sábado, 21 de março de 2020
AMANHÃ É DEMASIADO TARDE, de Chimamanda Ngozi Adichie
Foi o último verão que passaste na Nigéria, o verão antes do divórcio dos teus pais, antes de a tua mãe jurar que nunca mais porias os pés na Nigéria para ver a família do teu pai, especialmente a Vovó. Lembraste claramente do calor daquele verão, mesmo agora, dezoito anos depois—como o quintal da Vovó parecia quente e úmido, um quintal com tantas árvores que o fio do telefone estava emaranhado nas folhas e ramos diferentes entrelaçavam-se uns nos outros e às vezes apareciam mangas nas árvores de caju e goiabas nas mangueiras. O tapete espesso de folhas em decomposição era um lamaçal debaixo dos teus pés descalços. À tarde, abelhas de barriga amarela zuniam à volta da tua cabeça e das cabeças do teu irmão Nonso e do teu primo Dozie, e ao fim da tarde a tua Vovó só deixava o teu irmão Nonso trepar às árvores para sacudir um ramo carregado de fruta, embora tu trepasses melhor do que ele. Choviam os frutos, abacates e cajus e goiabas, e tu e o teu primo Dozie enchiam baldes velhos com eles.
Foi no verão em que a Vovó ensinou Nonso a colher cocos. Era difícil trepar aos coqueiros, pois não tinham ramos e eram tão altos, e a Vovó deu a Nonso um pau comprido e mostrou-lhe como empurrar os frutos para baixo. Não te mostrou a ti, porque disse que as raparigas nunca colhiam cocos. A Vovó rachava os cocos contra uma pedra, com cuidado, para o leite aguado ficar na parte de baixo, uma taça com um rebordo irregular. Toda a gente provava o leite arrefecido pelo vento, mesmo as crianças do fundo da rua que vinham brincar, e a Vovó presidia ao ritual da prova para se assegurar de que Nonso era o primeiro.
Foi no verão em que perguntaste à Vovó porque é que Nonso provava primeiro, embora Dozie tivesse treze anos, um ano mais velho do que Nonso, e a Vovó disse que Nonso era o único filho do filho dela, o que manteria o apelido Nnabuisi, enquanto que Dozie era só um nwadiana, filho da filha dela. Foi no verão em que encontraste a pele de uma serpente no relvado, inteira e transparente como meias de vidro, e a Vovó disse que a serpente se chamava echi eteka, "Amanhã É Demasiado Longe". Uma mordida, disse ela, e está tudo acabado em dez minutos.
Não foi nesse verão que te apaixonaste pelo teu primo Dozie, porque isso tinha acontecido alguns verões antes, quando ele tinha dez anos e tu sete e ambos se enfiaram no espaço minúsculo por trás da garagem da Vovó e tentaram meter o que ambos chamavam a "banana" dele no que ambos chamavam o teu "tomate", mas nenhum dos dois tinha a certeza de qual era o buraco certo. Mas foi nesse verão que apanhaste piolhos e que tu e o teu primo Dozie enterravam as mãos na tua cabeleira espessa para encontrar os minúsculos insetos pretos e os esmagar entre as unhas e rir com o estalido das suas barrigas cheias de sangue a rebentarem; o verão em que o teu ódio pelo teu irmão Nonso cresceu tanto que sentias que te apertava as narinas, e em que o teu amor pelo teu primo Dozie inchou e te envolveu toda a pele.
Foi no verão em que viste uma mangueira fender-se em duas metades quase perfeitas durante uma trovoada, quando os relâmpagos traçavam linhas de fogo no céu. Foi no verão em que Nonso morreu.
* * *
A Vovó não lhe chamava verão. Ninguém o fazia na Nigéria. Era agosto, encaixado entre a estação das chuvas e a estação do harmatão. Podia chover a cântaros todo o dia, chuva prateada a molhar a varanda onde tu e Nonso e Dozie espantavam os mosquitos à palmada e comiam milho assado; ou o sol cegava de tão forte e tu flutuavas no reservatório de água que a Vovó tinha serrado a meio, uma piscina improvisada. O tempo estava ameno no dia em que Nonso morreu; uns chuviscos de manhã, um sol morno à tarde e, ao fim do dia, a morte de Nonso. A Vovó gritou-lhe — gritou ao seu corpo sem vida —dizendo i laputago m, que ele a tinha traído, perguntando-lhe quem manteria agora o apelido Nnabuisi, quem protegeria a linhagem da família.
