terça-feira, 19 de abril de 2022
UM SUSTO NA PACIFIC CREST TRAIL (*), de Cheryl Strayed
Caminhei por uma floresta densa durante toda a tarde e em determinado momento, depois de uma curva, encontrei um trio de alces enormes, que correu para dentro da mata com um barulhento tropel de cascos. Naquela noite, apenas momentos depois de eu ter parado para montar acampamento perto de um lago ao lado da trilha, dois caçadores com arco e flecha apareceram, seguindo pela trilha no sentido sul.
— Você tem um pouco d’água? — um deles desabafou imediatamente. — Não podemos beber a água do lago, podemos? — perguntou o outro, o desespero nítido em seu rosto.
Ambos deviam ter por volta de 35 anos. Um tinha cabelos crespos da cor da areia, e uma pequena barriga; o outro era ruivo, alto e corpulento o bastante para ser um linebacker. Os dois usavam jeans com enormes facas da marca Buck presas ao cintos e enormes mochilas com arco e flechas pendurados em sua diagonal.
— Vocês podem beber a água do lago, mas precisam filtrá-la antes — eu disse.
— Não temos filtro — disse o homem de cabelo cor de areia, tirando a mochila e colocando-a perto de uma pedra que ficava no meio de uma pequena clareira entre o lago e a trilha, onde eu planejava acampar. Eu tinha acabado de tirar a mochila quando eles apareceram.
— Podem usar o meu, se quiserem — eu disse. Abri o bolso da Monstra, tirei o purificador de água e o ofereci ao homem de cabelo cor de areia, que o pegou e foi até a margem imunda do lago e se abaixou.
— Como se usa isso? — ele me perguntou.
Mostrei a ele como colocar o tubo de entrada na água com a boia e como bombear a alavanca contra o cartucho.
— Você vai precisar de sua garrafa de água — acrescentei, mas ele e o amigo ruivo olharam um para o outro com arrependimento e me disseram que não tinham uma. Tinham subido apenas para passar o dia caçando. A caminhonete deles estava estacionada em uma estrada na floresta a cerca de 5 quilômetros dali, descendo uma trilha alternativa que eu tinha acabado de cruzar. Acharam que já teriam chegado a ela a essa altura.
— Vocês passaram o dia sem beber água? — perguntei.
— Trouxemos Pepsi — o homem de cabelo cor de areia respondeu. —
Cada um trouxe um engradado com seis.
— Vamos descer na direção de nossa caminhonete depois, então precisamos apenas de água suficiente para tomar outro gole, mas não estamos morrendo de sede — o ruivo disse.
— Aqui — eu disse, indo até a mochila para pegar a água que ainda tinha; cerca de um quarto de uma das minhas duas garrafas. Ofereci a garrafa para o ruivo, ele deu um longo gole e a passou para o amigo, que bebeu o resto. Fiquei preocupada com eles, mas estava mais preocupada com eles ali comigo. Estava exausta. Ansiava por tirar as botas, trocar a roupa suada, armar a barraca e preparar o jantar para que pudesse relaxar lendo The Ten Thousand Things. Além disso, fiquei com uma sensação estranha desses homens com suas Pepsis, seus arcos, suas grandes facas e a maneira como surgiram de repente. Alguma coisa que me fez hesitar do mesmo jeito que me senti na primeira semana na trilha, quando estava sentada na caminhonete de Frank e achei que talvez ele quisesse me fazer mal, mas em vez disso ele tirou a bala de alcaçuz. Deixei que a minha mente ficasse naquela bala de alcaçuz.
— Temos as latas vazias das Pepsis — disse o ruivo. — Podemos bombear água para sua garrafa e depois colocar dentro de duas delas.
O homem com cabelo cor de areia se abaixou na beira do lago com minha garrafa de água vazia e o purificador; o ruivo tirou a mochila e procurou dentro dela duas latas vazias de Pepsi. Fiquei olhando os dois de braços cruzados, cada vez mais desconfiada. As partes de trás molhadas de suor do short, da camiseta e do sutiã agora estavam geladas contra a minha pele.
— É realmente difícil bombear — o homem de cabelo cor de areia disse depois de um tempo.
— É preciso usar um pouco de força — eu disse. — É assim que funciona o filtro.
— Eu não sei — ele respondeu. — Não está vindo nada.
Fui até ele e vi que a boia estava toda para cima perto do cartucho e que a abertura no final do tubo de entrada tinha afundado na sujeira na parte mais rasa do lago. Peguei o purificador dele, coloquei o tubo na água limpa e tentei bombear. Estava completamente travado, emperrado com a sujeira compactada.
— Você não devia ter deixado o tubo entrar no lodo assim — eu disse. — Deveria ter mantido na água.
