos pensado a mesma coisa.

— Bem—disse ele para o velho. — Vamos dar uma pescada enquanto o senhor decide.

— Pescada? — O velho estava tenso, com o rosto um pouco mais pálido e molhado de suor.

— Olha— explicou o Dr. Fontes apanhando o molinete encostado à barraca. — O que nós podemos fazer é isso: pagar a cerca. Não podemos fazer mais nada. Queira desculpar.

Apanhei o caixotinho de minhocuçu e segui o Dr. Fontes, que já se encaminhava para o rio.

— Para aí— gritou o velho, com o cavalo virado em nossa direção e a espingarda à altura do ombro.

Paramos no topo do barranco.

— O senhor não vai fazer uma bobagem — disse o Dr. Fontes.

— Pare — ordenou novamente, embora já estivéssemos parados. A espingarda tremia em suas mãos e seu rosto estava incrivelmente desbotado.

— Calma — Dr. Fontes ergueu a mão. — O senhor não vai atirar na gente por causa de três pedaços de pau.

Cainca subiu o barranco e veio para o nosso lado:

— Porra, será que o velho aí querendo foder a gente?

— Fica quieto — disse eu.

—Acho que nós temos — ia dizendo o Dr. Fontes, quando vimos a espingarda cair e, logo em seguida, o velho levantar os braços espasmódicos à altura do peito, desprender-se do cavalo, tombar de cabeça no chão, ficando com um dos pés agarrado no estribo.

Cainca precipitou-se para o cavalo e segurou as rédeas. Dr. Fontes amparou o corpo do velho, que agora estava sem chapéu, enquanto eu retirava sua botina do estribo. Dr. Fontes estendeu-o no chão. O corpo do velho tremia e, dentro da bocarra, de dentes podres e poucos, a língua parecia que estava dando um nó. Quietou-se em seguida, os olhos esbugalhados.

Dr. Fontes sentiu o pulso e depois pôs o ouvido no peito do velho e procurou escutar. Ergueu-se contrariado.

— Puta merda — disse ele.

— Por Deus — disse eu. — Tem certeza?

— Puta merda, se tenho.

— Olha de novo, doutor.

— Não há mais nada para olhar — disse o Dr. Fontes.

Cainca largou as rédeas do cavalo e foi logo juntando as nossas coisas que andavam pelo chão.

— Sacanagem — disse o Dr. Fontes, dirigindo-se para a barraca.

Enquanto Cainca recolhia as varas na beira do rio, ajudei o Dr. Fontes a desmanchar a barraca e dobrar a lona. Pusemos tudo dentro da Rural. Olhamos para o cavalo de cabeça baixa, omisso. Olhamos para o velho esparramado no chão, com os olhos fixos no céu todo azul, sem uma única nuvem. Olhamos em volta para ver se havia mais alguma coisa para recolher. Estava tudo certo.

— E agora, doutor? — disse eu.

— Agora?

— O que é que vamos fazer?

— Foda-se — disse o Dr. Fontes entrando na Rural.


(Os melhores contos)




(Ilustração: escultura de Elias Vitalino - homem a cavalo)



quinta-feira, 23 de junho de 2016

A CATEDRAL, de Alphonsus de Guimaraens








Entre brumas ao longe surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a benção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Poe-se a luz a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu tristonho
Toda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem acoitar o rosto meu.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"




(Ilustração: John Constable - Salisbury Cathedral from the Bishop's Garden)



segunda-feira, 20 de junho de 2016

UMA GALINHA, de Clarice Lispector




Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: “E dizer que a obriguei a correr naquele estado!” A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.



(Laços de Família)



(Ilustração: Zevi Blum - bird of property)


sexta-feira, 17 de junho de 2016

CANTO NUPCIAL , de Ivo Barroso








Agora que estás amadurecida para o amor

e em teu sexo a peregrinação das luas se sucede,

escuta, Amada, o meu canto nupcial.

De tua fronte penderão corimbos,

anêmonas e as últimas pervincas dilatadas em maio;

teus seios recenderão a malvas adormecidas

no sereno das madrugadas suspensas;

uma orquídea equatorial, grande como um símbolo,

cingirás ao ventre

e, em teu sexo nu, a flor estonteante

de tua própria pureza conservada.

Quero-te assim — floral, assim meio bárbara,

que o nosso amor contém um pouco da força dionisíaca

da terra;

e teu ventre redondo — abrigo de sóis —

palpita na esperança genital da espécie.

No chão,

tomando-te os cabelos, ansiosa de meu amor de esposo,

gritarás aos caules que nos cercam,

para as frondes que nos cobrem,

que propício é o tempo de tua flor esmagada

se tornar em fruto.

E rolaremos nos rituais sagrados da progênie:

teus seios — como duas luas gêmeas — crescerão

em suas fases;

teu ventre, penetrado de vida, se distenderá

na lenteza das horas

e o próprio chão em torno se gretará pelas raízes

que emergem sôfregas de ser.




