domingo, 30 de junho de 2024

TEMPO DE PAGAR O FORO À IGREJA, de Itamar Vieira Junior


 

Março era um mês de aflição para as famílias da Tapera. Era o tempo de pagar o foro à Igreja. A cobrança não era feita pelos monges, mas por vizinhos com posição privilegiada na comunidade. Os homens chegavam às casas com um carnê em branco, e o preenchiam com a caligrafia precária de quem era pouco escolarizado. Esse recibo com o carimbo de pago se tornava um documento valioso guardado pelas famílias. Tinha a importância de uma escritura, ainda que não tivesse de fato valor algum.

Em nossa casa não era diferente. Era momento de tensão, em especial para Luzia. Observávamos afastados o debate acalorado entre nosso pai e o cobrador. O cobrador — gente da própria Tapera com prestígio junto do abade por cerrar fileiras na igreja, como Matias, Almir, Mãozinha e Chico da Colmeia — vinha seguidas vezes à nossa porta à procura de meu pai. Queria saber se ele tinha deixado o pagamento do foro. Luzia gaguejava, inventava uma história para omitir a resistência do velho contra a cobrança. Mentia que ele havia esquecido, mesmo diante da contestação do cobrador. “Todo ano é a mesma coisa. Mundinho é sempre o último a pagar”, ouvíamos, “um dos poucos que me faz voltar muitas vezes.” A celeuma se arrastava durante vários dias. O cobrador retornava para então encontrar meu pai picando fumo ou amolando o facão para capinar a roça, em geral, aos domingos, quando ele saía mais tarde para trabalhar, permanecendo na tarefa de terra debaixo do sol até o meio-dia. A tensão escalava ainda mais, porque meu pai não se justificava como Luzia. O cobrador começava a dizer a que tinha vindo e meu pai escutava sem olhar para o vizinho. Eu e Luzia ficávamos em algum canto da casa tentando ouvir o que diziam, os sons de suas vozes competindo com a batida dos nossos corações acelerados.

Primeiro, meu pai dizia que não tinha como pagar, o que decerto era verdade. A produção era pequena e supria a casa na maior parte das vezes para livrá-la da fome. Depois as sobras eram embarcadas nos saveiros para serem vendidas nas feiras da cidade. Sem disfarçar a indignação, dizia que a Igreja era rica. Seus avós haviam nascido naquelas terras antes de a Ordem chegar — essa confusão entre tempo e história sempre embaralhava a todos. Pelo que sabia, nunca precisaram pagar imposto algum. “A velha dona dessas terras não exigia”, retrucava. Em seguida, mandava o homem passar um dia qualquer, sempre numa data distante, enquanto amolava o facão mais gasto do que o do cobrador, guardado na bainha em sua cintura. O homem ia embora, mas não sem antes ameaçar de cercar a roça para impedir o trabalho, caso o foro não fosse pago. Meu pai respondia sem medo: “Tá pra nascer o homem que vai me impedir de trabalhar na terra”.

A arrecadação se arrastava por semanas e a aflição para o pagamento não era apenas da nossa família, mesmo que o cobrador quisesse nos fazer acreditar no contrário. Na Tapera, não se falava em outra coisa: dos orgulhosos, que pagaram sacrificando muitas vezes o bem-estar da família, aos desassistidos, que não tinham como quitar de imediato a cobrança. Os pescadores complementavam o sustento com suas pequenas lavouras, mas como a atividade principal era a venda dos pescados, conseguiam pagar no devido tempo. As casas das viúvas e das poucas mulheres solteiras eram as que mais atrasavam. Nos dias de cobrança, o povo da Tapera se gabava, vaidoso, dos que podiam pagar sem maiores sacrifícios, diferente dos que faziam das tripas coração. Ano após ano Luzia retirou do colchão, depois de descosturar uma pequena abertura, o dinheiro minguado que ganhava da própria igreja como lavadeira. Era a quantia dada ao cobrador, para pôr fim à cobrança e termos paz. O recibo, às vezes com algumas cédulas de troco, era guardado dentro do colchão de palha, porque ela sabia que se Mundinho visse o pagamento a casa viria abaixo por ter contrariado sua autoridade. Conhecíamos bem nosso pai e sabíamos que não recusaria um conflito para exibir sua valentia. A certeza de que o respeitavam pela rudeza era tanta que considerava a não continuidade da cobrança uma vitória. Acreditava dever-se ao respeito que lhe restava.

Lá pela quinta ou sexta visita do cobrador, já adentrando abril, era certo que Luzia pagaria. Ainda ouviria de qualquer um deles que a Igreja era muito generosa em não cobrar juros. Ela pagava sem ressalvas, como se nosso pai a tivesse incumbido da tarefa. Eu queria ver onde guardava tudo, mas Luzia me enxotava quando a seguia até o quarto: “Ande, menino, corre, o que veio fazer atrás de mim?”. Apenas eu sabia que ela pagava com o dinheiro do trabalho. Apenas eu via o braço de Luzia estendido no ar depois de dar o dinheiro até que o recibo estivesse na mão. Só eu sabia que ela depositaria o recibo e o troco no colchão, se certificando antes se estava sendo observada, temerosa do nosso pai. À espreita, a observava alinhavar o tecido recobrindo as palhas, compenetrada em sua tarefa de salvar a terra de trabalho da família.