Os vizinhos vieram lá a casa quando a ouviram. Foi a senhora da casa do outro lado da estrada — aquela cujo cão remexia no caixote do lixo da Vovó de manhã— que fez os teus lábios dormentes pronunciarem o número de telefone americano e que telefonou à tua mãe. Foi também essa vizinha que separou a tua mão da de Dozie, te fez sentar e te deu água. A vizinha tentou abraçar-te com força para não ouvires o que a Vovó dizia à tua mãe ao telefone, mas tu soltaste-te da vizinha e aproximaste-te do telefone. A Vovó e a tua mãe estavam concentradas no corpo de Nonso em vez de na sua morte. A tua mãe estava a insistir que o corpo de Nonso fosse enviado de avião para a América imediatamente e a Vovó estava a repetir as palavras da tua mãe e a abanar a cabeça. A loucura espreitava nos seus olhos.
Tu sabias que a Vovó nunca tinha gostado da tua mãe. (Tinhas ouvido a Vovó dizer isto alguns verões antes à sua amiga: "Aquela negra americana atou o meu filho e meteu-o ao bolso.") Mas ao ver a Vovó ao telefone, compreendeste que ela e a tua mãe estavam unidas. Tinhas a certeza de que a tua mãe tinha a mesma loucura vermelha nos olhos.
Quando falaste com a tua mãe, a voz dela ecoou na linha de uma maneira que nunca tinha acontecido em todos os anos em que tu e Nonso passaram o verão com a Vovó.
Estás bem? perguntava-te repetidamente. Estás bem? Parecia estar com medo, como se suspeitasse que tu estavas bem, apesar da morte de Nonso. Tu mexias no fio do telefone e pouco dizias. Ela disse que ia mandar recado ao teu pai, embora ele estivesse algures numa floresta a assistir a um festival de Arte Negra onde não havia telefones nem rádios. Finalmente, soltou um soluço áspero, um soluço como o latido de um cão, antes de te dizer que ia ficar tudo bem e que ia arranjar maneira de o corpo de Nonso ser enviado para a América. Fez-te pensar no riso dela, um riso ho-ho-ho que começava lá no fundo da barriga dela e não ficava mais moderado ao chegar cá acima e não se adequava de todo ao seu corpo delgado. Quando ela ia ao quarto de Nonso dar-lhes as boas-noites, saía sempre a rir aquele riso. Na maior parte das vezes, tu tapavas as orelhas com as palmas das mãos para não ouvir, e mantinhas as palmas das mãos nas orelhas mesmo quando ela entrava no teu quarto para te dizer Boa-noite, querida, dorme bem. Nunca saía do teu quarto com aquele riso.
Depois do telefonema, a Vovó ficou deitada de costas no chão, sem pestanejar, a rolar de um lado para o outro como se estivesse a brincar a um jogo pateta qualquer.
Disse que era errado mandar o corpo de Nonso para a América, que o seu espírito pairaria sempre aqui. Ele pertencia a esta terra dura que não conseguira absorver o choque da sua queda. Ele pertencia às árvores daqui, uma das quais o tinha largado. Ficaste sentada a olhar para ela e primeiro desejaste que ela se levantasse e te tomasse nos braços e depois desejaste que não o fizesse.
Passaram dezoito anos e as árvores no quintal da Vovó parecem não ter mudado; os seus ramos ainda se estendem e se entrelaçam, ainda lançam sombras sobre o quintal.
Mas tudo o resto parece mais pequeno: a casa, o jardim nas traseiras, o reservatório da cor do cobre por causa da ferrugem. Até a sepultura da Vovó no quintal das traseiras parece minúscula, e imaginas o seu corpo dobrado para caber no caixão pequeno. A sepultura está coberta com uma camada fina de cimento; a terra à sua volta foi cavada recentemente e tu pões-te ao lado dela e imagina-la daqui a dez anos, por tratar, com ervas daninhas emaranhadas a cobrirem o cimento, a sufocarem a sepultura.
