terça-feira, 29 de junho de 2021

SOL VERMELHO, de Fabiano Calixto

 






Em memória de todos aqueles que, além de acreditar,

lutaram por um mundo melhor



1.

cada vez que você respira

é como se um anzol

mergulhasse fundo

em minhas retinas

e arrancasse

do abismo dos meus olhos

lágrimas de outro coração

um coração baleado ao meio-dia

por um soldado do governo

sob um sol de chumbo e miséria

um coração engolido pelo monstro do SNI

meu coração queimado com pontas de cigarro

seu coração, exausto e quebrado, no pau de arara

estuprado pelas hóstias elétricas do Papa

cineminha obsceno do maldito empresário dinamarquês

corações trocados por moedas pelos cabos anselmos

pelos generais, pelos fascistas, pela classe média

corações estourados, carregados sujos e semimortos

pelos covardes combos da folha da manhã

da garganta da gárgula

a noite carbônica

derrama-se

sobre os párias e vira-latas

sobre todo o concreto armado

sobre os cadáveres



2.



come panetone com mostarda, louco,

e vê nos food trucks

as cabeças humanas

prontas para petisco

vê as bocas podres

da rataria capitalista

cheias de água e pus

e sede de sangue

despida brutalmente pelos policiais,

fui sentada na “cadeira do dragão”,

sobre uma placa metálica,

pés e mãos amarrados,

fios elétricos ligados ao corpo

tocando a língua,

ouvidos,

olhos,

pulsos,

seios

e órgãos genitais



3.



Bacuri

ávida, a utopia saliva feito carne viva

Bacuri

luta contra a manseira, essa rosa fria

Bacuri

gênio da guerra retórica, libertária lábia

Bacuri

que sabia que só a coragem é sábia

Bacuri



Bacuri

nosso carnaval não chegou

e estes dias choram

pela aurora batalhadora

mas ainda há tempo

de repassar aos moços

a metralhadora de sonhos

(os malditos agora

depois de nos quebrar

o coração

nos cobram

a luz do verão)

não há mais cobertor de lã

para o seu intenso frio sul-americano

e seus olhos ainda fitam, camarada,

a fantasmagoria

do centro da cidade



no rádio, Inglaterra x Tchecoslováquia

chumbo na luz dos postes, bala na Variant

look, we don’t like this kind of method

but it’s the only way to save our political prisoners

you know very well they are suffering all kinds of tortures

and some of them are going to be murdered

apenas é noite

há sardinhas de semolina, cebolas roxas

um madrigal lúgubre nas artérias

...

40 presos políticos em liberdade



5.



Capitão! Ó meu Capitão!

...

meu Capitão não responde

seus lábios estão pálidos e quietos

...

para você, mil ramos de flores

e toda a multidão nas ruas



6.



Marighela,

nossos olhos

ainda choram

no futuro vazio

escuro e baço

onde um velho de olhos citrinos

e bigodes escuríssimos

que teve os rins rasgados

por uma baioneta

por se recusar a amamentar tubarões

com seu suor

foi enterrado com suas muletas

a lua pregada no céu

como a angústia

nesta redoma de recusas

onde o rastro dos astros

se faz perceptível

algumas campânulas azuis

perfumando a palavra adeus



7.



não somos os únicos mortos da aldeia,

Tito

agora vejo você tocando violão

num dia qualquer de inverno

com seus óculos grandes, barba de Trotsky

numa fotografia

do arquivo dos Frades Dominicanos

antes de ter conhecido a sucursal do inferno

antes de terem te dado a “hóstia sagrada”

antes de terem esmagado seus testículos

toda vez que passo pela Bento Freitas

(vindo da rua Aurora — onde estão

enterrados os pés de Mário de Andrade)

lembro da Livraria Duas Cidades

lembro destes versos seus:

uma Nazaré humana,

abrigo dos pobres,

sustento dos fracos

em paisagens distantes

agora é um dia de nevasca forte

sem vinho, pão ou parábola

os sonhos todos estilhaçados

num dia frio

na copa de um álamo

é melhor morrer do que perder a vida



(Revista Palavra; julho 2014)



(Ilustração: Debora Arango (1907-2005) - the goodbye)



sábado, 26 de junho de 2021

O VAZIO É BELO, de Naomi Klein

 


Agora a terra estava corrompida aos olhos de Deus, e a terra estava consumida pela violência. E Deus viu que a terra estava corrompida; porque toda carne havia corrompido seus caminhos sobre a terra. E Deus disse a Noé:”Eu determinei que fosse dado um fim a toda carne, porque a terra está consumida pela violência por causa deles; agora Eu vou destruí-los junto com a terra'’

— Gênesis 6: 11



Choque e Pavor são estados que criam medos, perigos e destruição incompreensíveis para a maioria das pessoas, para elementos/setores específicos da sociedade ameaçada ou para suas lideranças. A natureza, sob a forma de tornados, furacões, terremotos, enchentes, incêndios incontroláveis, fome e epidemias, pode engendrar Choque e Pavor.

— Shock and Acre: Achieving Rapid Dominante, 
a doutrina militar para a guerra dos EUA no Iraque'





Conheci Jamar Perry em setembro de 2005, no grande abrigo da Cruz Vermelha em Baton Rouge, Louisiana. O jantar estava sendo distribuído por jovens cientologistas sorridentes, e ele estava na fila. Eu tinha fracassado ao tentar falar com os desabrigados sem acompanhamento da mídia e agora fazia o melhor para me misturar, uma canadense branca num mar de afro—americanos sulistas. Entrei na fila atrás de Perry e pedi—lhe que conversasse comigo como se fôssemos velhos amigos, o que ele fez com toda a gentileza. Nascido e criado em Nova Orleans, ele tinha se ausentado da cidade inundada por uma semana. Aparentava uns 17 anos, mas me contou que tinha 23. Perry e sua família haviam esperado longamente pelos ônibus que levariam os desabrigados; como não chegaram, eles resolveram caminhar sob o sol escaldante. Finalmente, acabaram parando aqui, um centro de convenções imenso, normalmente utilizado para eventos da indústria farmacêutica e como arena para campeonatos de lutas, e que agora estava ocupado por duas mil macas e uma multidão de pessoas exaustas e irritadas, patrulhadas por impacientes soldados da Guarda Nacional recém-chegados do Iraque.

As notícias que corriam naquele dia dentro do abrigo diziam que Richard Baker, um proeminente congressista republicano da cidade, havia declarado a um grupo de lobistas que “Nós finalmente fizemos a limpeza dos prédios públicos de Nova Orleans. Nós não podíamos fazer isso, mas Deus fez.”’ Joseph Canizaro, um dos mais ricos empreendedores de Nova Orleans, tinha acabado de expressar um sentimento parecido: “Acho que nós temos um terreno limpo para começar de novo. E com esse terreno limpo, temos algumas oportunidades muito grandes.”‘ Durante toda aquela semana, a Assembleia Estadual da Louisiana, em Baton Rouge, havia ficado cheia de lobistas das corporações preocupados em abocanhar aquelas grandes oportunidades: impostos menores, pouca regulamentação, trabalhadores mais baratos e “uma cidade menor, mais segura” — o que, na prática, significava planos para derrubar os projetos públicos de construção de moradias, substituindo—os por condomínios. Ouvindo aquela conversa sobre “novos começos” e “terrenos limpos” era quase possível esquecer o vapor tóxico produzido por entulho, fluidos químicos e dejetos humanos a poucas milhas dali, ao longo da estrada.

Dentro do abrigo, Jamar não conseguia pensar em outra coisa: “Eu realmente não vejo isso como uma limpeza da cidade. O que eu vejo é que muita gente acabou morrendo na parte alta da cidade. Gente que não deveria ter morrido.”

Ele falava baixinho, mas um homem mais velho que estava na nossa frente na fila escutou e bradou: “O que há de errado com essa gente de Baton Rouge? Isso não é uma oportunidade. Isso é uma tragédia desgraçada. Eles são cegos?”

