domingo, 26 de abril de 2015
O EMPRÉSTIMO, de Machado de Assis
Vou divulgar uma anedota,
mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo, que o vulgo ampliou às
historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar algumas pessoas
que a sabem tão bem como eu. Nem ela andou recôndita, senão por falta de um
espírito repousado, que lhe achasse a filosofia. Como deveis saber, há em todas
as coisas um sentido filosófico. Carlyle descobriu o dos coletes, ou, mais
propriamente, o do vestuário; e ninguém ignora que os números, muito antes da
loteria do Ipiranga, formavam o sistema de Pitágoras. Pela minha parte creio
ter decifrado este caso de empréstimo; ides ver se me engano.
E, para começar, emendemos
Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si mesmo, uma vida
singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas por
que não acrescentou ele, que muitas vezes uma só hora é a representação de uma
vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta
de ministro, um banco, uma coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinquenta
anos, vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça. Tudo
isso que se passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas
páginas; por que não há de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em
trinta ou sessenta minutos?
Tinham batido quatro horas
no cartório do tabelião Vaz Nunes, à Rua do Rosário. Os escreventes deram ainda
as últimas penadas: depois limparam as penas de ganso na ponta de seda preta
que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papéis,
arrumaram os autos e os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de paletó à
entrada, despiram o do trabalho e enfiaram o da rua; todos saíram. Vaz Nunes
ficou só.
Este honesto tabelião era
um dos homens mais perspicazes do século. Está morto: podemos elogiá-lo à
vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele adivinhava o caráter
das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos e resoluções; conhecia
a alma de um testador muito antes de acabar o testamento; farejava as manhas
secretas e os pensamentos reservados. Usava óculos, como todos os tabeliães de
teatro; mas, não sendo míope, olhava por cima deles, quando queria ver, e
através deles, se pretendia não ser visto. Finório como ele só, diziam os
escreventes. Em todo o caso, circunspeto. Tinha cinquenta anos, era viúvo, sem
filhos, e, para falar como alguns outros serventuários, roía muito caladinho os
seus duzentos contos de réis.
— Quem é? perguntou ele de
repente, olhando para a porta da rua.
Estava à porta, parado na
soleira, um homem que ele não conheceu logo, e mal pôde reconhecer daí a pouco.
Vaz Nunes pediu-lhe o favor de entrar; ele obedeceu, cumprimentou-o,
estendeu-lhe a mão, e sentou-se na cadeira ao pé da mesa. Não trazia o acanho
natural a um pedinte; ao contrário, parecia que não vinha ali senão para dar ao
tabelião alguma coisa preciosíssima e rara. E, não obstante, Vaz Nunes
estremeceu e esperou.
— Não se lembra de mim?
— Não me lembro...
— Estivemos juntos uma
noite, há alguns meses, na Tijuca... Não se lembra? Em casa do Teodorico,
aquela grande ceia de Natal; por sinal que lhe fiz uma saúde... Veja se se
lembra do Custódio.
— Ah!
Custódio endireitou o
busto, que até então inclinara um pouco. Era um homem de quarenta anos. Vestia
pobremente, mas escovado, apertado, correto. Usava unhas longas, curadas com
esmero, e tinha as mãos muito bem talhadas, macias, ao contrário da pele do
rosto, que era agreste. Notícias mínimas, e aliás necessárias ao complemento de
um certo ar duplo que distinguia este homem, um ar de pedinte e general. Na
rua, andando, sem almoço, sem vintém, parecia levar após si um exército. A
causa não era outra mais do que o contraste entre a natureza e a situação,
entre a alma e a vida. Esse Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a
vocação do trabalho. Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da
boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dos móveis raros, um voluptuoso,
e, até certo ponto, um artista, capaz de reger a vila Torloni ou a galeria
Hamilton. Mas não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o
ganhar; por outro lado, precisava viver. Il faut bien que je vive, dizia um
pretendente ao ministro Talleyrand. Je n'en vois pas la nécessité, redarguiu
friamente o ministro. Ninguém dava essa resposta ao Custódio; davam-lhe
dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil réis, e de tais espórtulas é que
ele principalmente tirava o albergue e a comida.