Luzia foi nossa valência durante os anos; sem cobradores à porta, nosso pai se ocupava do trabalho e sua inquietação parecia encontrar o sossego nunca sentido por seus pais e avós, contrariando o que ele mesmo contava. Não sei se era mentira deliberada ou se meu pai acreditava piamente na farsa de uma paz nas terras da Tapera. O fato era que ele prosseguia com sua vida, caminhava de cabeça erguida, a enxada no ombro e o facão na cintura, como se não tivesse qualquer dívida. Trabalhava o pedacinho de chão escolhido a cada chuva, sempre próximo à última fração que, por fim, entrava em pousio. Trabalhava com esmero e o corpo agitado deixava a roupa molhada de suor, da mesma maneira que o orvalho brotava na terra vermelha dos canaviais do passado e do presente, úmida o bastante para fazer nascer qualquer semente que o chão encontrasse.

Mas nem todos conseguiam pagar. Acumulando dívidas ano após ano, algumas famílias iam sucumbindo ao destino de serem excluídas do convívio de sua gente. Nos sermões proferidos nas missas, e mesmo diante do orgulho dos bons pagadores, se enchiam de uma vergonha que tornava a convivência cada vez mais difícil. Por fim, quando não morriam de velhice ou de doença, deixavam a Tapera pelo rio, nos saveiros, ou pela estrada, nos velhos ônibus, como um dia aconteceria comigo.



(Salvar o fogo)



(Ilustração : Pieter Brueghel theYounger - The taxcollectors office)

quinta-feira, 27 de junho de 2024

NOCTURNO / NOTURNO, de Conrado Nalé Roxlo

 



El bosque se duerme y sueña,

el río no duerme, canta.


Por entre las sombras verdes

el agua sonora passa

dejando en la orilla oscura

manojos de espuma blanca.

Llenos los ojos de estrelas,

en el fondo de una barca,

yo voy como una emoción

por la música del agua,

y llevo el río en los lábios,

y llevo el bosque en el alma.



Tradução de Antonio Miranda:



O bosque dorme e sonha,

o rio não dorme, canta.

Por entre as sombras verdes

a água sonora passa

deixando na margem escura

quantidade de espuma branca.

Cheios os olhos de estrelas,

no fundo de um barco,

Eu vou como uma emoção

pela música da água,

e levo o rio nos lábios,

e levo o bosque na alma.



(Ilustração: Anders Zorn - Fors under Gammal - 1884)

segunda-feira, 24 de junho de 2024

BAUMAN E A DIFICULDADE DE AMAR, de Anna Carolina Pinto



Zygmunt Bauman é autor de inúmeras obras com a palavra líquido em seu título. A noção de liquidez proposta pelo filósofo e sociólogo polonês, falecido no começo desse mês [*], é aplicada aos mais variados temas como a modernidade, o amor, o medo, a vida e o tempo, expressando a fluidez, isto é, a imensa facilidade com que estes elementos escorrem pelas mãos do homem moderno. A ideia, extraída de “O Manifesto Comunista” de Marx e Engels, vem da célebre afirmação de que tudo que é sólido se desmancha no ar e de que tudo que é sagrado é profanado: assim é a modernidade e sua essência que se alastra pela vida do homem moderno transformando-o não só como indivíduo, mas também como ser relacional.

O primeiro livro do Bauman que li foi “Amor Líquido” o qual, carinhosamente, valendo-me das palavras de Caetano, defino como “um sopapo na cara do fraco”, que me fez e faz, já que essa sorte de questionamento é constante, pensar na forma como nos relacionamos hoje em dia. Um ponto alto do livro, aos meus olhos, é o capítulo no qual Bauman fala sobre a dificuldade de amar o próximo destacando o modo como lidamos com os estranhos. Penso que nessa dificuldade é que se encontra a raiz de tantos dos nossos problemas seja na esfera pessoal ou pública. E é sobre isso que eu gostaria de refletir conjuntamente hoje.

Vivemos em uma sociedade fortemente marcada pelo conflito ser x ter na qual o homem passa a se expressar pelas suas posses, elementos definidores de sua própria identidade, o que reflete na busca por certa conformidade que ceifa a pluralidade de existências e segrega o que é diferente, estranho. O modo como as cidades se dividem é exemplo disso, os nichos considerados seguros são aqueles onde todos se parecem, exacerbando a nossa dificuldade em lidar com os estranhos que passam a ser evitados através de sistemas de segurança, muros, priorização de espaços que assegurem a conformidade de seus frequentadores como os shoppings etc. Evitar a todo custo o incômodo de estar na presença de estranhos, começar a enxergar naquele que sequer se sabe o nome um inimigo em potencial e desconfiar de tudo e de todos só é possível graças ao desengajamento e ruptura de laços para o sociólogo polonês.

