terça-feira, 9 de outubro de 2018

UM GRANDE ÁLBUM DE BABEL, de James Gleick





Suponhamos que dentro de cada livro haja outro livro, e dentro de cada letra em cada página haja outro volume desdobrando-se constantemente; mas esses volumes não ocupam espaço numa escrivaninha. Suponhamos que o conhecimento pudesse ser reduzido a uma quintessência, guardada dentro de uma imagem, um sinal, guardado num lugar que é lugar nenhum.
Hilary Mantel, 2009[1]



“O Universo (que outros chamam de a Biblioteca)…”[2]

Foi assim que Jorge Luis Borges começou seu conto “A biblioteca de Babel”, de 1941, sobre a biblioteca mítica que contém todos os livros, em todos os idiomas, livros de apologia e profecia, as escrituras e o comentário das escrituras e o comentário do comentário das escrituras, a história minuciosamente detalhada do futuro, as interpolações de todos os livros com todos os demais livros, o fidedigno catálogo da biblioteca e os inumeráveis catálogos falsos. Essa biblioteca (que outros chamam de universo) abriga toda a informação. Mas nenhum conhecimento pode ser descoberto nela, precisamente porque todo o conhecimento está nela, arquivado nas prateleiras lado a lado com toda a falsidade. Nas galerias espelhadas, nas incontáveis estantes, pode-se encontrar tudo e nada. Não pode haver caso mais perfeito de saturação de informação.

Nós criamos nossos próprios depósitos. A persistência da informação, a dificuldade de esquecer, tão característica de nossa época, aumenta a confusão. À medida que a enciclopédia on-line gratuita, amadora e colaborativa chamada Wikipédia começou a ultrapassar todas as enciclopédias impressas do mundo em volume e abrangência, os editores perceberam que um número grande demais de palavras e expressões tinha múltiplas identidades. Eles bolaram uma política para desfazer as ambiguidades, levando à criação de páginas de desambiguação — 100 mil delas, um número sempre crescente. Um usuário vasculhando as labirínticas galerias da Wikipédia em busca do termo “Babel”, por exemplo, encontra “Babel (desambiguação)”, que o leva por sua vez ao nome hebraico da Babilônia antiga, à Torre de Babel, a um jornal iraquiano, a um livro de Patti Smith, a um jornalista soviético, a uma revista australiana de professores de idiomas, a um filme, a uma gravadora, a uma ilha na Austrália, a duas montanhas diferentes no Canadá, e “a um planeta de alinhamento neutro no universo fictício de Jornada nas Estrelas”. E ainda mais. Os caminhos da desambiguação se multiplicam de novo e de novo. “Torre de Babel (desambiguação)”, por exemplo, inclui a história do Velho Testamento e, além disso, canções, jogos, livros, um quadro de Brueghel, uma gravura de Escher e “a carta do tarô”. Construímos diversas torres de Babel.

Muito antes da Wikipédia, Borges também escreveu a respeito da enciclopédia “falaciosamente intitulada Ciclopédia Anglo-Americana (Nova York, 1917)”, um labirinto de ficção misturada aos fatos, outro corredor de espelhos e equívocos de impressão, um compêndio de informação pura e impura que projeta seu próprio mundo. Esse mundo se chama Tlön. “Conjectura-se que esse admirável mundo novo seja a obra de uma sociedade secreta de astrônomos, biólogos, engenheiros, metafísicos, poetas, químicos, matemáticos, moralistas, pintores, geometristas”,[3] escreve Borges. “Esse plano é tão vasto que a contribuição de cada escritor é infinitesimal. De início acreditou-se que Tlön fosse um mero caos, uma irresponsável licença da imaginação; agora sabe-se que se trata de um cosmos.” Com razão, o mestre argentino foi tomado como um profeta (“nosso tio heresiarca”,[4] segundo William Gibson) por outra geração de escritores na era da informação.

Muito antes de Borges, a imaginação de Charles Babbage tinha conjurado outra biblioteca de Babel. Ele a encontrou no próprio ar: um registro, permanente embora misturado, de cada som humano.