Digo que principalmente
vivia delas, porque o Custódio não recusava meter-se em alguns negócios, com a
condição de os escolher, e escolhia sempre os que não prestavam para nada.
Tinha o faro das catástrofes. Entre vinte empresas, adivinhava logo a
insensata, e metia ombros a ela, com resolução. O caiporismo, que o perseguia,
fazia com que as dezenove prosperassem, e a vigésima lhe estourasse nas mãos.
Não importa; aparelhava-se para outra.
Agora, por exemplo, leu um
anúncio de alguém que pedia um sócio, com cinco contos de réis, para entrar em
certo negócio, que prometia dar, nos primeiros seis meses, oitenta a cem contos
de lucro. Custódio foi ter com o anunciante. Era uma grande idéia, uma fábrica
de agulhas, indústria nova, de imenso futuro. E os planos, os desenhos da
fábrica, os relatórios de Birmingham, os mapas de importação, as respostas dos
alfaiates, dos donos de armarinho etc., todos os documentos de um longo
inquérito passavam diante dos olhos de Custódio, estrelados de algarismos, que
ele não entendia, e que por isso mesmo lhe pareciam dogmáticos. Vinte e quatro
horas; não pedia mais de vinte e quatro horas para trazer os cinco contos. E
saiu dali, cortejado, animado pelo anunciante, que, ainda à porta, o afogou
numa torrente de saldos. Mas os cinco contos, menos dóceis ou menos vagabundos
que os cinco mil réis, sacudiam incredulamente a cabeça, e deixavam-se estar
nas arcas, tolhidos de medo e de sono. Nada. Oito ou dez amigos, a quem falou,
disseram-lhe que nem dispunham agora da soma pedida, nem acreditavam na
fábrica. Tinha perdido as esperanças, quando aconteceu subir a Rua do Rosário e
ler no portal de um cartório o nome de Vaz Nunes. Estremeceu de alegria;
recordou a Tijuca, as maneiras do tabelião, as frases com que ele lhe respondeu
ao brinde, e disse consigo, que este era o salvador da situação.
— Venho pedir-lhe uma
escritura...
Vaz Nunes, armado para
outro começo, não respondeu; espiou por cima dos óculos e esperou.
— Uma escritura de
gratidão, explicou o Custódio; venho pedir-lhe um grande favor, um favor
indispensável, e conto que o meu amigo...
— Se estiver nas minhas
mãos...
— O negócio é excelente,
note-se bem; um negócio magnífico. Nem eu me metia a incomodar os outros sem
certeza do resultado. A coisa está pronta; foram já encomendas para a
Inglaterra; e é provável que dentro de dois meses esteja tudo montado, é uma
indústria nova. Somos três sócios, a minha parte são cinco contos. Venho
pedir-lhe esta quantia, a seis meses, — ou a três, com juro módico...
— Cinco contos?
— Sim, senhor.
— Mas, Sr. Custódio, não
posso, não disponho de tão grande quantia. Os negócios andam mal; e ainda que
andassem muito bem, não poderia dispor de tanto. Quem é que pode esperar cinco
contos de um modesto tabelião de notas?
— Ora, se o senhor quisesse...
— Quero, decerto; digo-lhe
que se se tratasse de uma quantia pequena, acomodada aos meus recursos, não
teria dúvida em adiantá-la. Mas cinco contos! Creia que é impossível.
A alma de Custódio caiu de
bruços. Subira pela escada de Jacó até o céu; mas em vez de descer como os
anjos no sonho bíblico, rolou abaixo e caiu de bruços. Era a última esperança;
e justamente por ter sido inesperada, é que ele supôs que fosse certa, pois,
como todos os corações que se entregam ao regímen do eventual, o do Custódio
era supersticioso. O pobre diabo sentiu enterrarem-se-lhe no corpo os milhões
de agulhas que a fábrica teria de produzir no primeiro semestre. Calado, com os
olhos no chão, esperou que o tabelião continuasse, que se compadecesse, que lhe
desse alguma aberta; mas o tabelião, que lia isso mesmo na alma do Custódio,
estava também calado, girando entre os dedos a boceta de rapé, respirando
grosso, com um certo chiado nasal e implicante. Custódio ensaiou todas as
atitudes; ora pedinte, ora general. O tabelião não se mexia. Custódio
ergueu-se.