Se levarmos em conta que amar outra pessoa não é amar o que projetamos nela e sim a sua humanidade e singularidades, não será difícil compreender que o amor é um desafio nos tempos de modernidade líquida. A busca pela felicidade individual nos transforma em tribunais individuais e, na disputa pela sentença a ser proferida, não raro, o que se vê é sair vencedor aquele que se recusa a ouvir o outro. Facilmente, pois, livramo-nos dos compromissos e de tudo aquilo que nos pareça incômodo. Ainda que tão agarrados a nós mesmos, paradoxalmente, é bastante comum que a solidão seja companhia (e problema) constante de quem vive a descartar.

Os muros que construímos ao nosso redor, físicos ou emocionais, têm mesmo esse condão de isolar e criar dois mundos em cada um de seus dois lados: o de dentro e o de fora. O último, espaço cativo dos que nos incomodam - aqui incluídos tanto quem nos relacionamos de forma íntima, quanto aqueles que preferimos distantes, inviabilizados de estar perto, enfim, aniquilados ao prender, matar, limitar a circulação, fixar em zonas periféricas etc. É que Narciso acha feio tudo que não é espelho, já diria, mais uma vez, o sempre genial Caetano Veloso.

Dessas reflexões que vão (muito) longe e que, por ora, encerro aqui fica sempre uma mensagem muito clara para mim: amar (mesmo) é um ato revolucionário e só ama quem tem coragem o bastante pra lidar com esse desafio porque sabe que, por mais que nem tudo sejam flores, esse amor “sólido” é que nos impulsiona a querermos ser melhores seja como pessoa ou sociedade. Parece distante e utópico, mas está dentro de nós: ame profunda e verdadeiramente. Até quem você não conhece.


Nota:

[*] Baumann faleceu em 9 de janeiro de 2017 (Nota do blog)



(Revista Prosa Verso e Arte)



(Ilustração: René Magritte - The Lovers)

sexta-feira, 21 de junho de 2024

POETRY / POESIA, de Marianne Moore

 


I, too, dislike it: there are things that are important beyond all this fiddle.

….Reading it, however, with a perfect contempt for it, one discovers in

….it, after all, a place for the genuine.

…….Hands that can grasp, eyes

…..that can dilate, hair that can rise

……….if it must, these things are important not because a



high-sounding interpretation can be put upon them but because they are

….useful. When they become so derivative as to become unintelligible,

….the same thing may be said for all of us, that we

….do not admire what

….. we cannot understand: the bat

…….. holding on upside down or in quest of something to



eat, elephants pushing, a wild horse taking a roll, a tireless wolf under

….. a tree, the immovable critic twitching his skin like a horse

….that feels a flea, the baseball

…fan, the statistician −

….nor is it valid

……..to discriminate against “business documents and



school-books”; all these phenomena are important. One must make a distinction

…..however: when dragged into prominence by half poets, the result is not poetry,

….nor till the poets among us can be

…“literalists of

…..the imagination” − above

……..insolence and triviality and can present



for inspection, “imaginary gardens with real toads in them,” shall we have

…..it. In the meantime, if you demand on the one hand,

….the raw material of poetry in

… all its rawness and

….that which is on the other hand

………..genuine, you are interested in poetry



Tradução de Mário Faustino:



Eu também não gosto lá muito dela: há coisas mais importantes

………………… que toda essa charanga.

Lendo-a, todavia, com o mais perfeito desdém, a gente acaba

…………………….descobrindo

nela, afinal de contas, um lugar para o genuíno.

…….Mãos que podem apertar, olhos

…….que se podem dilatar, cabelo capaz de eriçar-se

…………..se for preciso, tais coisas são importantes não porque uma



grandiloquente interpretação lhes possa ser aposta mas

…………………porque são

úteis. E se ficam tão derivativas que chegam a ser

……………………….ininteligíveis,

…….o mesmo se poderá dizer de qualquer um de nós, que não

…………..admiramos aquilo que

…………..não podemos compreender: o morcego

…………………pendurado de cabeça para baixo ou em busca de algo

……………………….que



comer, os elefantes empurrando, um cavalo selvagem se espojando,

…………………incansável lobo debaixo de

uma árvore, o crítico estacionário encolhendo a pele como um

…………………cavalo picado por um mosquito, o fan de base-

…….ball, o estatístico ―

…………..e nem está direito

…………………discriminar contra “documentos comerciais e



livros escolares”; todos esses fenômenos são importantes. A gente

……………………….deve fazer uma distinção

…….contudo: quando eles são arrastados à preeminência por semipoetas,

……………………….o resultado não é poesia,

…….e nem ― até que os poetas dentre nós possam ser

…………..“literalistas da

…………..imaginação”, acima

…………………do insolente e do trivial e possam apresentar a quem



quiser inspecionar, jardins imaginários contendo sapos de verdade ―

……………………….é que ela será

…….nossa. Enquanto isso, se você exigir por um lado

…….a matéria-prima da poesia

…………todo o seu primarismo e

…………aquilo que é por outro lado

…………….genuíno, então você se interessa por poesia.



