sábado, 28 de setembro de 2019
SIAMESES, de Juliana Frank
Má-mãe aceitou, sem titubear, ser infeliz para sempre com Papai Almofadonho. Era um escritor plagiador cheio de escrúpulos. Reproduziu grandes gênios da humanidade e criou várias frases que ficaram célebres, como essa: “Uma rosa é uma rosa é uma rosa. Não vou sofrer mais sobre as armações metálicas do mundo, como o fiz outrora, quando ainda me perturbava a rosa.” Má-mãe não gostou, porque só Camões, né? Também não agradava as flores dele. Azucrinantes, repetitivas. Preferia asfixiá-las e vê-las irrespiráveis. Romances de papai, todos líricos, ela punha a língua pra fora e retorcia a boca de nojo a cada passada de olhos nas linhas. Ele fingia não se importar, copiava com pretensão petulante ao esperar os resultados já obtidos dantes pelos poetas originais.
Passava tardes terrificantes escrevendo: longos são os caminhos da Galileia e curta a piedade dos homens. O destino é o seu próprio contrarregra. Eu vou pegar seu retratinho e colocar numa medalha, pendurá-lo no meu peito onde o coração trabalha. Papai dizia que escrever é um processo fatigante; após terminar suas frases, dormia 20 das 24 horas do dia. Não me impressionava ele ter um semblante muito melhor que o dos gatos. Bom mesmo, para ele, era acordar, ler sua produção diária e sentir orgulho do feito! Escrever não, escrever o padecia. Um dia, Má-mãe pediu para que ele escrevesse algo sobre vaginas. Na veneta de Papai brotou uma história riquíssima de uma mulher árabe e lasciva que viveu no interior de São Paulo. A mulher chama-se Uardi, mas ele preferiu “Feliciena” — nome usado uma vez e esquecido nos antros literários. Começou a história. Feliciena era adolescente e tinha um amante para quem dava a Tuchê. Má-mãe interrompeu a narrativa. Não queria que chamasse “Tuchê”. Mas era assim na história original, e ficou para sempre gravada nos orais e anais da literatura — defendeu papai, decidido. Tuchê era o nome da vagina e nada feito, continuou. Feliciena resolveu raspar a Tuchê para encontrar o seu amante e trepar com ele dentro do carro, como fazia aos domingos. Mas não sabia usar a gilete, portanto raspou ao avesso do pelo. Que pamonha!, disse Má-mãe, é como fazer carinho no gato ao contrário. A história já foi publicada e louvada, façamos assim — Papai prosseguiu. Raspada, a Tuchê ficou encarnada, carne viva, dolorida. Aos braços do amante Feliciena atirou-se. Dentro do carro, com o pau latejando, o amante a despiu com um tesão desorientado, mas, ao ver a Tuchê vermelhona, a atirou para fora do carro, gritando – Leviana! Ave de rapina! Rameira barata! Feliciena passeou pela cidade do interior nua, como quis nosso senhor. A Tuchê tão viva na cor de sangue que todos notaram. Pensaram que era doença da depravação. A família a atirou para o próprio azar ou sorte. Feliciena se entregou à jogatina. Apostou no vermelho. Deu preto. Nem um cão entre os amigos Feliciena encontrou. Daí teve mesmo que se prostituir, mas apesar da vagina encarnada e receptiva, era moça de família, bons modos, sabia segurar talheres sem embaraços. Casou-se rapidamente com um homem que odiava...
Má-mãe disse: Não! História velha. Cheia de moral. Copie algo valoroso.
Mas papai não sabia escolher algo que a agradasse. Má-mãe o encontrou pendurado num lustre trazido por ela do Extremo Oriente.
Aos seus pés, uma carta que trazia suas últimas palavras: Não me esperem para o jantar. Suicídio, claro, alternativa de qualquer escritor que se preze. Como não poderia deixar de ser, a carta era um plágio.
(Revista Palavra; julho/2014)
(Ilustração: Leonid Afremov)
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