Que estranho caos é esta atmosfera que respiramos! […] O próprio ar é uma grande biblioteca, em cujas páginas está para sempre escrito tudo aquilo que os homens já disseram ou que as mulheres sussurraram. Ali, em seus caracteres mutáveis mas precisos, misturados com os primeiros e também com os mais recentes suspiros da mortalidade, estão para sempre registrados votos não redimidos, promessas não cumpridas, perpetuando nos movimentos unidos de cada partícula o testemunho da cambiante vontade humana.[5]

Edgar Allan Poe, seguidor ansioso do trabalho de Babbage, entendeu o que ele queria dizer. “Nenhum pensamento pode perecer”,[6] escreveu ele em 1845, num diálogo entre dois anjos. “Não teria cruzado sua consciência algum pensamento acerca do poder físico das palavras? Não seria cada palavra um impulso no ar?” Indo além, cada impulso propaga sua vibração de forma indefinida, “subindo e avançando sua influência, tocando todas as partículas de toda a matéria”, até necessariamente, “no fim, marcar cada coisa individual que existe dentro do universo”. Poe também estava lendo Pierre-Simon Laplace, um partidário de Newton. “Um ser de entendimento infinito”, escreveu Poe, “para quem a perfeição da análise algébrica se revelasse desdobrada”, seria capaz de rastrear as ondulações de volta a sua origem.

Babbage e Poe adotaram uma visão teórico-informacional da nova física. Laplace tinha exposto detalhadamente e com perfeição um determinismo mecânico newtoniano. Foi além do próprio Newton, defendendo a ideia de um universo complexo como o mecanismo de um relógio, no qual nada seria obra do acaso. Como as leis da física se aplicam da mesma forma aos corpos celestes e às menores partículas, e como elas funcionam de maneira perfeitamente confiável, então sem dúvida (disse Laplace) o estado do universo a cada instante segue inexoravelmente do passado e deve conduzir com igual implacabilidade ao futuro. Era cedo demais para conceber a incerteza quântica, a teoria do caos, ou os limites da computabilidade. Para dramatizar seu determinismo perfeito, Laplace nos pedia para imaginar um ser — uma “inteligência” — capaz do conhecimento perfeito:

Este englobaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e aqueles do mais leve átomo; para tal ser, nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, se faria presente diante de seus olhos.[7]

Nada que Laplace tenha escrito ficou tão famoso quanto esse exercício mental. Tornava inútil não apenas a vontade de Deus como também a do Homem. Para os cientistas, esse newtonismo extremo parecia motivo de otimismo. Para Babbage, toda a natureza se assemelhava subitamente a uma vasta máquina calculadora, uma versão grandiosa de sua própria máquina determinista: “Ao afastar nossas opiniões dessas simples consequências da justaposição de algumas engrenagens, é impossível não perceber o raciocínio paralelo aplicado aos poderosos e muito mais complexos fenômenos da natureza”.[8] Cada átomo, uma vez perturbado, precisa comunicar seu movimento aos demais, e estes por sua vez influenciam ondas de ar, e nenhum impulso é jamais perdido por completo. O rastro de cada embarcação continua em algum lugar dos oceanos. Babbage, cujo gravador esferográfico ferroviário registrava num rolo de papel a história de uma jornada, viu a informação, antes fugidia, como uma série de impressões físicas que eram — ou poderiam ser —percebidas. O fonógrafo, que grava o som numa folha metálica ou na cera, ainda não tinha sido inventado, mas Babbage era capaz de ver a atmosfera como um motor de movimento dotado de significado: “cada átomo marcado pelo bem ou pelo mal […] recebido dos filósofos e sábios, misturado e combinado de dez mil maneiras com tudo aquilo que é baixo e desprovido de valor”. Longe de ter desaparecido no ar, cada palavra já dita, tenha ela sido ouvida por uma plateia de centenas ou por ninguém, deixa sua marca indelével, sendo o registro completo do som humano criptografado pelas leis do movimento e, teoricamente, passível de ser recuperado — dado um poder de computação suficiente.

Isso era demasiadamente otimista. Ainda assim, no mesmo ano em que Babbage publicou seu ensaio, o artista e químico Louis Daguerre aperfeiçoou em Paris seu meio de capturar as imagens visuais em placas cobertas de prata. Seu concorrente britânico, William Fox Talbot, chamou isso de “arte do desenho fotogênico, ou de formar imagens e quadros de objetos naturais por meio da luz solar”.[9] Talbot viu algo semelhante a um meme. “Por meio desse aparelho”, escreveu ele, “não é o artista que faz a imagem, e sim a imagem que faz a si mesma.” A partir de então as imagens que dançavam diante de nossos olhos poderiam ser congeladas, impressas numa substância, tornadas permanentes.

