sexta-feira, 27 de março de 2020
GATOS EM PARTICULAR, de Doris Lessing
Senti raiva do holocausto de gatos, porque ele poderia ter sido evitado; mas não me lembro de ficar triste. Havia me dissociado disso por causa da minha angústia com a morte de uma gata alguns anos antes, quando eu tinha onze anos de idade. Diante do corpo frio e pesado que, inexplicavelmente, havia sido a criatura leve como pluma do dia anterior, eu dissera: nunca mais. Mas já tinha feito esse juramento antes, e sabia disso. Meus pais me contaram que, aos três anos de idade, eu estava passeando com a babá em Teerã quando, apesar dos protestos dela, peguei na rua um gatinho faminto e o levei para casa. Segundo eles, eu disse que aquele gatinho era meu e lutei por ele quando o pessoal de casa se recusou a abrigá-lo. Deram-lhe um banho de permanganato de potássio, de tão imundo que estava; e, a partir daí ele passou a dormir na minha cama. Eu não deixava que ninguém o tirasse de mim; mas é claro que alguém tirou, pois minha família deixou a Pérsia e o gato ficou para trás. Ou talvez tenha morrido. Talvez – mas como posso saber? De qualquer maneira, em algum ponto do passado, uma menina muito pequena tinha brigado e vencido em nome de um gato que lhe fazia companhia dia e noite; mas, então, ela o perdera.
Depois de certa idade – e, para alguns de nós, isso pode ocorrer muito cedo – não existem novas pessoas, animais, sonhos, rostos, acontecimentos: tudo já aconteceu antes, já apareceu antes, com outra máscara, outras roupas, outra nacionalidade, outra cor; mas é igual, igual, tudo é eco e repetição; e não há nem dor que não seja uma recorrência de algo há muito esquecido que se expressa numa angústia inacreditável, em dias de lágrimas, solidão, consciência de traição; e tudo por um gato pequeno, magro e moribundo.
Fiquei doente naquele inverno. Foi um problema, porque meu quarto ia receber uma demão de cal. Alojaram-me num quartinho nos fundos. A casa, que ficava quase no topo da colina, mas não exatamente, sempre parecia prestes a escorregar até os milharais lá embaixo. Esse quarto minúsculo, não mais do que uma fatia da extremidade da casa, tinha uma porta, sempre aberta, e janelas, sempre abertas, apesar do vento frio de um mês de julho cujos céus eram de um azul interminável, claro e sem nuvens. O céu, repleto de sol; os campos, iluminados. Mas frios, muito frios. A gata, uma persa cinza-azulada, chegou ronronando na minha cama e se acomodou para compartilhar minha doença, minha comida, meu travesseiro, meu sono. Quando eu acordava de manhã, ao me virar, meu rosto tocava lençóis semicongelados; o lado externo da coberta de pele sobre a cama estava frio; o cheiro de cal que vinha do cômodo ao lado era frio e antisséptico; o vento que levantava e baixava a poeira do lado de fora era frio – mas na dobra do meu braço havia um calor leve e ronronante, a gata, minha amiga.
Nos fundos da casa, na frente do banheiro, uma bacia de madeira sobre a terra recolhia a água do banho. Naquela fazenda não havia encanamento: quando se precisava de água, ia-se até um poço a dois ou três quilômetros de distância, numa carroça puxada por bois. Nos meses da estação seca, a única água disponível para o jardim era a do banho, suja. A gata caiu nessa bacia num dia em que ela estava cheia de água quente. Ela gritou, foi arrancada de lá em meio a um vento gelado e banhada com permanganato de potássio – pois a bacia estava imunda, a água com sabão coalhada de folhas e poeira –; foi seca e posta na minha cama para se aquecer. Mas espirrava e resfolegava, e então começou a arder de febre. Era pneumonia. Demos a ela o que tínhamos em casa, mas naquela época não existia antibiótico, e assim a gata morreu. Ficou nos meus braços por uma semana, ronronando, ronronando, numa vozinha rouca e trêmula que foi se tornando vez mais fraca, até silenciar; lambeu minha mão; abriu os enormes olhos verdes quando a chamei e lhe implorei que vivesse; fechou os olhos, morreu e foi atirada num poço escuro – com mais de trinta metros de profundidade – que havia secado, porque num determinado ano os rios subterrâneos tinham mudado de curso e transformado aquilo que acreditávamos ser um poço confiável num buraco seco, rachado e pedregoso que logo estava cheio até a metade de lixo, latas e cadáveres. Pronto. Nunca mais. E durante anos fiquei comparando gatos em casas de amigos, gatos em lojas, gatos em fazendas, gatos na rua, gatos em muros, gatos na memória com aquela criatura doce e cinza-azulada que ronronava e que para mim era o gato, o Gato, impossível de um dia ser substituído.
E, além disso, durante alguns anos minha vida não incluía supérfluos, artigos desnecessários, adornos. Gatos não cabiam numa existência sempre cambiante, de lugar em lugar, de quarto em quarto. Um gato precisa de um local que lhe pertença, tanto quanto precisa de uma pessoa que lhe pertença.
Assim, só 25 anos mais tarde houve espaço para um gato na minha vida.
(Sobre gatos; tradução de Júlia Romeu)
(Ilustração: Bacchiacca)
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