— Merda — ele disse sem pedir desculpas.
— O que vamos fazer? — o amigo perguntou. — Tenho que conseguir alguma coisa pra beber.
Fui até a minha mochila, peguei o kit de primeiros socorros e puxei o frasco de comprimidos de iodo que carregava. Eu não o usava desde que estive no reservatório infestado de sapos em Hat Creek Rim e quase fiquei fora de mim por causa de desidratação.
— Podemos usar isso — falei, fechando a cara ao perceber que beberia água tratada com iodo até conseguir consertar o purificador, se é que tinha conserto.
— O que é isso? — perguntou o homem de cabelo cor de areia. — Iodo. Você coloca na água e espera trinta minutos, depois a água está segura para beber. — Fui até o lago e afundei as duas garrafas no ponto com a aparência mais clara que pude encontrar e coloquei o iodo em cada uma delas, os homens fizeram o mesmo com as latas de Pepsi e também coloquei uma pílula em cada uma.
— Ok — eu disse, olhando para o relógio. — A água estará boa para tomar às sete e dez. — Torci que com isso eles fossem embora, mas apenas se sentaram e se acomodaram.
— Então, o que você está fazendo aqui sozinha? — perguntou o homem de cabelo cor de areia.
— Estou fazendo a Pacific Crest Trail — eu disse e imediatamente desejei não ter dito. Não gostava da maneira que ele estava me olhando, avaliando descaradamente meu corpo.
— Sozinha?
— Sim — disse com relutância, igualmente receosa de contar a verdade e temerosa de inventar uma mentira que só me deixaria mais irritada do que subitamente fiquei.
— Não dá para acreditar que uma garota como você estaria sozinha
aqui em cima. Você é bonita demais para estar sozinha aqui, se quer saber. Há quanto tempo está viajando? — perguntou.
— Há bastante tempo — respondi.
— Não acredito que uma coisinha jovem como ela possa estar aqui sozinha, você acredita? — falou para o amigo ruivo como se eu não estivesse
ali.
— Não — eu disse antes que o ruivo pudesse responder. — Qualquer pessoa pode fazer isso. Quer dizer, é só...
— Eu não deixaria você vir se fosse minha namorada, de certeza — o ruivo disse.
— Ela tem um corpo bem legal, não tem? — o homem de cabelo cor de areia disse. — Saudável, com curvas suaves. Do jeito que eu gosto. Emiti um som complacente, uma espécie de meia risada, apesar de a garganta ter fechado subitamente de medo.
— Bem, foi um prazer conhecer vocês, caras — falei, indo na direção da Monstra. — Estou indo um pouco mais à frente — menti —, então, é melhor ir andando.
— Estamos indo também. Não queremos esperar escurecer — disse o ruivo, já pegando a mochila; o homem de cabelo cor de areia também pegou a dele. Eu os observei enquanto fingia estar me preparando para partir, embora não quisesse ter que partir. Estava cansada e com sede, com fome e com frio. Estava quase anoitecendo e tinha escolhido acampar nesse lago porque o guia, que apenas descrevia superficialmente este trecho da trilha, já que não era de fato a PCT, sugeriu que este era o último lugar em um bom trecho onde era possível armar uma barraca.
Quando partiram, fiquei parada por um tempo, deixando que o nó na garganta se desfizesse. Eu estava bem. Estava a salvo. Estava sendo meio boba. Eles foram insolentes, sexistas e destruíram meu purificador de água, mas não fizeram nada comigo. Não queriam me machucar. Alguns caras apenas não sabem como agir de outra forma. Tirei as coisas da mochila, enchi a panela com a água do lago, acendi o fogareiro e coloquei a água para ferver. Tirei a roupa suada, coloquei a calça comprida vermelha e a camiseta de lã de manga comprida. Estendi a lona, e estava sacudindo a barraca para fora do saco quando o homem de cabelo cor de areia reapareceu. Ao vê-lo, eu sabia que tudo o que tinha sentido antes estava certo. Que eu tinha razão para ter medo.
Que ele tinha voltado para me pegar.
— O que está acontecendo? — perguntei em um tom falsamente relaxado, embora a visão dele sem o amigo me aterrorizasse. Era como se eu tivesse finalmente esbarrado com um puma e, contra todos os instintos, lembrasse que não devia correr. Não estimulá-lo com movimentos rápidos, nem antagonizá-lo com minha raiva, nem incentivá-lo com meu medo.
— Pensei que estivesse seguindo em frente — ele disse.
— Mudei de ideia — falei.
— Você tentou nos enganar.
— Não, não tentei. Apenas mudei de...