— Bem, disse ele, com uma
pontazinha de despeito, há de perdoar o incômodo...
— Não há que perdoar; eu é
que lhe peço desculpa de não poder servi-lo, como desejava. Repito: se fosse
alguma quantia menos avultada, muito menos, não teria dúvida; mas...
Estendeu a mão ao
Custódio, que com a esquerda pegara maquinalmente no chapéu. O olhar empanado
do Custódio exprimia a absorção da alma dele, apenas convalescida da queda, que
lhe tirara as últimas energias. Nenhuma escada misteriosa, nenhum céu; tudo
voara a um piparote do tabelião. Adeus, agulhas! A realidade veio tomá-lo outra
vez com as suas unhas de bronze. Tinha de voltar ao precário, ao adventício, às
velhas contas, com os grandes zeros arregalados e os cifrões retorcidos à laia
de orelhas, que continuariam a fitá-lo e a ouvi-lo, a ouvi-lo e a fitá-lo,
alongando para ele os algarismos implacáveis de fome. Que queda! e que abismo!
Desenganado, olhou para o tabelião com um gesto de despedida; mas, uma idéia
súbita clareou-lhe a noite do cérebro. Se a quantia fosse menor, Vaz Nunes
poderia servi-lo, e com prazer; por que não seria uma quantia menor? Já agora
abria mão da empresa; mas não podia fazer o mesmo a uns aluguéis atrasados, a
dois ou três credores etc., e uma soma razoável, quinhentos mil réis, por
exemplo, uma vez que o tabelião tinha a boa vontade de emprestar-lhos, vinham a
ponto. A alma do Custódio empertigou-se; vivia do presente, nada queria saber
do passado, nem saudades, nem temores, nem remorsos. O presente era tudo. O
presente eram os quinhentos mil réis, que ele ia ver surgir da algibeira do
tabelião, como um alvará de liberdade.
— Pois bem, disse ele,
veja o que me pode dar, e eu irei ter com outros amigos... Quanto?
— Não posso dizer nada a este
respeito, porque realmente só uma coisa muito modesta.
— Quinhentos mil réis?
— Não; não posso.
— Nem quinhentos mil réis?
— Nem isso, replicou firme
o tabelião. De que se admira? Não lhe nego que tenho algumas propriedades; mas,
meu amigo, não ando com elas no bolso; e tenho certas obrigações
particulares... Diga-me, não está empregado?
— Não, senhor.
— Olhe; dou-lhe coisa
melhor do que quinhentos mil réis; falarei ao Ministro da Justiça, tenho
relações com ele, e...
Custódio interrompeu-o,
batendo uma palmada no joelho. Se foi um movimento natural, ou uma diversão
astuciosa para não conversar do emprego, é o que totalmente ignoro; nem parece
que seja essencial ao caso. O essencial é que ele teimou na súplica. Não podia
dar quinhentos mil réis? Aceitava duzentos; bastavam-lhe duzentos, não para a
empresa, pois adotava o conselho dos amigos: ia recusá-la. Os duzentos mil réis,
visto que o tabelião estava disposto a ajudá-lo, eram para uma necessidade
urgente, — “tapar um buraco”. E então relatou tudo, respondeu à franqueza com
franqueza: era a regra da sua vida. Confessou que, ao tratar da grande empresa,
tivera em mente acudir também a um credor pertinaz, um diabo, um judeu, que
rigorosamente ainda lhe devia, mas tivera a aleivosia de trocar de posição.
Eram duzentos e poucos mil réis; e dez, parece; mas aceitava duzentos...
— Realmente, custa-me
repetir-lhe o que disse; mas, enfim, nem os duzentos mil réis posso dar. Cem
mesmo, se o senhor os pedisse, estão acima das minhas forças nesta ocasião.
Noutra pode ser, e não tenho dúvida, mas agora...
— Não imagina os apuros em
que estou!
— Nem cem, repito. Tenho
tido muitas dificuldades nestes últimos tempos. Sociedades, subscrições,
maçonaria... Custa-lhe crer, não é? Naturalmente: um proprietário. Mas, meu
amigo, é muito bom ter casas: o senhor é que não conta os estragos, os
consertos, as penas d'água, as décimas, o seguro, os calotes etc. São os
buracos do pote, por onde vai a maior parte da água...