Dozie está a observar-te. No aeroporto, abraçou-te de forma reservada, desejou-te as boas-vindas e disse que era uma surpresa teres voltado e tu fitaste o seu rosto durante muito tempo no átrio movimentado do aeroporto até ele desviar os olhos, aqueles olhos castanhos e tristes como os do caniche da tua amiga. Não precisavas daquele olhar para saber que o segredo de como Nonso morreu está seguro com Dozie, sempre esteve seguro com Dozie. Enquanto ele te levava de carro à casa da Vovó, perguntou-te como estava a tua mãe e tu disseste-lhe que a tua mãe vivia agora na Califórnia; não mencionaste que vivia numa comuna entre pessoas com a cabeça rapada e piercings no peito, ou que quando ela te telefonava desligavas sempre enquanto ela ainda estava a falar.
Diriges-te para o abacateiro. Dozie continua a observar-te e tu olhas para ele e tentas recordar o amor que te entupia tão completamente naquele verão dos teus dez anos, que te fez segurar com força a mão de Dozie naquela tarde depois de Nonso morrer, quando a mãe de Dozie, a tua Titi Mgbechibelije, veio buscá-lo. Há um sofrimento delicado nas linhas da sua testa, uma melancolia na maneira como fica parado, com os braços caídos. Perguntaste subitamente se também ele tinha o mesmo anseio, como tu. Nunca soubeste o que estava por detrás do seu sorriso calmo, nas alturas em que ele se sentava tão imóvel que as moscas da fruta vinham pousar-lhe nos braços, o que estava por detrás dos desenhos que ele te dava e dos pássaros que ele tinha em gaiolas de cartão, afagando-os até morrerem. Perguntaste o que é que ele sentiria, se é que sentia alguma coisa, por ser o neto errado, o que não tinha o nome Nnabuisi.
Estendes a mão para tocar no tronco do abacateiro no momento em que Dozie começa a dizer alguma coisa, sobressaltando-te porque pensas que ele vai falar da morte de Nonso, mas ele diz-te que nunca imaginou que regressarias para te despedires da Vovó, porque ele sabia o quanto a odiavas. Essa palavra—"odiar"— fica suspensa no ar entre ambos como uma acusação. Queres dizer-lhe que quando ele te telefonou para Nova Iorque, a primeira vez que ouvias a sua voz em dezoito anos, para te dizer que a Vovó tinha morrido — Pensei que quisesses saber, foram as suas palavras — encostaste-te à secretária do teu escritório, as tuas pernas ficaram bambas, uma vida inteira de silêncio a desmoronar-se, e não foi na Vovó que pensaste, foi em Nonso, e foi nele, Dozie, e foi no abacateiro e foi naquele verão úmido no reino amoral da tua infância e foi em todas as coisas em que não te tinhas permitido pensar, que tinhas alisado até não passarem de folha fina e guardado.
Mas não dizes nada e pressionas as palmas das tuas mãos com força contra o tronco rugoso da árvore. A dor acalma-te. Lembraste de comer os abacates; gostavas de os comer com sal e Nonso não gostava de os comer com sal e a Vovó ria sempre e dizia que tu não sabias o que era bom quando dizias que o abacate sem sal te provocava enjoos.
No funeral de Nonso num cemitério frio da Virgínia, com pedras lapidares que se projetavam de forma obscena, a tua mãe estava de preto desmaiado da cabeça aos pés, até com um véu, o que fazia a sua pele cor de canela resplandecer. O teu pai manteve-se afastado de ambas, no seu dashiki habitual, com conchas da cor do leite enroladas à volta do pescoço. Dava a ideia de não ser da família, de ser um dos conhecidos que fungavam alto, e mais tarde perguntavam à tua mãe num murmúrio exatamente como é que Nonso tinha morrido, exatamente como é que tinha caído de uma das árvores a que trepava desde pequeno.
A tua mãe não lhes disse nada, a todas aquelas pessoas que lhe faziam perguntas. Também não te disse nada a ti, sobre Nonso, nem quando limpou o quarto dele e arrumou as suas coisas. Não te perguntou se querias ficar com alguma coisa e tu sentiste-te aliviada. Não querias ficar com nenhum dos livros dele com a sua letra que a tua mãe dizia que era mais bonita do que frases escritas à máquina. Não querias as suas fotografias de pombos no parque, que o teu pai dizia que eram muito promissoras para uma criança. Não querias as suas pinturas, que eram meras cópias das do teu pai, mas em cores diferentes. Ou as suas roupas. Ou a sua coleção de selos.