— Você mudou de roupa também — disse sugestivamente, e suas palavras se expandiram em meu estômago como uma rajada de balas. Meu corpo inteiro se arrepiou com a noção de que quando tirei as roupas ele estava por perto, me olhando.
— Gosto de sua calça — ele disse com um leve sorriso, tirando a mochila e colocando-a no chão. — Ou legging, se é assim que é chamada.
— Não sei do que você está falando — falei de modo entorpecido, embora mal pudesse escutar minhas próprias palavras por causa do que pareceu ser o ressoar de um grande sino na minha cabeça, que era a percepção de que toda a caminhada na PCT pudesse dar nisso. De que, por mais durona, forte ou corajosa que eu tenha sido, por mais confortável que tenha vindo a me sentir por estar sozinha, também tive sorte, e que se minha sorte tivesse acabado seria como se nada antes disso tivesse existido, que essa única noite aniquilaria todos aqueles dias corajosos.
— Estou falando sobre gostar de suas calças — o homem disse com um toque de irritação. — Ficam bem em você. Mostram seus quadris e suas pernas.
— Por favor, não diga isso — eu disse do modo mais firme que pude.
— O quê? Estou te elogiando! Um cara não pode mais elogiar uma garota? Você devia se sentir lisonjeada.
— Obrigada — disse em uma tentativa de acalmá-lo, me odiando por isso. Minha mente se voltou para os Três Bonitões, que talvez ainda nem tivessem voltado à trilha. Depois ela procurou o apito mais barulhento do mundo que ninguém a não ser o ruivo poderia ouvir. Foi para o canivete suíço, longe demais no bolso superior esquerdo da mochila. Buscou a água ainda-não-fervente na panela sem cabo no fogareiro. E então aterrissou nas flechas que despontavam sobre a mochila do homem de cabelo cor de areia. Eu podia sentir a linha invisível entre mim e aquelas flechas, como se fosse um fio de alta tensão. Se ele tentasse fazer alguma coisa comigo, eu pegaria uma daquelas flechas e enfiaria em sua garganta.
— Acho melhor você ir embora — eu disse calmamente. — Vai ficar escuro logo. — Cruzei os braços no peito, completamente consciente do fato de que não estava usando sutiã.
— É um país livre — ele disse. — Vou quando estiver pronto. Eu tenho o direito, você sabe.
Ele pegou a lata de Pepsi e suavemente balançou a água lá dentro. — Que droga você está fazendo? — uma voz masculina chamou, e um momento depois o ruivo apareceu. — Tive que caminhar tudo de volta pra te encontrar. Achei que tinha se perdido. — Ele me olhou de forma acusadora, como se eu tivesse culpa, como se eu tivesse conspirado com o homem de cabelo cor de areia para fazê-lo ficar. — Temos que ir agora se quisermos chegar à caminhonete antes de escurecer.
— Se cuida — o homem de cabelo cor de areia me disse, pegando a mochila.
— Tchau — falei bem tranquila, não querendo responder nem irritá-lo por não responder.
— Ei. São sete e dez — ele disse. — É seguro beber a água agora. — Ele levantou a lata de Pepsi em minha direção e fez um brinde. — A uma garota sozinha na floresta — ele disse, dando um gole e depois se virando para seguir o amigo pela trilha.
Fiquei parada por um tempo, do mesmo jeito que tinha ficado na primeira vez que eles saíram, deixando que todos os nós de medo se desfizessem. Não aconteceu nada, disse a mim mesma. Estou perfeitamente bem. Foi apenas um homem repulsivo, assustador e nada legal, e agora ele foi embora.
Mas então eu coloquei a barraca de volta dentro da mochila, desliguei o fogareiro, joguei a água quase fervendo no mato e mergulhei a panela no lago para esfriar. Bebi um grande gole da água com iodo e enfiei a garrafa de água e a camiseta úmida, o sutiã e o short na mochila. Levantei a Monstra, afivelei-a, voltei à trilha e comecei a caminhar na direção norte em meio à luz que esmaecia. Caminhei, caminhei, minha mente entrou no automático, que era o esvaziamento de qualquer coisa a não ser do movimento à frente, e caminhei até que andar se tornasse insuportável, até achar que não conseguiria dar nem mais um passo.
E então eu corri.
(Livre – a jornada de uma mulher em busca do recomeço; tradução de Débora Chaves)
(*) Pacific Crest Trail – PCT - e é uma das trilhas mais longas, bonitas e desafiadoras dos EUA. Percorre uma distância de 4.265 quilômetros. Ela começa na fronteira entre os EUA e o México e segue até o Canadá, passando pelos estados da Califórnia, Oregon e Washington, quase sempre distante da civilização. Para realizar a trilha completa são necessários, ao menos, três meses.
(Ilustração: Mount Rainier National Park - Foto de Samantha Levang)
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