Uma mãe com duas crianças se manifestou: “Não, eles não são cegos, eles são maus. Eles enxergam muito bem.”

Entre os que vislumbraram uma oportunidade nas inundações de Nova Orleans estava Milton Friedman, grande guru do movimento pelo capitalismo sem milhões e o homem a quem também foi creditada a autoria do livro-texto para a hipermóvel economia global contemporânea. Aos 93 anos de idade e com a saúde debilitada, “Tio Miltie”, como era conhecido por seus seguidores, ainda assim encontrou forças para escrever um editorial no Wall Street Journal três meses depois que os diques estouraram. “A maior parte das escolas de Nova Orleans está em ruínas”, Friedman observou, “assim como os lares das crianças que estudavam ali. As crianças agora estão espalhadas por todo o país. Isso é uma tragédia. É também uma oportunidade para reformar radicalmente o sistema educacional”.

A ideia radical de Friedman sustentava que, em vez de gastar uma parte dos bilhões de dólares do dinheiro da reconstrução refazendo e melhorando o sistema escolar público preexistente em Nova Orleans, o governo deveria fornecer vouchers para as famílias, os quais elas poderiam gastar nas instituições privadas, muitas com fins lucrativos, que seriam subsidiadas pelo Estado. Tornara-se crucial, como Friedman escreveu, que essa mudança fundamental não fosse apenas uma solução emergencial, mas se convertesse numa “reforma permanente”.

Uma rede de associações de pensamento direitista fechou com a proposta de Friedman e aportou em Nova Orleans após a tempestade. A administração de George W. Bush sustentou seus planos com dez milhões de dólares para converter as escolas da cidade em “escolas licenciadas”, instituições fundadas pelo poder público e dirigidas por entidades privadas, de acordo com suas próprias regras. As escolas licenciadas estão causando uma polarização profunda nos Estados Unidos, e especialmente em Nova Orleans, onde são vistas por muitos pais afro—americanos como um meio de reverter os ganhos do movimento pelos direitos civis, que garantiram a todas as crianças o mesmo padrão de educação. Para Milton Friedman, contudo, o conceito integral de um sistema educacional administrado pelo Estado cheirava a socialismo. De seu ponto de vista, as únicas funções do Estado seriam “proteger a nossa liberdade, tanto contra os inimigos externos quanto contra os nossos próprios concidadãos: preservar a lei e a ordem, reforçar os contratos privados, fomentar os mercados competitivos”. Em outras palavras, suprir as necessidades dos policiais e dos soldados — qualquer outra coisa, inclusive a garantia de uma educação livre, seria considerada uma interferência injusta no mercado.

Em gritante contraste com a lentidão em que os diques eram consertados e a rede elétrica reparada, o leilão do sistema educacional de Nova Orleans foi realizado com precisão e rapidez militares. Dentro de 19 meses, e com a maioria dos habitantes mais pobres ainda exilados, o sistema de escolas públicas de Nova Orleans tinha sido completamente substituído por escolas licenciadas, sob administração privada. Antes do furacão Katrina, o conselho de educação administrava 123 escolas públicas; agora, cuidava de apenas quatro. Antes daquela tempestade, havia somente sete escolas licenciadas na cidade; agora, existiam 31. Os professores de Nova Orleans costumavam ser representados por um sindicato bastante forte; agora, os acordos sindicais tinham sido rasgados, e seus 4.700 membros tinham sido todos demitidos. Alguns dos professores mais jovens foram readmitidos pelas escolas licenciadas, com salários reduzidos; a maioria foi posta na rua.

Nova Orleans se tornara, de acordo com o New York Times,“o laboratório mais importante do país para ampliar o uso das escolas licenciadas”, enquanto o American Enterprise Institute, uma entidade afiliada ao pensamento de Friedman, manifestava seu entusiasmo porque “o Katrina havia realizado em um dia aquilo que os reformadores educacionais da Louisiana vinham tentando fazer durante anos, sem sucesso”. Os professores da rede pública, por sua vez, observando que o dinheiro destinado às vítimas da enchente estava sendo desviado para erradicar o sistema público e substituí-lo pela privatização, chamavam o plano de Friedman de “apropriação do terreno educacional”."

Eu chamo esses ataques orquestrados à esfera pública, ocorridos no auge de acontecimentos catastróficos, e combinados ao fato de que os desastres são tratados como estimulantes oportunidades de mercado, de “capitalismo de desastre”.

O editorial de Friedman sobre Nova Orleans acabou se tornando a sua última peça pública de recomendação política; ele morreu menos de um ano depois, em 16 de novembro de 2006, aos 94 anos de idade. Privatizar o sistema educacional de uma cidade norte-americana de médio porte pode parecer uma preocupação modesta para o homem que foi considerado o economista mais influente do último meio século, alguém que contou, entre seus discípulos, com diversos presidentes dos Estados Unidos, primeiros-ministros britânicos, oligarcas russos, ministros da Fazenda poloneses, ditadores do Terceiro Mundo, secretários do Partido Comunista Chinês, diretores do Fundo Monetário Internacional, além dos três últimos presidentes do Banco Central norte-americano. Apesar disso, a sua determinação de aproveitar a crise de Nova Orleans para fomentar uma versão fundamentalista do capitalismo era também um adeus curiosamente adequado ao professor baixinho e de energia ilimitada, que, no seu apogeu, se descreveu como “um pastor fora de moda pregando o sermão dominical”.

Por mais de três décadas, Friedman e seus poderosos seguidores se dedicaram a aprimorar essa mesma estratégia: esperar uma grave crise, vender partes do Estado para investidores privados enquanto os cidadãos ainda se recuperavam do choque, e depois transformar as “reformas” em mudanças permanentes.

Num de seus mais influentes ensaios, Friedman elaborou em termos teóricos a tática nuclear do capitalismo contemporâneo, que eu aqui denomino de doutrina do choque. Ele observou que “somente uma crise — real ou pressentida — produz mudança verdadeira. Quando a crise acontece, as ações que são tomadas dependem das ideias que estão à disposição. Esta, eu acredito, é a nossa função primordial: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las em evidência e acessíveis até que o politicamente impossível se torne o politicamente inevitável”. Algumas pessoas costumam estocar alimentos enlatados e água para enfrentar grandes desastres; os seguidores de Friedman estocam ideias em defesa do livre mercado. Tão logo uma crise se instalava, o professor da Universidade de Chicago defendia que era essencial agir rapidamente, impondo mudanças súbitas e irreversíveis, antes que a sociedade abalada pela crise pudesse voltar à “tirania do status quo”. Ele calculava que “uma nova administração tem de seis a nove meses para realizar as principais mudanças; caso não agarre a oportunidade para agir de modo decisivo durante esse período, não terá outra chance igual. Como uma variação das advertências de Maquiavel, no sentido de que os “sofrimentos” devem ser infligidos “todos de uma só vez”, este foi um dos legados estratégicos mais duradouros de Friedman.



(A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre; tradução Vania Cury)



(Ilustração: David Bates – Katrina)

quarta-feira, 23 de junho de 2021

NO GRANDE HOTEL DO PORTO, de Eucanaã Ferraz

 




Gaivotas são invenções de Da Vinci, crianças

loucas, tesouras loucas, cães aéreos



de tão lépidos. Folhas em branco: a língua do vento.

Mas por que àquela hora tal agitação de asas?



Se desejavam algo, o que fosse, nada lhes poderia

dar ou emprestar, Imperador de uma tal pobreza,



a fronte cingida apenas pela febre. Era preciso

dizer àquelas aves que não havia água, que



talvez e sempre só tenha havido solidão

e mágoa em torno dele e dentro,



búzio vazio e mudo, poço exangue,

corredor sem portas, poço horizontal,



corredor para o fundo. Lembra: o médico

preceituara repouso, purgantes, filtros, infusões



e sua voz, salina, à maneira de cristais caía

dos olhos, não vinha da boca, e se acumulava



em cacos verdes na bacia redonda e grossa

dos óculos. Tudo inútil. Tudo nada.



