quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

QUANDO TU MORRESTE, de Miguel Soares Tavares




Quanto tu morreste, eu estava fora. Estava no deserto, vê a coincidência. Parece-me que consigo sempre estar for a quando morrem aqueles cuja morte me pode magoar. Anos mais tarde, também estava no deserto, outra vez, quando o meu pai morreu. Se pensas que faço de propósito, é possível que tenhas razão, pode ser que a vida tenha razões que a razão não entende.Ninguém me telefonou a dizer que tinhas morrido: talvez tenham telefonado, mas devem ter dito que eu estava fora. E não há telefones no deserto, não há nada no deserto: tu sabes. Quando voltei, ninguém me disse coisa alguma, devem ter pensado que alguém me teria dito e que eu sabia. É incrível: tu morres, continuas morta -dias, semanas, meses- e eu não sei nada! Nem sequer sabia que podias morrer assim, sem aviso, sem salvação.

E um dia, no meio de uma conversa, alguém me disse, com toda a naturalidade:

- Deve ter-te feito impressão a morte da Cláudia…

- O quê?

Pareceu-me que, subitamente, alguém estava a falar comigo, mas de muito longe, como quando estamos mergulhados dentro de água e ouvimos uma voz que nos chama.

- A Cláudia morreu…não sabias?“ 

A Cláudia morreu”

“A Cláudia morreu”.

“Não sabias?”

Levantei-me da mesa onde estava sentado e fui até à janela. Era um fim de tarde de Março, em Lisboa. A luz- essa luz incrível dos finais de tarde da Primavera, em Lisboa- atravessava ainda o rio e pousava, dourada, sobre o convés de um navio que deslizava em silêncio no Tejo. Mas do lado de lá, em Almada, as luzes da noite já tinham acendido e o seu brilho também chegava ao rio.Abri a janela porque precisava de ar, tinha medo de estar a sufocar. E queria gritar, queria gritar até onde me ouvissem, até ao lado de lá do Tejo, até Tamanrasset, até à estrela onde tu estavas- em paz, finalmente. Em paz, sim, porque é isso e só isso a morte. Mas não gritei: enrolei o meu grito e falei-te baixinho, como se fosse noite na nossa tenda e pudessem ouvir-nos lá fora.“Vês, Cláudia: não é verdade. Nada está morto, há luzes do lado de lá do rio. Há luzes nas casas e gente dentro das casas. Voltaram do trabalho, estão a brincar com os filhos, estão a fazer o jantar, a ver televisão, há um velho que faz palavras cruzadas sentado num sofá e a mulher que ouve o terço na Rádio Renascença. Como é que podes estar morta? Como é que posso acreditar que estás morta? E, se essa absurda notícia, se esse assassínio é verdade, como é que posso fazer para que não estejas morta?

À hora a que me disseram que tinas morrido, ainda não havia estrelas. Ainda não havia noite para te chorar- e é à noite que eu choro. Não fui ao enterro. Não me apoiei nos outros em frente ao teu caixão para te chorar. Não te chorei. Não fui a tempo- e há um tempo para isso. Não te vi a subir a uma estrela, não te vi a rir lá de cima- porque, mais uma vez, eu estava atrasado.

Cheguei a casa e fui procurar as tuas fotografias, as fotografias da nossa viagem. Guardei-as dentro de um envelope grande no qual escrevi “ Sahara, 1987” e meti-as dentro de uma gaveta, num armário. Desde então, mudei algumas vezes de casa, mudei até de vida outras vezes, e as fotografias continuaram sempre dentro desse envelope, na gaveta, no mesmo armário. Vinte anos. Só ontem é que voltei a vê-las. Só ontem é que percebi que tinhas morrido.



(No teu deserto)




(Ilustração: Van Gogh - old man in sorrow)

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