A tua mãe falou de Nonso, por fim, três meses depois do funeral, quando te informou do divórcio. Disse que o divórcio não tinha a ver com Nonso, que ela e o teu pai há muito tempo que vinham a afastar-se. (O teu pai estava em Zanzibar na altura; tinha partido logo a seguir ao funeral de Nonso.) Depois, a tua mãe perguntou: Como morreu o Nonso?
Ainda te perguntas como é que aquelas palavras te saíram da boca. Continuas a não reconhecer a criança de olhos límpidos que tu eras. Talvez fosse por causa da maneira como ela disse que o divórcio não tinha a ver com Nonso — como se Nonso fosse o único capaz de ser uma razão, como se tu não estivesses sequer em jogo. Ou talvez fosse simplesmente o facto de sentires o desejo ardente que ainda sentes por vezes, a necessidade de alisar rugas, de espalmar coisas que achas demasiado irregulares.
Disseste à tua mãe, num tom adequadamente relutante, que a Vovó tinha pedido a Nonso para trepar ao ramo mais alto do abacateiro para lhe mostrar que era um homem a sério. Depois pregou-lhe um susto — era uma brincadeira, garantiste à tua mãe — dizendo-lhe que havia uma serpente, a echi eteka, no ramo junto a ele. Disse-lhe que não se mexesse. É claro que ele se mexeu e escorregou do ramo e quando caiu ao chão o som foi como muitos frutos a caírem ao mesmo tempo. Um baque surdo, final.
A Vovó ficou parada a olhar fixamente para ele e depois começou a berrar-lhe, a dizer que ele era o único filho, que tinha traído a linhagem ao morrer, que os antepassados ficariam desagradados. Ele estava a respirar, disseste à tua mãe. Estava a respirar quando caiu, mas a Vovó ficou só ali a berrar ao seu corpo partido até ele morrer.
A tua mãe começou aos gritos. E tu perguntaste-te se as pessoas gritavam daquela maneira louca quando tinham acabado de optar por rejeitar a verdade. Ela sabia perfeitamente que Nonso tinha batido com a cabeça numa pedra e morrera instantaneamente — tinha visto o seu corpo, a cabeça rachada. Mas optou por acreditar que Nonso ainda estava vivo depois de cair. Gritou, uivou e amaldiçoou o dia em que tinha posto os olhos no teu pai na primeira exposição das pinturas dele. Depois telefonou-lhe, ouviste-a berrar-lhe ao telefone: A tua mãe é responsável! Ela fê-lo entrar em pânico e cair! Ela podia ter feito alguma coisa depois, mas em vez disso ficou ali como a africana fetichista e estúpida que é e deixou-o morrer!
O teu pai falou contigo mais tarde, e disse que compreendia que era muito difícil para ti, mas que tinhas de ter cuidado com o que dizias, para não causares mais dor. E tu pensaste nas palavras dele — e perguntaste-te se ele saberia que estavas a mentir.
Aquele verão, há dezoito anos, foi o verão da tua primeira revelação. O verão em que compreendeste que alguma coisa tinha de acontecer a Nonso para tu poderes sobreviver.
Mesmo aos dez anos, sabias que algumas pessoas podiam ocupar demasiado espaço simplesmente por existirem, que, por existirem, algumas pessoas podem sufocar outras.
A ideia de assustar Nonso com a echi eteka foi só tua. Mas explicaste-a a Dozie, explicaste que ambos precisavam que Nonso se magoasse — talvez que ficasse deficiente, que torcesse as pernas. Querias estragar a perfeição do seu corpo flexível, torná-lo menos adorável, menos capaz de fazer tudo o que fazia. Menos capaz de ocupar o teu espaço. Dozie não disse nada e limitou-se a fazer um desenho de ti com os teus olhos em forma de estrela.
A Vovó estava lá para dentro a cozinhar e Dozie estava de pé em silêncio junto a ti, com os vossos ombros a tocarem-se, quando sugeriste a Nonso que trepasse até ao cimo do abacateiro. Era fácil levá-lo a fazê-lo; só tinhas de lhe lembrar que trepavas às árvores melhor do que ele. E realmente tu trepavas melhor às árvores, eras capaz de escalar uma árvore, qualquer árvore, em segundos — eras melhor nas coisas que não precisavam de ser ensinadas, nas coisas que a Vovó não podia ensinar-te.