Por que gaivotas àquela hora? Verso que se

lhes assemelhasse era um espalhamento de sílabas



atordoadas, felizes de não terem sentido, puro alarde

do ritmo, o mais alto, sobre o chão. Mas



nunca soubera o que fosse isso. E ali, a cortar o céu

noturno do Porto, a voz delas era uma foz estridente,



a mais terrível canção de exílio. Não deveria haver

jamais gaivotas sobre o teto de nenhum hotel,



proibidos tais gritos brancos de espuma, pois

a noite tem de ser a noite, sem pontes, hermética.



No entanto, lá estavam elas, violentas,

rodopiando como lâminas inglesas, azuis.



Era preciso considerar: um hotel ensina-nos mais

que todas as filosofias: não ficar, não ter, não ser.



E na massa escura de tudo, imaginou com a ironia

que lhe restava: um dia, a pompa de uma placa



(a Europa e seus ouropéis) à porta de entrada:

“Por ocasião da última visita realizada à Cidade



Invicta em dezembro de 1889, os Imperadores do Brasil

Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina estiveram



hospedados neste hotel.” Não dirão que já não eram

senão, mal e mal, um homem, uma mulher.



Calarão que a Imperatriz – que já não era – deixara,

ali, de ser hóspede de tudo. Aqui está a chave!



Sobre o telhado, a cama, a mulher morta,

a insônia, elas, as gaivotas, ensinariam



(se ensinassem algo) àquele homem,

àquele miserável, mais que toda ciência



e toda literatura: nadar, andar a vau, elevar-se

alegre, planar, fazer de tudo campo aberto



de abrir-se. A régua que carregam

nunca cega.



(Rua do mundo)





(Ilustração: David Witbeck - Gaivotas da manhã)

domingo, 20 de junho de 2021

PÔR TERRA NO MEIO, ENTRE MIM E MINHA MÃE, de Camilo José Cela

 


 

Ia já para dois meses que nos tínhamos casado, quando observei que minha mãe continuava com as mesmas manhas que antes de eu ter estado preso. Fazia-me ferver o sangue com os seus gestos sempre ásperos e desabridos, com a sua conversa cortante e sempre cheia de intenções, com o tom de voz com que costumava falar-me, em falsete, e tão fingido como ela. À minha mulher, ainda que transigisse com ela — não tinha outro remédio —, não podia ver nem pintada e dissimulava tão mal a sua má vontade que Esperança, um dia em que se sentiu farta, pôs-me a questão de tal maneira que não vi outro caminho senão pôr terra no meio. "Pôr terra no meio" se diz quando duas pessoas se separam para duas localidades distantes, mas, vistas bem as coisas, também se pode dizer quando entre o chão que um pisa e outro dorme há vinte pés de altura.

Dei muitas voltas na cabeça com a ideia de emigrar; pensei na Corunha, em Madri ou em mais perto, na capital da província, mas o caso é que não sei se por covardia, se por falta de decisão — fui adiando a coisa, adiando, até que, quando resolvi partir sem nada, a não ser comigo mesmo e as minhas recordações, quis pôr terra no meio... A terra que não foi suficientemente grande para afugentar a minha culpa... A terra que não teve largura nem comprimento suficientes para desaparecer perante o clamor da minha própria consciência... Queria pôr terra entre mim e a minha sombra, entre mim e o meu nome e as minhas recordações...

Há momentos em que mais vale uma pessoa calar-se como um morto, desaparecer de repente como que tragado pela terra, desfazer-se no ar como uma baforada de fumo... Momentos que não se conseguem, mas que se chegássemos a consegui-los nos transformariam em anjos, evitariam que continuássemos ligados ao crime e ao pecado e nos libertariam deste lastro de carne contaminada, da qual, posso assegurar-lhe, não voltaríamos a recordar-nos — tal horror lhe ganhamos — a não ser que alguém se preocupe em nos atirar com as suas escórias para nos ferir o olfato da alma... Nada fede tanto e tão mal como a lepra que o passado deixa na consciência, como a dor de não sair do mal, deixando apodrecer este rosário de esperanças mortas que é a nossa vida.

A ideia da morte chega sempre com passos de lobo, com um andar de cobra, como os piores pensamentos. As ideias que nos transtornam nunca chegam de repente; o que é repentino arrasta-nos por uns momentos, mas deixa-nos, quando se vai, largos anos de vida. Os pensamentos que nos enlouquecem com a pior das loucuras, a da tristeza, chegam sempre aos poucos e sem darmos por isso, como a tísica invade os peitos e a neve os campos. Avança, fatal, incansável, mas lenta, vagarosa, regular como o pulso. Hoje não a notamos; talvez nem mesmo amanhã, nem depois de amanhã nem durante um mês inteiro. Mas passa esse mês e começamos a sentir a comida amarga e dolorosa toda a recordação; já estamos contaminados. Com o decorrer dos dias e das noites vamos ficando insociáveis, solitários; as ideias fervem-nos na cabeça, as ideias que vão fazer com que nos cortem a cabeça, talvez para que não continue tão atrozmente a trabalhar. Podemos mesmo passar assim semanas inteiras; os que nos rodeiam já se acostumaram à nossa secura e já nem sequer estranham a nossa estranha maneira de ser. Mas um dia o mal cresce, como as árvores, e torna-se imenso, e já não saudamos as pessoas; e voltam a sentir-se como seres esquisitos ou enamorados. Vamos enfraquecendo, enfraquecendo e a nossa barba hirsuta é cada vez mais rala. Começamos a sentir um ódio que nos mata; já não aguentamos que nos olhem; dói-nos a consciência, mas — não importa! — antes assim. Ardem-nos os olhos que se enchem de uma água venenosa quando olhamos fixamente. O inimigo vê a nossa atenção, mas está confiado; o instinto não mente. A desgraça é alegre acolhedora e sentimos prazer em deixar arrastar os nossos sentimentos. Quando fugimos como as corças, quando o ódio sobressalta os nossos sonhos, já estamos minados pelo mal; já não há solução, não há arranjo possível. Começamos a cair, a cair vertiginosamente para não nos tornarmos a levantar. Talvez para nos levantarmos um pouco na última hora, antes de a cabeça nos cair no inferno. É uma má coisa.

Minha mãe sentia uma insistente satisfação em tentar-me a mim, em quem o mal ia crescendo como as moscas quando pressentem o cheiro dos mortos. A bílis que traguei envenenou-me o coração e tão maus pensamentos cheguei então a albergar que acabei por me assustar com a minha própria coragem. Nem queria vê-la; os dias passavam iguais, com a mesma dor a rasgar-me as entranhas, com os mesmos presságios de tormenta a enevoarem-me a vista.

No dia em que decidi fazer uso da navalha, estava já tão oprimido, tão certo de que o mal só podia resolver-se com sangue, que não me aterrorizou, nem um momento, a ideia de matar minha mãe. Era uma coisa fatal que acabaria por vir e veio, que tinha de cumprir e que, mesmo que o quisesse, não podia evitar, porque me parecia impossível mudar de opinião, voltar atrás, evitar aquilo por que daria agora uma das minhas mãos para que não tivesse acontecido, mas que naquele momento me dava um estranho gozo em provocar com o mesmo cálculo e a mesma meditação com que um lavrador pensa nas suas searas.