(Poesia completa e traduzida; organização de Benedito Nunes. São Paulo, 1985)


(Ilustração: Elisa Riemer)

terça-feira, 18 de junho de 2024

O BELO TERNO, de H. G. Wells

 



Um dia, existiu um rapazinho que ganhou um belo terno de sua mãe. Era verde e dourado, de uma costura tão delicada e elegante que mal consigo descrever, e tinha uma gravata ocre aveludada no pescoço. Os botões novinhos brilhavam como estrelas. Estava tão orgulhoso e satisfeito com o novo traje que se prostrou diante do espelho quando o vestiu pela primeira vez, tão maravilhado e radiante que não conseguia desviar o olhar. Queria usá-lo a todos os lugares, mostrá-lo a todo mundo. Pensou em todos os lugares que já havia visitado, em todos os locais que já lhe haviam descrito, e tentava imaginar a sensação de ir a esses lugares agora usando seu novo terno brilhante e desejava sair e caminhar logo pela grama alta, sob o forte sol do campo, vestindo-o. Apenas para usá-lo! Mas sua mãe o proibiu. Ela disse que deveria cuidar muito bem daquele terno, pois jamais teria outro tão elegante. Deveria guardá-lo e cuidá-lo, vesti-lo somente em ocasiões especiais. Esse seria o traje do seu casamento. Ela envolveu os botões com lenços de papel, temendo que aquele brilho se perdesse, protegeu os punhos e os cotovelos e onde mais julgava que poderia danificar-se facilmente. Ele odiou e opôs-se a tudo isso, mas o que poderia fazer? Por fim os alertas e a persuasão da mãe surtiram efeito e ele concordou em retirar o terno, dobrá-lo nos devidos vincos e guardá-lo. Foi como se o estivesse devolvendo. Mas sempre pensava em vesti-lo, e sonhava com as ocasiões especiais em que poderia usá-lo sem as proteções, sem os lenços de papel envolvendo os botões, completa e integralmente, sem preocupar-se, belo fora do normal.

Uma noite, enquanto sonhava com o terno, como de costume, sonhou que removia o lenço de papel de um dos botões e o encontrava levemente opaco, o que o aborreceu bastante. Ele polia e polia o pobre botão embaçado, mas ele ficava cada vez mais turvo. Então despertou-se mas não se levantou, pensando naquele brilho levemente fosco, e imaginando como se sentiria se quando o grande momento chegasse (o que quer que fosse), um dos botões tivesse perdido um tanto de seu brilho inicial. Remoeu esse pensamento por dias e dias, aflito. E quando sua mãe deixou que usasse o terno, quase cedeu à tentação de desembrulhar só um pouquinho e ver se os botões, de fato, mantinham o brilho de sempre.

Ia galante a caminho da igreja, tomado por esse desejo rebelde. Pois saiba você que sua mãe permitia, com repetidos e cautelosos alertas, que ele usasse seu terno de vez em quando: aos domingos, por exemplo, para a igreja, desde que não houvesse sinal de chuva, tempestades de poeira, ou qualquer coisa que pudesse danificar o traje. Os botões deveriam continuar cobertos e as proteções firmes, e deveria levar sempre uma sombrinha para protegê-lo, caso o sol estivesse forte o suficiente para desbotar suas cores. Após essas ocasiões, ele sempre o limpava antes de guardá-lo outra vez, com o asseio que sua mãe lhe havia ensinado.

Todas as restrições impostas pela mãe para uso do terno eram obedecidas, ele sempre as obedeceu, até que uma noite acordou e percebeu o brilho da lua pela janela. O luar não parecia um luar comum, nem a noite parecia uma noite comum, e permaneceu deitado e sonolento por um tempo, refletindo sobre aquele sentimento. Um pensamento uniu-se a outro, como sussurros calorosos nas sombras. Sentou-se na pequena cama de repente, alerta, com o coração disparado e um tremor dos pés à cabeça. Estava decidido. Vestiria o terno como ele deveria ser vestido. Não lhe restavam dúvidas. Tinha medo, muito medo, mas sentia-se feliz, feliz.

Levantou-se da cama e se deteve por um instante na janela, observando o jardim invadido pelo luar, temeroso pelo que estava prestes a fazer. A noite estava tomada pelo canto sussurrado dos grilos, dos gritos quase inaudíveis dos pequenos seres vivos. Caminhou com cuidado pelo piso de madeira, temendo que o barulho pudesse despertar a casa adormecida, até o enorme e escuro guarda-roupas onde seu belo terno encontrava-se dobrado. Retirou peça por peça e, silenciosa e avidamente, arrancou os lenços de papel que cobriam os botões e as proteções até que lá estava ele, perfeito e encantador como na primeira vez que o viu, quando sua mãe o entregou. Parecia que havia passado tanto tempo. Nenhum botão havia desbotado, não havia sequer um fio fora do lugar em seu querido terno. Estava tão feliz que seus olhos se encheram d’água enquanto o vestiu, apressado. E então voltou, suave e veloz, para a janela com vista para o jardim, deteve-se ali por um instante brilhando sob o luar, com seus botões cintilantes como estrelas, antes de sair ao peitoril e, fazendo o menor barulho possível, arrastou-se até o jardim lá embaixo. Parou em frente à casa materna, branca e quase tão clara quanto era de dia, todas as cortinas fechadas como olhos adormecidos, exceto as dele. As árvores projetavam sombras imóveis, como um bordado intrincado nas paredes.