Disseste-lhe que fosse primeiro, para ver se ele conseguia chegar ao ramo mais alto do abacateiro antes de tu o seguires. Os ramos eram fracos e Nonso era mais pesado do que tu. Pesado daquela comida toda que a Vovó o fazia comer. Come um bocadinho mais, dizia ela muitas vezes. Para quem pensas que fiz a comida? Como se tu não estivesses lá. Por vezes, ela dava-te uma palmadinha nas costas e dizia em igbo, É bom que aprendas, nne, é assim que vais tomar conta do teu marido um dia.
Nonso trepou à árvore. Cada vez mais alto. Tu esperaste até ele estar quase no cimo, até as suas pernas hesitarem antes de treparem, a medo, um pouco mais alto.
Esperaste por aquele breve instante em que ele estava entre movimentos. Um instante aberto, um instante em que viste o azul de tudo, da própria vida — o azul puro de uma das pinturas do teu pai, da oportunidade, de um céu lavado por uma chuvada matinal. E depois gritaste: — Uma serpente! É a echi eteka! Uma serpente! Não sabias bem se havias de dizer que a serpente estava num ramo perto dele ou a rastejar pelo tronco. Mas não importava, porque, naqueles breves segundos, Nonso olhou para baixo, para ti, e soltou-se, o pé escorregou-lhe, os braços soltaram-se. Ou talvez fosse a árvore que rejeitasse Nonso.
Não te recordas agora de quanto tempo ficaste a olhar para Nonso antes de entrares em casa para chamar a Vovó, com Dozie durante todo o tempo em silêncio ao teu lado.
A palavra de Dozie —"odiar" — flutua-te agora na cabeça. Odiar. Odiar. Odiar. A palavra dificulta-te a respiração, como foi difícil respirares enquanto esperavas, naqueles meses depois de Nonso morrer, que a tua mãe reparasse que tinhas uma voz pura como a água e pernas como elásticos, que a tua mãe acabasse as visitas de boas-noites ao teu quarto com aquele riso profundo, ho-ho-ho. Em vez disso, abraçava-te delicadamente quando te desejava boa-noite, falando sempre em murmúrios, e tu começaste a evitar os seus beijos, fazendo de conta que tinhas de tossir ou de espirrar. Ano após ano, enquanto ela te levava de estado em estado, acendendo lâmpadas vermelhas no seu quarto, proibindo qualquer menção à Nigéria ou à Vovó, recusando-se a deixar-te ver o teu pai, nunca mais riu aquele riso.
Dozie fala agora, diz-te que começou a sonhar com Nonso há uns anos, sonhos em que Nonso é mais velho e mais alto do que ele, e tu ouves fruta a cair de uma árvore perto e perguntas-lhe, sem te voltares, O que é que tu querias, naquele verão, o que é que tu querias?
Não sabes quando Dozie avança, quando se vem pôr por trás de ti, tão perto que sentes um cheiro cítrico nele, talvez tenha descascado uma laranja e não tenha lavado as mãos depois. Ele vira-te para si e olha para ti e tu olhas para ele e há linhas finas na sua testa e uma nova dureza nos seus olhos. Ele diz-te que não lhe passou pela cabeça querer nada, porque o que importava era o que tu querias. Há um longo silêncio enquanto observas a coluna de formigas pretas a dirigir-se para o tronco, cada formiga transporta um pedacinho de cotão branco, criando um padrão a preto e branco. Ele pergunta-te se sonhavas como ele e tu dizes que não, os teus olhos evitam os dele, e ele desvia-se de ti. Queres falar-lhe da dor que sentiste no peito e do vazio nos ouvidos e do ar agitado depois do seu telefonema, das portas abertas de par em par e das coisas espalmadas que voltaram a ganhar a sua forma, mas ele está a afastar-se. E tu estás a chorar, sozinha debaixo do abacateiro.
(A coisa à volta do teu pescoço; traduzido do inglês por Ana Saldanha)
(Ilustração: Ayogu Kingsley)
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