Tudo estava bem preparado; passei muitas noites a pensar no mesmo para me abalançar, para ganhar forças; afiei a navalha, aquela navalha de fino gume que parecia uma folha de milho, com o seu cabo de osso. Só faltava marcar a data e, em seguida, não titubear, não voltar atrás, chegar ao fim custasse o que custasse, manter a calma. e depois ferir, ferir sem pena, rapidamente, e fugir, fugir para muito longe, para a Corunha, fugir para onde ninguém o soubesse, para onde me permitissem viver em paz e esperar que todos me esquecessem, que o esquecimento me deixasse voltar para de novo começar a viver. Não me pesaria a consciência; não havia motivos para isso. A consciência só pesa quando se pratica uma injustiça: bater numa criança, matar uma pomba. Mas daqueles atos a que nos conduz o ódio, para os quais vamos como que adormecidos por uma ideia que nos domina, não temos de nos arrepender.

Foi no dia 12 de fevereiro de 1922. Naquele ano, o dia 12 de Fevereiro calhou a uma sexta-feira. O tempo estava claro, como acontece geralmente naquelas paragens; o Sol inundava tudo de luz e pareceu-me ter visto naquele dia mais crianças a brincar na praça. Pensei e repensei no assunto, mas procurei vencer-me e consegui; voltar atrás teria sido impossível, teria sido fatal para mim, ter-me-ia conduzido à morte ou, quem sabe?, talvez ao suicídio. Acabaria por me deitar ao Guadiana ou para debaixo das rodas do comboio. Não, não era possível recuar, tinha de continuar para a frente, sempre para a frente, até o fim. Era já uma questão de amor-próprio.

Minha mulher deve ter notado qualquer coisa em mim.

— Que vais fazer?

— Nada; por quê?

— Não sei; parece que te acho estranho.

— Besteira!

Beijei-a para tranquilizá-la; foi o último beijo que lhe dei. Como eu estava longe de saber disso! Se soubesse talvez me assustasse.

— Por que me beijas?

Afastou-se de mim de repente.

— Por que não beijaria?

As suas palavras muito me fizeram pensar. Era como se ela soubesse tudo o que ia acontecer.

O sol se pôs no mesmo lugar de todos os dias. Veio a noite. Ceamos. Elas foram deitar-se. Eu fiquei, como sempre, gato do borralho. Já havia algum tempo que não ia à taberna do Martinete.

Tinha chegado a ocasião, a ocasião que eu esperara durante tanto tempo. Tinha de fazer das tripas coração, acabar com aquilo o mais depressa possível. A noite é curta e era durante a noite que tudo tinha de acabar; ao amanhecer, eu já deveria estar a muitas léguas da povoação.

Fiquei à escuta durante algum tempo. Não se ouvia nada. Fui ao quarto de minha mulher; estava a dormir e deixei-a continuar o seu sono. Minha mãe dormia também com certeza. Voltei à cozinha; descalcei-me; as pedras frias do chão cravaram-se nos meus pés; abri a navalha que brilhou à chama da lareira como um sol.

Ela ali estava, deitada sob os cobertores, com a cara enterrada na almofada. Só me restava lançar-me sobre o seu corpo e anavalhá-la. Nem se mexeria; não lhe daria tempo para soltar um só grito. Estava-me já ao alcance da mão e ferrada no sono, alheia a tudo — meu Deus! como os assassinados andam sempre distantes da sua sorte! A tudo o que se ia passar. Queria decidir-me, mas não o conseguia; levantava o braço, mas tornava a deixá-lo cair.

Pensei em fechar os olhos e ferir, mas não podia ser; ferir assim às cegas é o mesmo que não ferir, é expormo-nos a acertar no vácuo. Tinha de conservar a serenidade, recuperar a serenidade que me parecia começar a perder perante o corpo de minha mãe. O tempo ia passando e eu continuava ali, sem me mexer, parado como uma estátua, sem me decidir a acabar com aquilo. Não me atrevia; depois, sempre era minha mãe, a mulher que me tinha posto nesta vida e a quem só por isso eu devia perdoar. Não; não podia perdoar-lhe só por me ter dado a vida, por me ter parido. Com isso não me tinha feito nenhum favor, absolutamente nenhum. Não havia tempo a perder. Tinha de me decidir de vez. Houve momentos em que cheguei a estar de pé, como que adormecido, com a navalha na mão, como se fosse a imagem do crime. Procurava vencer-me, recuperar as forças, concentrá-las. Queimava-me o desejo de acabar depressa, rapidamente, e sair a correr, até cair rendido em qualquer sítio. Estava a esgotar-me; havia já uma hora que ali estava a seu lado, como que a guardá-la, como que velando o seu sono. E tinha ido ali para a matar, para a eliminar, para lhe tirar a vida à navalhada.

Talvez uma outra hora se tivesse passado. Não; definitivamente, não. Não podia; era qualquer coisa superior às minhas forças; qualquer coisa que me revolvia o sangue. Pensei em fugir. Mas se calhar ia fazer barulho ao sair; ela acordaria e reconhecer-me-ia. Mas também não podia fugir; era o caminho da ruína. Não havia outra solução senão atacar, atacar sem piedade, depressa, para acabar o mais rapidamente possível. Era como se estivesse metido num lodaçal em que me afundava, pouco a pouco, sem qualquer remédio, sem qualquer saída. O lodo chegava-me ao pescoço. Ia morrer afogado como um gato. Era-me completamente impossível matá-la, estava como que paralisado.

Virei-me para me ir embora. O chão rangia. Minha mãe revolveu-se na cama.

— Quem está aí?

Então sim, já não havia outra solução. Lancei-me sobre ela e subjuguei-a. Forcejou, tentou escapar-se. Houve um momento em que me teve agarrado o pescoço. Gritava que nem uma condenada. Lutamos; foi a luta mais horrível que Vossa Senhoria pode imaginar. Rugíamos como feras, a baba escorria-nos da boca. Numa das voltas que dei vi minha mulher; estava branca como uma morta, parada junto da porta sem se atrever a entrar. Trazia uma candeia na mão, uma candeia cuja luz me deixou ver a cara de minha mãe, pálida como o hábito de um nazareno. Continuávamos a lutar; fiquei com a roupa rasgada e o peito descoberto. A desgraçada tinha mais força que um demônio. Tive de fazer uso de todas as minhas energias de homem para a subjugar. Quinze vezes a subjugara, quinze vezes me escaparia. Arranhava-me, mordia-me, ferrava-me pontapés e socos. Num dado momento, deu-me uma dentada num peito — o esquerdo — e arrancou-me o bico. Foi nesse momento que pude enterrar-lhe a navalha na garganta.

O sangue corria em golfadas e salpicava meu rosto. Vinha quente como um ventre e tinha o mesmo sabor que o sangue dos cordeiros.

Larguei-a e fugi. Choquei-me com minha mulher; apaguei-lhe a candeia. Alcancei o campo e corri, corri sem descanso, horas sem fim. O campo estava fresco e dava-me uma sensação de alívio que me inundava as veias. Podia respirar. 



(A Família de Pascual Duarte; tradução de Tomaz Ribas)



(Ilustração: Francisco de Goya - monk_woman)


sexta-feira, 18 de junho de 2021

A LUA BRASILEIRA, de Maria Firmina dos Reis (*)

 






Oferecida ao Ilmo. Sr. Dr. Adriano Manoel Soares.

Tributo de amizade e gratidão.



É tão meiga, tão fagueira,

Minha lua brasileira;

É tão doce, e feiticeira,

Quando airosa vai nos céus;

Quando sobre almos palmares,

Ou sobre a face dos mares,

Fixa, nívea, seus olhares,

Qu'enfeitiçam os olhos meus;



Quando traça na campina

Larga fita diamantina;

Quando sobre a flor marina,

Esparge seu níveo albor;

Quando manda brandamente

Sobre a campina virente,

Seu fulgir alvinitente,

O seu mágico esplendor;



Quando sobre a fina areia,

Que a onda beijar anseia

Molemente ela passeia,

Desdobrando alvo lençol;

Quando ao fim da tarde amena

Ressurge pura e serena,

Disputando nessa cena,

Primores co'o rubro sol;



Oh! eu sinto então meu peito,

A tanto encanto sujeito,

Tão comovido, e desfeito,

Por um sublime sentir,

Que dos ares n'amplidão,

Vagueia a imaginação,

Qual se me fora condão,

Outros mundos descobrir!