O jardim à noite era muito diferente do jardim de dia. O brilho da lua se emaranhava na cerca viva e se alongava pelas teias de aranha fantasmagóricas em cada ramo. As flores eram ou de um branco reluzente ou de um preto avermelhado, e o trinado dos pequenos grilos e os cantos dos rouxinóis escondidos na profundeza das árvores tornavam o ar estremecedor.

Não havia escuridão no mundo, apenas sombras cálidas e misteriosas, e todas as folhas e espinhos eram pontiagudos e cravejados de cristais de orvalho iridescentes. A noite estava mais acolhedora que nunca. Por algum milagre, o céu estava maior e mais perto e, apesar da grande lua marfim que dominava o mundo, o céu estava repleto de estrelas.

O menino não gritou nem cantou para comemorar tamanha alegria. Ele parou por um instante, estupefato, e então, com um estranho e silencioso choro, ergueu os braços e correu como se quisesse abraçar de uma só vez toda a imensidão do mundo. Ele não seguiu pelo caminho que cortava o jardim, mas cruzou os canteiros e a grama alta, úmida e perfumada, pelas matíolas e nicotianas, pelo aglomerado de malvas-brancas fantasmagóricas e pelo emaranhado de artemísias e lavanda, e afundou-se pelo grande campo de resedás que batiam em seus joelhos. Alcançou a enorme cerca-viva e abriu caminho, ainda que os espinhos dos pés de amora o tivessem machucado muito, arrancando fios do seu maravilhoso terno, e embora carrapichos e capim grudassem nele, não se importava. Não se importava, pois sabia que isso era parte de usar o terno, algo tão sonhado.

— Estou feliz por ter usado meu terno — disse. — Estou feliz por ter vestido meu terno.

Passada a cerca, alcançou o lago de patos, ou pelo menos o que seria o lago de dia. À noite, era uma grande tigela prateada de luar, ruidosa com o coaxar dos sapos, de um maravilhoso brilho que dançava e se detinha em formas estranhas, e o menino correu até as águas por entre a charneca escura, os joelhos submersos, a cintura, até que a água estivesse na altura dos ombros. Ele golpeava a água com uma das mãos até formar pequenas ondas escuras e brilhantes, pequenas ondas que oscilavam e brilhavam e capturavam estrelas com a rede dos reflexos entrelaçados das árvores na margem. Mergulhou antes de começar a nadar e atravessou até o lado oposto, arrastando-se, ao que parecia, não pelo musgo, mas sim por uma grande massa prateada pegajosa e gotejante. E seguiu pelo emaranhado transfigurado das lavandas e da grama alta na outra margem. Alcançou a estrada principal contente e ofegante.

— Estou feliz — declarou —, estou tão feliz por ter me vestido de acordo com a ocasião.

A estrada era reta como a trajetória de uma flecha, e culminava no poço azul escuro do céu além da lua, uma estrada branca e reluzente entre o canto dos rouxinóis, e ele seguiu, por vezes correndo e saltitando, outras caminhando e regozijando-se, vestindo as roupas que sua mãe havia feito com suas próprias mãos amorosas e incansáveis. A estrada estava coberta de poeira, mas para ele era apenas uma brancura suave. Conforme caminhava, uma enorme mariposa escura veio tremulando ao redor de sua silhueta, cintilante e apressada. A princípio, ignorou-a, mas logo estendeu-lhe as mãos e dançou com ela, enquanto a mariposa circundava sua cabeça.

— Delicada mariposa! — murmurou. — Querida mariposa! Que bela noite, a mais bela noite do mundo! Acha minhas roupas bonitas, querida mariposa? Tão bonitas quanto suas asas e toda a roupagem prateada do céu e da Terra?

E a mariposa se aproximou mais e mais até que, finalmente, uma de suas asas aveludadas pincelaram os lábios do menino…



#



Na manhã seguinte, encontraram-no morto, com o pescoço quebrado, no fundo de uma pedreira, com seu belo traje um tanto ensanguentado, sujo e manchado pelo musgo do lago. Mas seu semblante era de uma felicidade tamanha que, se o tivesse visto, você teria compreendido de fato como ele morreu feliz, mesmo que nunca tenha visto aquele prateado frio e esvoaçante do musgo do lago.



(Tradução de Juliana Pavão)



(Ilustração : René Magritte - the infinite recognition, 1963)

sábado, 15 de junho de 2024

DENTRO DA NOITE VELOZ, de Ferreira Gullar

 






I

Na quebrada do Yuro

eram 13,30 horas

(em São Paulo era mais tarde;

em Paris anoitecera;

na Ásia o sono era seda)

Na quebrada do rio Yuro

a claridade da hora

mostrava seu fundo escuro:

as águas limpas batiam

sem passado e sem futuro.