— Tivesse eu um pote!
suspirou Custódio.
— Não digo que não. O que
digo é que não basta ter casas para não ter cuidados, despesas, e até
credores... Creia o senhor que também eu tenho credores.
— Nem cem mil réis!
— Nem cem mil réis,
pesa-me dizê-lo, mas é a verdade. Nem cem mil réis. Que horas são?
Levantou-se, e veio ao
meio da sala. Custódio veio também, arrastado, desesperado. Não podia acabar de
crer que o tabelião não tivesse ao menos cem mil réis. Quem é que não tem cem
mil réis consigo? Cogitou uma cena patética, mas o cartório abria para a rua;
seria ridículo. Olhou para fora. Na loja fronteira, um sujeito apreçava uma
sobrecasaca, à porta, porque entardecia depressa, e o interior era escuro. O
caixeiro segurava a obra no ar; o freguês examinava o pano com a vista e com os
dedos, depois as costuras, o forro... Este incidente rasgou-lhe um horizonte
novo, embora modesto; era tempo de aposentar o paletó que trazia. Mas nem cinquenta
mil réis podia dar-lhe o tabelião. Custódio sorriu; — não de desdém, não de
raiva, mas de amargura e dúvida; era impossível que ele não tivesse cinquenta
mil réis. Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! Não; falso tudo, tudo mentira.
Custódio tirou o lenço,
alisou o chapéu devagarinho; depois guardou o lenço, concertou a gravata, com
um ar misto de esperança e despeito. Viera cerceando as asas à ambição, pluma a
pluma; restava ainda uma penugem curta e fina, que lhe metia umas veleidades de
voar. Mas o outro, nada. Vaz Nunes cotejava o relógio de parede com o do bolso,
chegava este ao ouvido, limpava o mostrador, calado, transpirando por todos os
poros impaciência e fastio. Estavam a pingar as cinco; deram, enfim, e o
tabelião, que as esperava, desengatilhou a despedida. Era tarde; morava longe.
Dizendo isto, despiu o paletó de alpaca, e vestiu o de casimira, mudou de um
para outro a boceta de rapé, o lenço, a carteira... Oh! a carteira! Custódio
viu esse utensílio problemático, apalpou-o com os olhos, invejou a alpaca,
invejou a casimira, quis ser algibeira, quis ser o couro, a matéria mesma do precioso
receptáculo. Lá vai ela; mergulhou de todo no bolso do peito esquerdo; o
tabelião abotoou-se. Nem vinte mil réis! Era impossível que não levasse ali
vinte mil réis, pensava ele; não diria duzentos, mas vinte, dez que fossem...
— Pronto! disse-lhe Vaz
Nunes, com o chapéu na cabeça.
Era o fatal instante.
Nenhuma palavra do tabelião, um convite ao menos, para jantar; nada; findara
tudo. Mas os momentos supremos pedem energias supremas. Custódio sentiu toda a
força deste lugar comum, e, súbito, como um tiro, perguntou ao tabelião se não
lhe podia dar ao menos dez mil réis.
— Quer ver?
E o tabelião desabotoou o
paletó, tirou a carteira, abriu-a, e mostrou-lhe duas notas de cinco mil réis.
— Não tenho mais, disse
ele; o que posso fazer é reparti-los com o senhor; dou-lhe uma de cinco, e fico
com a outra; serve-lhe?
Custódio aceitou os cinco
mil réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante, como se viesse de
conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo. Estendeu a mão ao outro,
agradeceu-lhe o obséquio, despediu-se até breve, — um até breve cheio de
afirmações implícitas. Depois saiu; o pedinte esvaiu-se à porta do cartório; o
general é que foi por ali abaixo, pisando rijo, encarando fraternalmente os
ingleses do comércio que subiam a rua para se transportarem aos arrabaldes.
Nunca o céu lhe pareceu tão azul, nem a tarde tão límpida; todos os homens
traziam na retina a alma da hospitalidade. Com a mão esquerda no bolso das
calças, ele apertava amorosamente os cinco mil réis, resíduo de uma grande
ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol, num ímpeto de águia, e ora
habita modestamente as asas de frango rasteiro.
(Papéis Avulsos)
(Pawel Kuczinski)
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