Podem outros seus encantos

Ver também, beber seus prantos,

Por seus vales, e recantos,

Por suas veigas, em flor;

Podem vê-la sobre os montes,

Trepando nos horizontes,

A retratar-se nas fontes,

C'roada de níveo albor;



Lá n'outros mundos; ─ mas, bela

Assim branca, assim singela,

Como pálida donzela,

Que geme na solidão;

Assim pura, acetinada,

Como flor na madrugada

Pelo rocio beijada,

Com mimo, com devoção;



Assim virgem na frescura,

Com tão maga formosura,

Percorrendo essa planura

De nossos formosos céus,

Isso não: Assim ninguém

Mimosa, leda, inocente,

Assim formosa, indolente,

Permitiu-nos vê-la Deus!



Quem não ama vê-la assim,

C'a candidez do jasmim,

Espargindo amor sem fim,

Na terra de Santa Cruz!

Quem não ama entusiasmado

Da noite o astro nevado,

Que, co'o rosto prateado,

Tão meigamente seduz!?!



Quem não sente uma saudade,

Vendo a lua em fresca tarde,

Branca ─ em plena soledade,

Vagar nos campos dos céus!

Quem não gera com fervor,

No peito em que ergue a dor,

Um hino sacro de amor,

Um hino eterno ao seu Deus!?...



Eu por mim amo-te, oh bela,

Que semelhas a donzela,

Com roupas de branca tela,

Com traços de fino albor.

Que vai pura aos pés do altar

Por muito saber amar,

Ao terno amado jurar,

Lealdade ─ fé ─ e amor.



Amo ver-te assim fagueira,

Minha lua brasileira,

Qual menina lisonjeira,

Que promete, e foge e ri;

E depois, inda voltando,

Vem com beijinhos pagando,

Aquele a quem se furtando,

De novo a chamara a si.



Assim, lua, teus encantos

Inspiram mimosos cantos:

Chora sobre mim teus prantos,

Vertidos na solidão!

Tens em mim, lua querida,

Uma amiga enternecida,

Que aninha n'alma sentida

Muita dor ─ muita aflição.



Só teus raios prateados,

Teus inocentes agrados,

Teus suspiros magoados,

Modificam tanta dor.

Vem pois com tuas carícias

Infundir brandas delícias,

E com suaves blandícias

Entusiasmar-me de amor.



(*) Publicado originalmente no "Semanário Maranhense", 1/3/1868, ano I, número 27, páginas 7 (segunda e terceira colunas) e 8 (primeira coluna).



(Ilustração: Inês Peres - Lua cheia)



segunda-feira, 14 de junho de 2021

O PRANTO DOS LIVROS, de Antonio Candido

 



Morto, fechado no caixão, espero a vez de ser cremado. O mundo não existe mais para mim, mas continua sem mim. O tempo não se altera por causa da minha morte, as pessoas continuam a trabalhar e a passear, os amigos misturam alguma tristeza com as preocupações da hora e lembram de mim apenas por intervalos. Quando um encontra o outro começa o ritual do “veja só”, “que pena”, “ele estava bem quando o vi a última vez”, “também, já tinha idade”, “enfim, é o destino de todos”.

Os jornais darão notícias misturadas de acertos e erros e haverá informações desencontradas, inclusive dúvida quanto à naturalidade. Era mineiro? Era carioca? Era paulista? É verdade que estudou na França? Ou foi na Suíça? O pai era rico? Publicou muitos livros de pequena tiragem, na maioria esgotados. Teve importância como crítico durante alguns anos, mas estava superado havia tempo. Inclusive por seus ex-assistentes Fulano e Beltrano. Os alunos gostavam das aulas dele, porque tinha dotes de comunicador. Mas o que tinha de mais saliente era certa amenidade de convívio, pois sabia ser agradável com pobres e ricos. Isso, quando se conseguia encontrá-lo, porque era esquivo e preferia ficar só, principalmente mais para o fim da vida. Uns dizem que era estrangeirado, outros, que pecava por nacionalismo. Era de esquerda, mas meio incoerente e tolerante demais. Militava pouco e no PT funcionou sobretudo como medalhão. Aliás, há quem diga que teve jeito de medalhão desde moço. Muito convencional. Mas é verdade que fugia da publicidade, recusava prêmios e medalhas quando podia e não gostava de homenagens. Contraditório, como toda a gente. O fato é que havia em torno dele muita onda, e chegou-se a inventar que era uma “unanimidade nacional”. No entanto, foi sempre atacado, em artigos, livros, declarações, e contra ele havia setores de má vontade, como é normal. Enfim, morreu. Já não era sem tempo e que a terra lhe seja leve.

Mas o que foi leve não foi a terra pesada, estímulo dos devaneios da vontade. Foi o fogo sutil, levíssimo, que consumiu a minha roupa, a minha calva, os meus sapatos, as minhas carnes insossas e os meus ossos frágeis. Graças a ele fui virando rapidamente cinza, posta a seguir num saquinho de plástico com o meu nome, a data da morte e a da cremação. Enquanto isso, havia outros seres que pensavam em mim com uma tristeza de amigos mudos: os livros.

De vários cantos, de vários modos, a minha carcaça que evitou a decomposição por meio da combustão suscita o pesar dos milhares de livros que foram meus e de meus pais, que conheciam o tato da minha mão, o cuidado do meu zelo, a atenção com que os limpava, mudava de lugar, encadernava, folheava, doava em blocos para serviço de outros. Livros que ficavam em nossa casa ou se espalhavam pelo mundo, na Faculdade de Poços, na de Araraquara, na Católica do Rio, na Unicamp, na USP, na Casa de Cultura de Santa Rita, na ex-Economia e Humanismo, além dos que foram furtados e sabe Deus onde estão – todos sentindo pena do amigo se desfazer em mero pó e lembrando os tempos em que viviam com ele, anos e anos a fio. Então, dos recantos onde estão, em estantes de ferro e de madeira, fechadas ou abertas, bem ou maltratados, usados ou esquecidos, eles hão de chorar lágrimas invisíveis de papel e de tinta, de cartonagem e percalina, de couro de porco e pelica, de couro da Rússia e marroquim, de pergaminho e pano. Será o pranto mudo dos livros pelo amigo pulverizado que os amou desde menino, que passou a vida tratando deles, escolhendo para eles o lugar certo, removendo-os, defendendo-os dos bichos e até os lendo. Não todos, porque uma vida não bastaria para isso e muitos estavam além da sua compreensão; mas milhares deles. Na verdade, ele os queria mais do que como simples leitura. Queria-os como esperança de saber, como companhia, como vista alegre, como pano de fundo da vida precária e sempre aquém. Por isso, porque os recolheu pelo que eram, os livros choram o amigo que atrasava pagamentos de aluguel para comprá-los, que roubava horas ao trabalho para procurá-los, onde quer que fosse: nas livrarias pequenas e grandes de Araraquara ou Catanduva, de Blumenau ou João Pessoa, de Nova York ou New Haven; nos sebos de São Paulo, do Rio, de Porto Alegre; nos buquinistas de Paris e nos alfarrabistas de Lisboa, por toda a parte onde houvesse papel impresso à venda. O amigo que, não sendo Fênix, não renascerá das cinzas a que está sendo reduzido, ao contrário deles, que de algum modo viverão para sempre.



(Ilustração: biblioteca do prof. Antonio Cândido - apto.na alameda Joaquim Eugênio de Lima - foto de Cristiano Mascaro, 2017)


sexta-feira, 11 de junho de 2021

AS BELAS MENINAS PARDAS, de Alda Lara





As belas meninas pardas

são belas como as demais.

Iguais por serem meninas,

pardas por serem iguais.