Estalo de mato, pio

de ave, brisa nas folhas

era silêncio o barulho

a paisagem

(que se move)

está imóvel, se move

dentro de si

(igual que uma máquina de lavar

lavando sob o céu boliviano, a paisagem

com suas polias e correntes de ar)

Na quebrada do Yuro

não era hora nenhuma

só pedras e águas

II

Não era hora nenhuma

até que um tiro

explode em pássaros

e animais até que passos

vozes na água rosto nas folhas

peito ofegando a clorofila

penetra o sangue humano

e a história se move a paisagem

como um trem começa a andar

Na quebrada do Yuro eram 13,30 horas

III

Ernesto Che Guevara

teu fim está perto

não basta estar certo

para vencer a batalha

Ernesto Che Guevara

Entrega-te à prisão

não basta ter razão

pra não morrer de bala

Ernesto Che Guevara

não estejas iludido

a bala entra em teu corpo

como em qualquer bandido

Ernesto Che Guevara

por que lutas ainda?

a batalha está finda

antes que o dia acabe

Ernesto Che Guevara

é chegada a tua hora

e o povo ignora

se por ele lutavas

IV

Correm as águas do Yuro, o tiroteio agora

é mais intenso, o inimigo avança

e fecha o cerco.

Os guerrilheiros

em pequenos grupos divididos

aguentam a luta, protegem a retirada

dos companheiros feridos.

No alto,

grandes massas de nuvens se deslocam lentamente

sobrevoando países

em direção ao Pacífico, de cabeleira azul.

Uma greve em Santiago. Chove

na Jamaica. Em Buenos Aires há sol

nas alamedas arborizadas, um general maquina um golpe.

Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima

de Montevidéu. À beira da estrada

muge um boi da Swift. A Bolsa

no Rio fecha em alta ou baixa.

Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Ñato

castigam o avanço dos rangers .

Urbano tomba, Eustáquio

Che Guevara sustenta

o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda, solve-se-lhe

o joelho, no espanto

os companheiros voltam

para apanhá-lo. É tarde. Fogem.

A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos.

V

Não está morto, só ferido

Num helicóptero ianque

é levado para Higuera

onde a morte o espera

Não morrerá das feridas

ganhas no combate

mas de mão assassina

que o abate

Não morrerá das feridas

ganhas a céu aberto

mas de um golpe escondido

ao nascer do dia

Assim o levam pra morte

(sujo de terra e de sangue)

subjugado no bojo

de um helicóptero ianque

É seu último voo

sobre a América Latina

sob o fulgir das estrelas

que nada sabem dos homens

que nada sabem do sonho,

da esperança, da alegria,

da luta surda do homem

pela flor da cada dia

É seu último voo

sobre a choupana de homens

que não sabem o que se passa

naquela noite de outubro

quem passa sobre seu teto

dentro daquele barulho

quem é levado pra morte

naquela noite noturna

VI

A noite é mais veloz nos trópicos

(com seus na vertigem das folhas na explosão

monturos) das águas sujas

surdas

nos pantanais

é mais veloz sob a pele da treva, na

conspiração de azuis

e vermelhos pulsando

como vaginas frutas bocas

vegetais (confundidos com sonhos)

ou um ramo florido feito um relâmpago

parado sobre uma cisterna d´água

no escuro

É mais funda

a noite no sono

do homem na sua carne

de coca e de fome

e dentro do pote uma caneca

de lata velha de ervilha

da Armour Company

A noite é mais veloz nos trópicos

com seus monturos

e cassinos de jogos

entre as pernas das putas

o assalto a mão armada

aberta em sangue a vida.

É mais veloz (e mais demorada)

nos cárceres

a noite latino-americana

entre interrogatórios

e torturas (lá fora as violetas)

e mais violenta (a noite)

na cona da ditadura

Sob a pele da treva, os frutos

crescem

conspira o açúcar

(de boca para baixo) debaixo

das pedras, debaixo

da palavra escrita no muro

ABAIX

e inacabada Ó Tlalhuicole

as vozes soterradas da platina

Das plumas que ondularam já não resta

mais que a lembrança

no vento

Mas é o dia (com seus monturos)

pulsando dentro do chão

como um pulso

apesar da South American Gold and Platinum

é a língua do dia

no azinhavre

Golpeábamos en tanto los muros de adobe

y era nuestra herencia una red de agujeros

é a língua do homem

sob a noite

no leprosário de San Pablo

nas ruínas de Tiahuanaco

nas galerias de chumbo e silicose

da Cerro de Pasço Corporation

Hemos comido grama salitrosa

piedras de adobe lagartijas ratones

tierra en polvo y gusanos

até que

(de dentro dos monturos) irrompa

com seu bastão turquesa

VII

Súbito vimos ao mundo

E nos chamamos Ernesto

Súbito vimos ao mundo

e estamos

na América Latina

Mas a vida onde está

nos perguntamos

Nas tavernas?

nas eternas tardes tardas?

nas favelas

onde a história fede a merda?

no cinema?

na fêmea caverna de sonhos

e de urina?

ou na ingrata

faina do poema?

(a vida

que se esvai

no estuário do Prata)

Serei cantor

serei poeta?

Responde o cobre (da Anaconda Copper):

Serás assaltante

E proxeneta

Policial jagunço alcagueta

Serei pederasta e homicida?

serei o viciado?

Responde o ferro (da Bethlehem Steel):

Serás ministro de Estado

e suicida

Serei dentista

talvez quem sabe oftalmologista?

Otorrinolaringologista?