Por meio do desenho ou da pintura, um artista — usando a habilidade, o treinamento e o tempo de trabalho — reconstrói aquilo que o olho vê. Em comparação, um daguerreótipo é, num certo sentido, a coisa em si — a informação, armazenada num instante. Era algo inimaginável, mas ali estava. As possibilidades eram atordoantes. Uma vez iniciado o armazenamento, onde ele iria parar? Imediatamente, um ensaísta norte-americano fez a relação entre a fotografia e a biblioteca atmosférica de sons imaginada por Babbage: este dissera que cada palavra jazia registrada no ar em algum ponto e, quem sabe, talvez cada imagem deixasse também sua marca permanente — em algum lugar.

Na verdade, existe um grande álbum de Babel. E como será se a grande atividade do sol for agir como um registrador, proporcionando impressões de nossa aparência, e imagens de nossos atos; e, assim sendo […] até onde podemos saber, outros mundos poderiam ser povoados e conduzidos com as imagens de pessoas e transações criadas a partir disso e umas das outras; sendo toda a natureza universal nada mais do que estruturas fonéticas e fotogênicas.[10]

O universo, que outros chamaram de biblioteca ou álbum, passou então a se assemelhar a um computador. Alan Turing pode ter sido o primeiro a notar isso, observando que o computador, como o universo, é mais bem interpretado como uma coleção de estados, e o estado da máquina num dado momento leva ao estado no instante seguinte, e assim todo o futuro da máquina seria previsível a partir de seus estados iniciais e dos sinais de entrada.
O universo está computando seu próprio destino.

Turing percebeu que o sonho de perfeição de Laplace poderia ser possível numa máquina, mas não no universo, por causa de um fenômeno que, na geração seguinte, seria descoberto pelos teóricos do caos e batizado de efeito borboleta. Turing o descreveu da seguinte maneira em 1950:

O sistema do “universo como um todo” é tal que erros bastante pequenos nas condições iniciais podem trazer efeitos irresistíveis num momento posterior. O deslocamento de um único elétron em um bilionésimo de centímetro num dado momento pode resultar na diferença entre um homem ser morto por uma avalanche um ano mais tarde, ou escapar dela.[11]

Se o universo é um computador, talvez ainda tenhamos dificuldade em acessar sua memória. Caso seja uma biblioteca, trata-se de uma biblioteca sem estantes. Quando todos os sons do mundo se dispersam pela atmosfera, nenhuma palavra se mantém associada a um conjunto específico de átomos. As palavras estão em toda parte e em lugar nenhum. Foi por isso que Babbage chamou de “caos” esse depósito de informações. Mais uma vez ele estava à frente de sua época.


Notas

1. Hilary Mantel, Wolf Hall. Nova York: Henry Holt, 2009. p. 394.
2. Jorge Luis Borges, “The Library of Babel”, em Labyrinths: Selected Stories
and Other Writings. Nova York: New Directions, 1962. p. 54.
3. Jorge Luis Borges, “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, em Labyrinths, p. 8.
4. William Gibson, “An Invitation”, introdução a Labyrinths, p. xii.
5. Charles Babbage, The Ninth Bridgewater Treatise: A Fragment. 2. ed.
Londres: John Murray, 1838. p. 111.
6. Edgar Allan Poe, “The Power of Words” (1845), em Poetry and Tales.
Nova York: Library of America, 1984. pp. 823-4.
7. Pierre-Simon Laplace, A Philosophical Essay on Probabilities. Trad. de
FrederickWilson Truscott e FrederickLincoln Emory. Nova York: Dover, 1951.
8. Charles Babbage, The Ninth Bridgewater Treatise, p. 44.
9. Nathaniel Parker Willis, “The Pencil of Nature: A New Discovery ”, The
Corsair, v. 1, n. 5, p. 72, abr. 1839.
10. Ibid., p. 71.
11. Alan M. Turing, “Computing Machinery and Intelligence”, Minds and
Machines, v. 59, n. 236, p. 440, 1950.




(A Informação; tradução de Augusto Calil)



(Ilustração: biblioteca de Alexandria atual; foto de a. não identificado)




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