Olham com olhos no chão.

Falam com falas macias.

Não são alegres nem tristes.

São apenas como são

todos os dias.



E as belas meninas pardas,

estudam muito, muitos anos.

Só estudam muito. Mais nada.

Que o resto, traz desenganos.



Sabem muito escolarmente.

Sabem pouco humanamente.



Nos passeios de domingo,

andam sempre bem trabalhadas.

Direitinhas. Aprumadas.

Não conhecem o sabor que tem uma gargalhada

(Parece mal rir na rua!...)



E nunca viram a lua,

debruçada sobre o rio,

às duas da madrugada.



Sabem muito escolarmente.

Sabem pouco humanamente.



E desejam, sobretudo, um casamento decente...



O mais, são histórias perdidas...

Pois que importam outras vidas?...

outras raças?... , outros mundos?...

que importam outras meninas,

felizes, ou desgraçadas?!...



As belas meninas pardas,

dão boas mães de família,

e merecem ser estimadas...



(Ilustração: Valquíria Cavalcante)



terça-feira, 8 de junho de 2021

OS OLHOS QUE COMIAM CARNE, de Humberto de Campos

 



Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do conhecimento humano, obra em que havia gasto 14 anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernando esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela, que deixara entreaberta na véspera, para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a janela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou.

Evidentemente, o dia lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou. Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.

- Entra, Roberto.

O criado empurrou a porta, e entrou.

- Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.

- Não, senhor. Está até acesa...

- Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.

- Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.

- A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.

- Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.

Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.

A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente surgiu a notícia de que havia um cientista que fazia milagres.

E, com essa informação, a de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito de nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego havia seis anos e não tergiversara em trocar a metade de sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.

A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais, com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião da sua viagem a Buenos Aires.

Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se, já, na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.

Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo, grisalho e ondulado, posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos, de dedos magros e curtos, seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.

Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d’água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores todos eram, no seu espírito, causa de novas reflexões. Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de dactiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:

- Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom...

O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube, nem viu.

O processo Platen era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o raio X, e que punha em contato, por meio de delicadíssimos fios de “hêmera”, liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contato direto com a luz, restabelecia integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.

Meia hora depois, as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital das Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze deixavam à mostra apenas o nariz afilado, e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda que pusera no enfermo, antes de duas semanas.

Doze dias depois passava ele novamente pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou outra vez o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro de seu prestígio que se ia embora sem esperar pela verificação do milagre.

Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.

Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele aceitava e agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.

Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.

- Abra os olhos! - diz o doutor.

O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha, e, em silêncio, muito pálido, vai-se pondo de pé. A pupila entra em contato com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne: são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que o cercam e diante das coisas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como num bailado macabro!

De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costas, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.

- Afastem-se! Afastem-se! - intima, num urro que faz estremecer a sala toda.

E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensanguentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, num sinistro baile de esqueletos...



(Ilustração: Diego Rivera - detalhe da pintura mural Sonho de domingo)

sábado, 5 de junho de 2021

VISÃO 1961, de Roberto Piva

 



as mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo

invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma

flor de saliva

o frio dos lábios verdes deixou uma marca azul-clara debaixo do pálido

maxilar ainda desesperadamente fechado sobre o seu mágico vazio

marchas nômades através da vida noturna fazendo desaparecer o perfume

das velas e dos violinos que brota dos túmulos sob as nuvens de

chuva

fagulha de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde

cafetinas magras ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro

da Loucura repartiam lascas de hóstias invisíveis

a náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas e

lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas

tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os ovários

dos manequins

minhas alucinações pendiam fora da alma protegidas por caixas de matéria

plástica eriçando o pelo através das ruas iluminadas e nos arrabaldes

de lábios apodrecidos

na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um

Lótus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu

que renascem nas caminhadas

noite profunda de cinemas iluminados e lâmpada azul da alma desarticulando

aos trambolhões pelas esquinas onde conheci os estranhos

visionários da Beleza

já é quinta-feira na avenida Rio Branco onde um enxame de Harpias

vacilava com cabelos presos nos luminosos e minha imaginação

gritava no perpétuo impulso dos corpos encerrados pela

Noite

os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de excrementos

secos enquanto um milhão de anjos em cólera gritam nas assembleias

de cinza OH cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar

asilo na tua face?

no espaço de uma Tarde os moluscos engoliram suas mãos

em sua vida de Camomila nas vielas onde meninos dão o cu

e jogam malha e os papagaios morrem de Tédio nas cozinhas

engorduradas

a Bolsa de Valores e os Fonógrafos pintaram seus lábios com urtigas

sob o chapéu de prata do ditador Tacanho e o ferro e a borracha

verteram monstros inconcebíveis

ao sudoeste do teu sonho uma dúzia de anjos de pijama urinam com

transporte e em silêncio nos telefones nas portas nos capachos

das Catedrais sem Deus

imensos telegramas moribundos trocam entre si abraços e condolências

pendurando nos cabides de vento das maternidades um batalhão

de novos idiotas

os professores são máquinas de fezes conquistadas pelo Tempo invocando

em jejum de Vida as trombetas de fogo do Apocalipse

afã irrisório de ossadas inchadas pela chuva e bomba H árvore

branca coberta de anjos e loucos adiando seus frutos

até o século futuro

meus êxtases não admitindo mais o calor das mãos e o brilho

platônico dos postes da rua Aurora comichando nas omoplatas

irreais do meu Delírio

arte culinária ensinada nos apopléticos vagões da Seriedade por

quinze mil perdidas almas sem rosto destrinçando barrigas

adolescentes numa Apoteose de intestinos

porres acabando lentamente nas alamedas de mendigos perdidos esperando

a sangria diurna de olhos fundos e neblina enrolada na voz

exaurida na distância

cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúrbios demoníacos pelo

cometa sem fé meditando beatamente nos púlpitos agonizantes

minhas tristezas quilometradas pela sensível persiana semiaberta da

Pureza Estagnada e gargarejo de amêndoas emocionante nas palavras

cruzadas no olhar

as névoas enganadoras das maravilhas consumidas sobre o arco-íris

de Orfeu amortalhado despejavam um milhão de crianças atrás das

portas sofrendo

nos espelhos meninas desarticuladas pelos mitos recém-nascidos vagabundeavam

acompanhadas pelas pombas a serem fuziladas pelo veneno

da noite no coração seco do amor solar

meu pequeno Dostoievski no último corrimão do ciclone de almofadas

furadas derrama sua cabeça e sua barba como um enxoval noturno

estende até o Mar

no exílio onde padeço angústia os muros invadem minha memória

atirada no Abismo e meus olhos meus manuscritos meus amores

pulam no Caos



(paranoia, 1963)



(Ilustração:  Henrique Alvim Correa - ilustr. para a guerra dos mundos)

quarta-feira, 2 de junho de 2021

O ENIGMA DE BAGDÁ, Fernando Báez

 


"Nossa memória já não existe. O berço da civilização, da escrita e das leis foi queimado. Só restam cinzas." Escutei esse comentário de um professor de história medieval em Bagdá, detido poucos dias depois por pertencer ao partido Baath. Quando o disse, abandonava a moderna estrutura da Universidade, de onde saquearam, sem exceção, os livros da biblioteca, e destruíram salas de aula e laboratórios. Estava sozinho, ao lado da entrada, coberto por uma sombra, e por acaso pensava em voz alta, ou não pensava, mas sua voz também era parte desse extenso, interminável e sucessivo rumor que é às vezes o Oriente Médio. Chorava ao me olhar. Creio que esperava alguém, mas, quem quer que fosse, não veio e, em poucos minutos, vi-o se afastar, sem rumo, andando pela borda de uma enorme cratera aberta, junto ao prédio, por um míssil.