Responde a bauxita (da Kaiser Aluminium):

serás médico aborteiro

que dá mais dinheiro

Serei um merda

quero ser um merda

Quero de fato viver.

Mas onde está essa imunda

vida – mesmo que imunda?

No hospício?

num santo

ofício?

no orifício da bunda?

Devo mudar o mundo,

a República? A vida

terei de plantá-la

como um estandarte

em praça pública?

VIII

A vida muda como a cor dos frutos

lentamente

e para sempre

A vida muda como a flor em fruto

velozmente

A vida muda como a água em folhas

o sonho em luz elétrica

a rosa desembrulha do carbono

o pássaro da boca

mas

quando for tempo

E é tempo todo o tempo

mas

não basta um século para fazer a pétala

que um só minuto faz

ou não

mas

a vida muda

a vida muda o morto em multidão




(Ilustração: Che Guevara e as crianças - Santa Clara – Cuba)

quarta-feira, 12 de junho de 2024

O HOMEM QUE ESPALHOU O DESERTO, de Ignácio de Loyola Brandão

 



Quando menino, costumava apanhar a tesoura da mãe e ia para o quintal, cortando folhas das árvores. Havia mangueiras, abacateiros, ameixeiras, pessegueiros e até mesmo jabuticabeiras. Um quintal enorme, que parecia uma chácara e onde o menino passava o dia cortando folhas. A mãe gostava, assim ele não ia para a rua, não andava em más companhias. E sempre que o menino apanhava o seu caminhão de madeira (naquele tempo, ainda não havia os caminhões de plástico, felizmente) e cruzava o portão, a mãe corria com a tesoura: tome filhinho, venha brincar com as suas folhas. Ele voltava e cortava. As árvores levavam vantagem, pois eram imensas e o menino pequeno. O seu trabalho rendia pouco, apesar do dia a dia constante, de manhã à noite.

Mas o menino cresceu, ganhou tesouras maiores. Parecia determinado, à medida que o tempo passava, a acabar com as folhas todas. Dominado por uma estranha impulsão, ele não queria ir à escola, não queria ir ao cinema, não tinha namoradas ou amigos. Apenas tesouras, das mais diversas qualidades e tipos. Dormia com elas no quarto. À noite, com uma pedra de amolar, afiava bem os cortes, preparando-as para as tarefas do dia seguinte. Às vezes, deixava aberta a janela, para que o luar brilhasse nas tesouras polidas. A mãe, muito contente, apesar do filho detestar a escola e ir mal nas letras. Todavia, era um menino comportado, não saía de casa, não andava em más companhias, não se embriagava aos sábados como os outros meninos do quarteirão, não frequentava ruas suspeitas onde mulheres pintadas exageradamente se postavam às janelas, chamando os incautos. Seu único prazer eram as tesouras e o corte das folhas.

Só que, agora, ele era maior e as árvores começaram a perder. Ele demorou apenas uma semana para limpar a jabuticabeira. Quinze dias para a mangueira menor e vinte e cinco para a maior. Quarenta dias para o abacateiro que era imenso, tinha mais de cinquenta anos. E seis meses depois, quando concluiu, já a jabuticabeira tinha novas folhas e ele precisou recomeçar.

Certa noite, regressando do quintal agora silencioso, porque o desbastamento das árvores tinha afugentado pássaros e destruído ninhos, ele concluiu que de nada adiantaria podar as folhas. Elas se recomporiam sempre. É uma capacidade da natureza, morrer e reviver. Como o seu cérebro era diminuto, ele demorou meses para encontrar a solução: um machado.

Numa terça-feira, bem cedo, que não era de perder tempo, começou a derrubada do abacateiro. Levou dez dias, porque não estava habituado a manejar machados, as mãos calejaram, sangraram. Adquirida a prática, limpou o quintal e descansou aliviado.

Mas insatisfeito, porque agora passava os dias a olhar aquela desolação, ele saiu de machado em punho, para os arredores da cidade. Onde encontrava árvore, capões, matos, atacava, limpava, deixava os montes de lenha arrumadinhos para quem quisesse se servir. Os donos dos terrenos não se importavam, estavam em via de vendê-los para fábricas ou imobiliárias e precisavam de tudo limpo mesmo.

E o homem do machado descobriu que podia ganhar a vida com o seu instrumento. Onde quer que precisassem derrubar árvores, ele era chamado. Não parava. Contratou uma secretária para organizar uma agenda. Depois, auxiliares. Montou uma companhia, construiu edifícios para guardar machados, abrigar seus operários devastadores. Importou tratores e máquinas especializadas do estrangeiro. Mandou assistentes fazerem cursos nos Estados Unidos e Europa. Eles voltaram peritos de primeira linha. E trabalhavam, derrubavam. Foram do sul ao norte, não deixando nada em pé. Onde quer que houvesse uma folha verde, lá estava uma tesoura, um machado, um aparelho eletrônico para arrasar.

E enquanto ele ficava milionário, o país se transformava num deserto, terra calcinada. E então, o governo, para remediar, mandou buscar em Israel técnicos especializados em tornar férteis as terras do deserto. E os homens mandaram plantar árvores. E enquanto as árvores eram plantadas, o homem do machado ensinava ao filho sua profissão.



