1.
cada vez que você respira
é como se um anzol
mergulhasse fundo
em minhas retinas
e arrancasse
do abismo dos meus olhos
lágrimas de outro coração
um coração baleado ao meio-dia
por um soldado do governo
sob um sol de chumbo e miséria
um coração engolido pelo monstro do SNI
meu coração queimado com pontas de cigarro
seu coração, exausto e quebrado, no pau de arara
estuprado pelas hóstias elétricas do Papa
cineminha obsceno do maldito empresário dinamarquês
corações trocados por moedas pelos cabos anselmos
pelos generais, pelos fascistas, pela classe média
corações estourados, carregados sujos e semimortos
pelos covardes combos da folha da manhã
da garganta da gárgula
a noite carbônica
derrama-se
sobre os párias e vira-latas
sobre todo o concreto armado
sobre os cadáveres
2.
come panetone com mostarda, louco,
e vê nos food trucks
as cabeças humanas
prontas para petisco
vê as bocas podres
da rataria capitalista
cheias de água e pus
e sede de sangue
despida brutalmente pelos policiais,
fui sentada na “cadeira do dragão”,
sobre uma placa metálica,
pés e mãos amarrados,
fios elétricos ligados ao corpo
tocando a língua,
ouvidos,
olhos,
pulsos,
seios
e órgãos genitais
3.
Bacuri
ávida, a utopia saliva feito carne viva
Bacuri
luta contra a manseira, essa rosa fria
Bacuri
gênio da guerra retórica, libertária lábia
Bacuri
que sabia que só a coragem é sábia
Bacuri
Bacuri
nosso carnaval não chegou
e estes dias choram
pela aurora batalhadora
mas ainda há tempo
de repassar aos moços
a metralhadora de sonhos
(os malditos agora
depois de nos quebrar
o coração
nos cobram
a luz do verão)
não há mais cobertor de lã
para o seu intenso frio sul-americano
e seus olhos ainda fitam, camarada,
a fantasmagoria
do centro da cidade
no rádio, Inglaterra x Tchecoslováquia
chumbo na luz dos postes, bala na Variant
look, we don’t like this kind of method
but it’s the only way to save our political prisoners
you know very well they are suffering all kinds of tortures
and some of them are going to be murdered
apenas é noite
há sardinhas de semolina, cebolas roxas
um madrigal lúgubre nas artérias
...
40 presos políticos em liberdade
5.
Capitão! Ó meu Capitão!
...
meu Capitão não responde
seus lábios estão pálidos e quietos
...
para você, mil ramos de flores
e toda a multidão nas ruas
6.
Marighela,
nossos olhos
ainda choram
no futuro vazio
escuro e baço
onde um velho de olhos citrinos
e bigodes escuríssimos
que teve os rins rasgados
por uma baioneta
por se recusar a amamentar tubarões
com seu suor
foi enterrado com suas muletas
a lua pregada no céu
como a angústia
nesta redoma de recusas
onde o rastro dos astros
se faz perceptível
algumas campânulas azuis
perfumando a palavra adeus
7.
não somos os únicos mortos da aldeia,
Tito
agora vejo você tocando violão
num dia qualquer de inverno
com seus óculos grandes, barba de Trotsky
numa fotografia
do arquivo dos Frades Dominicanos
antes de ter conhecido a sucursal do inferno
antes de terem te dado a “hóstia sagrada”
antes de terem esmagado seus testículos
toda vez que passo pela Bento Freitas
(vindo da rua Aurora — onde estão
enterrados os pés de Mário de Andrade)
lembro da Livraria Duas Cidades
lembro destes versos seus:
uma Nazaré humana,
abrigo dos pobres,
sustento dos fracos
em paisagens distantes
agora é um dia de nevasca forte
sem vinho, pão ou parábola
os sonhos todos estilhaçados
num dia frio
na copa de um álamo
é melhor morrer do que perder a vida
(Revista Palavra; julho 2014)
(Ilustração: Debora Arango (1907-2005) - the goodbye)
Nenhum comentário:
Postar um comentário