Horas mais tarde, no entanto, um de seus estudantes de história deu sentido à sua frase quando se aproximou e me abordou, com esse ar de autoridade próprio do sofrimento. Vestia uma túnica marrom, sandálias, usava óculos e, apesar da barba aparada, era bastante jovem, talvez uns 20 ou 22 anos, uma excelente idade para se lamentar. Não olhava à frente, nem para os lados, e de fato sequer sei se olhava. Perguntou-me por que o homem destrói tantos livros.

Colocou a questão com calma, prosseguiu com uma citação que não parecia lembrar bem, até que se esgotaram os advérbios e disse que durante séculos o Iraque sofrerá espoliação e destruição cultural. "Você não é especialista?", perguntou-me com ironia.

Chamava-se Emad e, na mão esquerda, segurava o volume gasto de um poeta persa, com um ramo seco de palmeira como marcador de página.

Quanto ao resto, confesso, eu não soube o que dizer e me retirei. Havia discussões nos corredores e quis evitar a polêmica. De qualquer maneira, minha confusão me serviu para revisar algumas ideias, já no quarto do hotel, e o tempo se tornou único espaço, única passagem, estreita e necessária, até inevitável.

Não sei por que me senti tão impotente e por que agora, passados os meses, aquele incidente persiste na minha memória, o que, no fundo, reforça o argumento de que nada entendi e de que todo o esforço de raciocinar diante do horror é inútil e ambíguo. Porém, mesmo assim, penso que deveria tentar esboçar uma justificativa que recupere o valor da pergunta do estudante de Bagdá a partir de minha própria experiência. Esta introdução não pretende nada mais. Nem nada menos.

Basta dizer que quando cheguei a Bagdá, em maio de 2003, conheci uma nova forma, indireta, oblíqua, de destruição cultural. Depois da tomada da cidade pelas tropas americanas, começou um processo de aniquilação por omissão, vacilante e superficial, que transgredia as cláusulas da Convenção de Haia de 1954 e os Protocolos de 1972 e 1999. Os soldados americanos não queimaram os centros intelectuais do Iraque, mas tampouco os protegeram, e essa indiferença deu carta branca aos grupos criminosos. A esse vandalismo profissional se somou outro, mais ingênuo, o das multidões de saqueadores, movidas por uma propaganda que estimulava o ódio aos símbolos do regime de Saddam Hussein. Convém lembrar que museus e bibliotecas se identificavam com a estrutura de poder que existia nessa nação. E quando foram arrasados pelo fogo, o silêncio legitimou a catástrofe. No dia 12 de abril de 2003, o mundo recebeu a notícia do saque ao Museu Arqueológico de Bagdá. Trinta objetos de grande valor desapareceram, mais de 14 mil peças menores foram roubadas e as salas destruídas. Em 14 de abril, um milhão de livros foram queimados na Biblioteca Nacional. O Arquivo Nacional também ardeu, com seus mais de dez milhões de registros do período republicano e otomano, e em dias sucessivos a situação se repetiu com as bibliotecas da Universidade de Bagdá, a biblioteca de Awqaf e dezenas de bibliotecas universitárias em todo o país.

Em Basra, o Museu de História Natural foi incendiado, da mesma forma que a Biblioteca Pública Central, a Biblioteca da Universidade e a Biblioteca Islâmica. Em Mossul, a Biblioteca do Museu foi vítima de especialistas em manuscritos, que selecionaram certos textos e os levaram. Em Tikrit, as bombas atingiram a estrutura do museu e facilitaram os saques, ao provocar a fuga dos guardas de segurança.

Somando-se a essa catástrofe tão inesperada, milhares de sítios arqueológicos se viram em perigo devido à falta de vigilância. O tráfico ilícito e transnacional de peças arqueológicas começou numa escala sem precedentes. Na data atual, apesar do esforço das tropas italianas, nem um só lugar histórico do Iraque está seguro. Bandos armados com AK-47 percorrem lugares como Hatra, Isin, Kulal Jabr, Nínive,

Larsa, Tell el-Dihab, Tell el-Jbeit, Tell el-Zabul, Tell Jokha, Ur, Tell Naml, Umm elAqarib... Depois que passam os helicópteros e as patrulhas, os ladrões retornam, desenterram objetos sem qualquer cuidado e derrubam paredes. Algumas peças são levadas até o Kuwait ou para Damasco e dali são transportadas para Roma, Berlim, Nova York e Londres, onde os colecionadores particulares pagam o que lhes pedem.

Por que ocorre esse "memoricídio" no lugar onde nasceu o livro?

O que encontrei no Iraque me fez recordar a primeira vez que vi um livro destruído. Eu tinha 4 ou 5 anos e vivia numa biblioteca, não porque fosse minha casa ou por bondade de algum parente generoso. A verdade é que meu pai era um advogado honesto, isto é, desempregado, e minha mãe, nascida em Las Palmas de Gran Canária, devia trabalhar o dia todo numa mercearia, o que a obrigava a me deixar na biblioteca pública de São Félix, na Guayana da Venezuela, onde contava com o apoio de sua prima, a jovem secretária do local.

Assim, passava o dia inteiro sob a proteção indiferente dessa moça, entre estantes e dezenas de volumes. Ali descobri o valor da leitura: soube que devia ler porque não podia não ler. Lia porque cada boa leitura me dava motivos mais fortes para continuar lendo. Lia sem me preocupar com manuais, fichários, guias, seleções críticas como as de Harold Bloom, etiquetas de "clássicos", recomendações de fim de semana. Interessavam-me demais os livros porque eram meus únicos amigos. Não sei se então era feliz. Pelo menos sei que quando folheava páginas tão íntimas esquecia a fome e a miséria, o que me salvou do ressentimento ou do medo. Enquanto aprendia a ler, desprezava a solidão tremenda em que me encontrava, hora após hora.

Essa felicidade foi interrompida bruscamente, porque o rio Caroni, um dos afluentes do Orinoco, cresceu sem aviso prévio e inundou a cidade, levando consigo os papéis que constituíam o motivo de minha curiosidade. Acabou com todos os volumes. Dessa forma, fiquei sem refúgio e perdi parte de minha infância na pequena biblioteca, completamente arrasada pelas águas escuras. Às vezes, nas noites seguintes, via em sonhos como afundava A ilha do tesouro, de Stevenson, e flutuava o exemplar de alguma peça de Shakespeare.

Nunca me recuperei dessa terrível experiência. Estranhamente, não foi a única. Aos 17 anos presenciei como meus companheiros de classe no secundário, ao concluir o curso, queimaram seus livros didáticos. Frenéticos, não houve maneira de dissuadi-los e minha tentativa de apagar o fogo foi objeto de zombaria. Aos 19, quando me tornei vendedor de enciclopédias, o pesadelo se repetiu porque um incêndio destruiu a livraria do velho que eu costumava visitar. Ainda conservo intacta a imagem do livreiro, com as mãos queimadas, os olhos fechados e a cara descomposta. Em 1999 visitei, com uma equipe de trabalho, Sarajevo e vi Vijecnica em ruínas. Ali conheci uma bela poetisa, cujo nome devo ignorar, que me disse: "Cada livro destruído é um passaporte para o inferno." No mesmo ano presenciei como um aluvião destruiu as bibliotecas do litoral venezuelano. Em 2000 percorri várias cidades da Colômbia cujas bibliotecas foram destruídas pela guerra civil que assola o país...

Consciente ou inconscientemente, o tema chegou a me obcecar e, um belo dia, me dei conta de que preparava um livro em que narrava esses acontecimentos. Em 2001, não sem a habitual surpresa, recebi uma pesada caixa que veio a ser a pedra fundamental de minha pesquisa. O carteiro, depois de me estender o recibo de entrega, informou-me que procedia de Caracas. Do lado de fora tinha um envelope com um papel, conciso e com assinatura ilegível, onde se insinuava que se tratava de livros, os únicos bens de meu avô Domingo, que, ao morrer, legou-os a mim em seu testamento, mas também explicava que foram conservados por um tio que acabara de morrer. O incrível é que eu jamais conheci meu avô paterno, um prestigioso sapateiro, e as referências que tinha dele eram apenas os relatos simples de minha família.