(Cadeiras proibidas; 1979)



(Ilustração: Zdzisław Beksiński)

domingo, 9 de junho de 2024

O MÍNIMO DE NÓS DOIS, de Camila Sintra


 



No pequeno espaço

entre teu olhar e o meu

brilha a estrela do desejo

que nos guia um para o outro



Na ausente distância

entre teus lábios e os meus

brincam e fundem-se os hormônios

da nossa química mais secreta



No mínimo silêncio

onde somente nossos corpos falam

deslizam mãos em carícias

de tatos cegos que tudo dizem



No fugaz e eterno momento

da consumação de nosso amor

gritam gargantas no gozo do prazer

da quase dor desse explodir...



(Ilustração: Jacqueline Secor)

quinta-feira, 6 de junho de 2024

OS NEONAZISTAS NÃO GOSTAM DE MIM, de José António Baço

 


Se está publicado... é público.

Mas hoje em dia, em tempos de Internet, o texto pode chegar aos lugares mais surpreendentes. Um dia destes fui alertado por um e-mail a recomendar que visitasse um certo blog:

- Tem uma crônica tua lá. Mas acho que não vais gostar. Lê os comentários...

Fui ao tal blog e vi que realmente havia um texto meu, publicado aqui neste espaço faz algum tempo. Era uma crônica que, em tom de brincadeira, ensinava uns "truques" aos brasileiros que quisessem imigrar para Portugal. E recomendava que tentassem parecer com os portugueses:

- A melhor maneira é desaparecer na multidão, tentar ficar o mais parecido possível com os nativos.

E, claro, exagerava alguns estereótipos dos portugueses. Ter bigode, cuspir no chão, andar com os pelos do peito à mostra. Tudo na brincadeira.

Mas os idiotas não têm senso de humor. E ninguém consegue ser mais idiota do que um neonazista. O tal blog era frequentado por alguns desses skinheads imbecis que andam por aí a defender a tal "raça branca" e querem ver os estrangeiros fora da Europa.

Os comentários feitos por eles, como era de esperar, destilam ódio e violência. E como os textos contêm ofensas pessoais, vou reproduzir aqui apenas as partes mais genéricas. É o suficiente para perceber o grau de indigência mental desses cretinos.

O sujeito mais incomodado, que assina com o singelo nome de Adolf4Ever, não economiza palavrões (por isso a transcrição que segue está cheia de pontinhos):

- Brasileiros filhos da p..., vêm pra cá f... com esta m... toda. Sim, porque são um bando de marginais e criminosos. E ainda por cima tratam mal quem os acolhe. Filho de uma p... Volta pra casa, nojento.

Ah... o Adolf não sabe que eu sou português.

Outro sujeito, que assina com o nome Xixaboi, exacerba o seu ódio contra os brasileiros:

- Desgraçados, hipócritas e ingratos! Houve um tempo em que ainda pensava que os brasileiros seriam gente... Mas chego à conclusão de que não passam de ladrões, paneleiros e p...

Paneleiros, fique a saber, são homossexuais.

E a malhação continua. Um tal Micas dá um jeitinho de falar também nos africanos, que estão sempre na mira dos neonazistas:

- Brazucas dum cabrão, nunca vi maiores calões. Não querem fazer a ponta de um corno. São piores que os pretos. O vosso sustento são as vossas mulheres, essas p... que vêm para cá atacar para vos encher o c..., seus paneleiros.

Eu traduzo. "Calões" significa folgados, pessoas que não gostam de trabalhar. Não fazer a "ponta de um corno" é não trabalhar. "Atacar" é ir para a prostituição. "Encher o c...", neste caso, significa ganhar dinheiro.

E até uma professora chamada Shana (sem risos, por favor) entrou na dança:

- Até hoje discordei de quem vos apelidava de ingratos. Mas estou a rever as minhas teorias. É que, enquanto eu sou professora e me mato a trabalhar para conseguir ter alguma coisa, vocês chegam aqui e é só facilidades. Mas acho que até tem razão. Deus deu-vos boas bundas. Para alguma coisa deve ter sido!

O que dizer? Essa gente não gosta dos meus textos. Só posso sentir orgulho.

É como diz o velho deitado: "Você não gosta de mim? Ainda bem".



(Ilustração: Raffaello Gambogi - gli emigranti, 1894)


segunda-feira, 3 de junho de 2024

WONDERFUL, de Estela Rosa

 






Uma árvore

rebentada ao meio

não seria mais linda

que uma frase perfeita?



Seus braços

marcados pelas unhas

não seriam mais bonitos

que a simples ideia

de lucidez?



As luzes velhas que piscam

antes de queimar não trazem

mais sentido que as eternas

novidades em tecnologia

com 3 anos de garantia?



Não é divino

o vidro respingado

da chuva torta

a camisa manchada

do sorriso com doce na boca?



Se descobrir

sobrevivente

de dores de cabeça

de camisa com molho

de café nos livros

de descargas de eletricidade

de dedos que se tocaram

e se afastaram



Não seria maravilhoso?





(Ilustração: escultura de Maria Martins – anunciação)