(1952) 


(Ilustração: Alyssa Monks)





terça-feira, 14 de junho de 2016

A CAOLHA, de Júlia Lopes de Almeida





A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.

O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante.

Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa destilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda gente.

Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa fábrica de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que ia crescendo, ia-se a pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora…

Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.

Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.

Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe pagasse com um beijo todas as amarguras da existência?

Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para o triste coração de mãe! Mas… os beijos foram escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos braços e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela onde não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!

Ela compreendia tudo e calava-se.

O filho não sofria menos.

Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo – o filho da caolha.

Aquilo exasperava-o; respondia sempre:

– Eu tenho nome!

Os outros riam e chacoteavam-no; ele se queixava aos mestres, os mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los – mas a alcunha pegou. Já não era só na escola que o chamavam assim.

Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou outra janela dizerem: o filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!

Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!

As quitandeiras, onde ia comprar as goiabas ou as bananas para o lanche, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros, e, muitas vezes, afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:

– Taí, isso é para o filho da caolha!

O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado:

– Filho da caolha, filho da caolha!

O Antonico pediu à mãe que não o fosse buscar à escola; e muito vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas.

A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.

Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a chamá-lo – o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.

Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda: os seus colegas agruparam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais sobre o pobre Antonico!

Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupava-o: tinha medo que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!

Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos companheiros; quando o mestre dizia: sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto nos lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.

Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! Amava como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros como veludos e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia, em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento de esquecida ternura!

Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! Tornara a encontrar o seu querido filho! Pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia consigo:

– Sou muito feliz… o meu filho é um anjo!

Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjecturas.

Ao princípio pensava: – É o pudor.

Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de – nora da caolha, ou coisa semelhante!

O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão práticos!

Depois o seu rancor se voltou para a mãe.

Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; iria considerar-se humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente…

Salvava assim a responsabilidade do protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor…

Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa levava o seu projeto e a decisão de o expor à mãe.

A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo engordurado. O Antonico pensou: “Ao dizer a verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de… uma tal criatura?” Estas últimas palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:

– Limpe a cara, mãe…

Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:

– Afinal, nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!

– Foi uma doença, – respondeu sufocadamente a mãe – é melhor não lembrar isso!

– E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?

– Porque não vale a pena; nada se remedeia…

– Bem! Agora escute: trago-lhe uma novidade. O patrão exige que eu vá dormir na vizinhança da loja… já aluguei um quarto; a senhora fica aqui e eu virei todos os dias saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma coisa… É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!…

Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olhar desconfiado e medroso.

A caolha se levantou e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém:

– Embusteiro! O que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!

O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.

Ela o acompanhou, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cabaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.

O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.

Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho – murcho e sujo de pus; via a sua atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante.

Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a procurava.

Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo o que houvera.

A madrinha escutou-o comovida; depois disse:

– Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ela não quis, aí está!

– Que verdade, madrinha?

Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho – queria mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz se arrependera das palavras que dissera e tinha passado a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas… Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe toda a ação.

A madrinha do Antonico começou logo:

– O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito!

– Cala-te! – murmurou com voz apagada a caolha.

– Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha, rapaz! Quem cegou a tua mãe foste tu!

O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:

– Ah, não tiveste culpa! Eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu o enterraste pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!

O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:

– Pobre filho! Vês? Era por isto que eu não queria dizer nada!



(Ilustração: Pablo Picasso - Celestina)










sábado, 11 de junho de 2016

LUIZ BOEIRA DA PAIXÃO, de Priscila Merizzio






os segredos que ele guarda
casado há 40 anos com a mulher

no lugar de seu coração
gira o ventilador centrífugo
da máquina de lavar

batendo as roupas
dos filhos adultos
como macacõezinhos
de bebês

o cérebro raciocina na mesma
frequência do aspirador de pó
Eletrolux © / suga sonhos
esquecidos na lua de mel

ela está mais atenta à precisão
simétrica do corte das cebolas
do que nos seios
— tão formosos
como há 40 anos

suas costas sardentas desnudas
no vestido puído são déjà vu
dos cabelos longos que cortinavam
seu corpo lânguido nos anos 70

a filha mais velha reflete a juventude
da mãe / paternal, ele pede a ela
para que não ande só de calcinha
pela casa

não quer se lembrar da mulher
coquete que hoje dorme
ao seu lado como se fosse
sua irmã

ela lustra o assoalho com a diligência
das indianas afagando falos sagrados de pedra

ele namorou com os olhos
a colega de trabalho barbeando-se
no espelho de mão da mulher

sempre ela: a mulher

no domingo, a levará ao cinema
comprará pipocas, refrigerante
alisará seus seios por cima da roupa
— tão formosos como há 40 anos





(Ilustração: Lucian Freud- Ib and her husband)