Na caixa, manchada de óleo e cinzas, contei uns quarenta volumes. Passei adiante alguns que não me atraíam, mas fiquei com Os inimigos dos livros (1888), de William Blades, que continha uma exposição amena sobre as causas da destruição de textos.

Ainda comovido, e convencido de que era um sinal, fui visitar meu pai. Aposentara-se, vivia com minha mãe, e sofria do mal de Parkinson. Falei-lhe de minha estranha herança. Como de costume, não mostrou qualquer emoção. Ao contrário, disse-me que meu avô costumava conversar com ele sobre a biblioteca de Alexandria, seu enigma histórico favorito. Quando eu já saía, abraçou-me. Senti que esse gesto era definitivo.

Desde que tenho memória, senti horror pela destruição de livros. Notei que palavras como "Alexandria", "Hipátia" (mulher que contribuiu no século III para o desenvolvimento da matemática e que foi assassinada por se negar a se converter ao cristianismo) ou "censura" tendem a despertar meu temor. A pergunta do jovem da Universidade de Bagdá me serviu para entender que devia apressar a conclusão deste escrito e mostrar ao mundo uma de suas maiores catástrofes culturais. Há 55 séculos se destroem livros, e mal se conhecem as razões. Há centenas de narrações históricas sobre a origem do livro e das bibliotecas, mas não existe uma única história sobre sua destruição. Não é uma ausência suspeita?

Em busca de uma teoria sobre a destruição de livros, descobri, por acaso, que são abundantes os mitos1 que relatam cataclismos cósmicos para explicar a origem ou anunciar o fim do mundo. Observei que todas as civilizações entendem sua origem e seu fim como um mito de destruição, contraposto ao da criação, num modelo cujo eixo é o eterno retorno. A apocatástase (restauração) tem sido um recurso para defender o fim da história e o início da eternidade. Nas mitologias antigas encontramos centenas de narrativas em que se descreve como a água, o fogo ou algum outro elemento purificou a maldade humana ou a purificará num futuro adiado constantemente.

Portanto, os períodos de destruição e criação seriam as duas únicas alternativas do universo. Essa crença sempre esteve presente nas concepções hebraicas, iranianas, greco-latinas e centro-americanas. No masdeísmo e no zervanismo o fim do universo tem data marcada. Entre os astecas, os deuses se sacrificaram para oferecer sangue e coração ao Sol, e esse ritual se manteve graças à guerra, que condicionava os homens a repetir perpetuamente esse momento. A ragnarök germânica, ou grande conflagração, sintetizou os mitos orientais e autóctones como fonte de consolo. Os oráculos sibilinos anunciavam constantemente o fim de Roma e o nascimento de um mundo novo.

O cristianismo recuperou esse mito e acrescentou ao livro do Gênesis, do Antigo Testamento, o Apocalipse no Novo Testamento. O apocalipse seria um cataclismo capaz de revelar a verdade das coisas e resgatar a pureza perdida. De fato, a palavra grega apocalipsis se traduz como "destruição", mas também como "revelação". Há apocalipse onde há revelação. A mensagem final, no entanto, viria a ser a mensagem de um novo tempo.

Além de ter caráter cosmogônico e escatológico, o mito da destruição se incorporou à essência dos deuses, que, ao mesmo tempo, deviam ser criadores e devastadores. Também se considerou o instrumento de destruição como sendo sagrado. O fogo era um deus. A água era um deus. Os cretenses adoravam o touro porque atribuíam à sua cólera os terremotos e frequentes tremores da ilha de Creta. Nergal, o deus sumério da destruição, era descrito como um jovem investido do poder da tempestade. A espada era atributo divino, com nome próprio.

Nesse mesmo sentido, conhecer o mito de cada elemento destrutivo proporcionava a salvação. No Kalevala, por exemplo, só se pôde ajudar o ancião Väinämöinen, gravemente ferido, quando a origem sagrada do ferro foi lembrada e sua história declamada. Na maior parte das vezes um homem destruidor era visto como iluminado, deus ou demônio em potência, capaz de curar e de saber tudo. Os berserkires, por exemplo, desencadeavam sua fúria para se integrar aos modelos arquetípicos da fúria sagrada dos deuses. O bom rei sempre era um destruidor que repetia as ações dos deuses.

Essa inquestionável sobrevivência de mitos de aniquilação na morfologia religiosa e mitológica contém, no meu entender, a chave para introduzir o leitor nas minhas conjeturas. Essencialmente me atreveria a dizer que esses arquétipos de extermínio refletem antes de tudo uma convicção em torno da natureza mais visível e dilacerante do homem. Os mitos identificaram o cenário a partir da crença na semelhança entre o que sucede numa ordem cósmica e na vida cotidiana, que supõe um modelo de patrocínio ritual que consolida o esquema da conduta coletiva ou individual. O macrocosmo e o microcosmo se justapõem assim e se relacionam com o plexo da imanência em seu sentido mais puro. Viver em uma época racionalista não impediu que as premissas do pensamento e da ciência sejam outra coisa que mitos disfarçados.

Os que atribuem a causa da destrutividade a um instinto não estão muito longe do homem primitivo que a atribuía a um demônio ou a um elemento da natureza. A localização desse instinto tem estado vinculada à hipótese neurológica mais recente: ou no hipotálamo do cérebro, ou no sistema límbico, ou no lóbulo pré-frontal. Parece, portanto, inegável que a violência humana se manifesta por expectativas sociais: na era da visão teológica, os deuses nos possuíam, e na era da visão atômica somos determinados por unidades mínimas cuja estrutura genética impõe uma herança de reação e luta. Se há algo claro nessa histeria de extrapolação é que a teoria do instinto se inscreve num mito de libertação característico do homem: seu intento de se livrar da responsabilidade direta sobre sua atividade destrutiva.

À questão de que se há nos mitos antigos uma razão que explique a capacidade de destruição humana, devo oferecer uma resposta positiva, afastada do campo do reducionismo ideológico ou cientificista. O mito faz do humano e do universal uma exigência prática associada à aspiração de religar o sagrado e o atual. Visto assim, passado, presente e futuro se articulam numa cronologia transparente e imediata. O mito, nesse particular, pressupõe a dinâmica de expectativas em pleno exercício de fundação, normatividade e conservação. O relato apocalíptico projeta a situação e a angústia humana: em cada um, a origem e o fim interagem em inevitáveis processos de criação e dissolução.

Ao destruir, o homem reivindica o ritual de permanência, purificação e consagração; ao destruir, atualiza uma conduta movida a partir do mais profundo de sua personalidade, em busca de restituir um arquétipo de equilíbrio, poder ou transcendência. Ao mobilizar um sistema de disposição biológica ou social, a reafirmação tem um único objetivo: a continuidade. O ritual destrutivo, como o ritual construtivo aplicado à construção de templos, casas ou de qualquer obra, fixa padrões para devolver o homem à comunidade, ao amparo ou à vertigem da pureza.

À medida que aumentaram os riscos à preservação do homem, ou pelo incremento na produção de representações que deslocaram o sentido natural do homem, ou pela aparição de tendências demográficas descontroladas ou pelo fechamento de espaços de ação, foi maior a afinidade mítica com a restauração de uma ordem pela eliminação da ameaça.

A autonomia convergiu para o mito da destruição e transferiu conteúdos para estruturas psíquicas cujo desejo mais obscuro e arcaico consistia numa epifania em torno de um centro que é a morte. Destruir é assumir o ato simbólico da morte a partir da negação daquilo que é representado.



(História universal da destruição dos livros – das tábuas sumérias à guerra do Iraque; tradução de Léo Schalafman)


(Ilustração: Cecelia Maclellan - Anthony Horden's fire d. 1957)