sábado, 5 de setembro de 2009

TRÍPTICO SOB A CHUVA, de Garcia de Paiva







Um: Mel e Mel e Mel

A moça de uma perna verde e outra azul entrou em sua vida de repente para ficar. O carro enguiçara outra vez, na rampa da avenida asfaltada, e no primeiro instante ele se sentira um criminoso, acossado pelas buzinas impacientes. Podia ser alguma entrada de ar no carburador, os motoristas não tomavam conhecimento e buzinavam, querendo passagem. Caía uma chuva fina, ele voltava para casa no fim do dia. O carro ia acabar pegando, mas podia demorar. O fiscal veio, alguns pedestres deram ajuda, empurraram para uma rua transversal.

Tinha sido um encontro casual, ele passava diariamente pela avenida e nunca entrara nessa rua. Também nunca afora infiel a Helena desde o casamento, mas uma moça assim não aparece todos os dias na vida a gente. Dentro do carro encostado ao meio-fio, ele deixava o tempo correr, não queria experimentar logo a ignição. Estava escurecendo e as vitrinas derramavam intensa luz amarela ao longo do passeio. A moça veio andando sob a marquise: vestia calça Lee, blusa fofa sem mangas, os braços eram alvos. A chuvinha peneirava, havia os borrões de azul da propaganda da Coca-Cola no fim do quarteirão, e esse azul repelia o púrpura do letreiro da Shell, que dominava a outra esquina. Ela surgiu numa névoa dourada, e passou, a calça justa, os braços descobertos, os cabelos nos ombros. Foi um impacto, a moça percebeu. Olhava-a pelo retrovisor quando notou que diminuía o passo: havia mais passeio lá atrás, e mais vitrina e luz amarela – parou hesitante – veio voltando.

Não queria tentar a ignição agora, receptivo à aventura. Seu escritório de representação de tintas estava proporcionando crescentes lucres e após dez anos de formatura ele começava a distinguir-se como arquiteto, as encomendas chegavam aos pares, tinha feito uma casa laranja – depois uma violeta – outra azulão.

Saiu do carro, simulou ocupar-se com o limpador do pára-brisa. Quando a moça passou ao lado ele sentiu que a névoa os envolvia numa solidão afortunada – e antigas emoções irromperam juvenis – um coração humano tem seus limites de resistência – ela era o retrato de Cláudia Cardinale naquele filme. O sorriso, a alvura do braço, quase o ombro, ela se deteve logo adiante, os cabelos incendiados sob o letreiro da Shell. Estendeu para o meio-fio a sandália, o pé, nu, exatamente azul – na chuva. Depois a mão em concha aparou uns pingos vermelhos, mais uns respingos azuis.

O carro pegou fácil, deslizou junto ao passeio.

- A chuva não vai parar, posso deixá-la onde quiser.

Insistiu, cavalheiresco.

Ela hesitou, pudica.

Ele abriu a porta.

Ela entrou.

O pé estendido para o meio-fio mostrara-se azul, ele já conhecia essa singularidade quando ela sentou-se ao seu lado, mas percebeu imediatamente o outro – verde – e sentiu-se desfalecer, pois as cores análogas, por estranho que pareça, raramente se encontram na mesma criatura. Os cabelos soltos, os olhos de um tom aparentado ao mel, e os seios, ele podia adivinhar, róseos.

- Como se chama?

O carro deslizava, incerto em seu rumo, enquanto ele imaginava a nova casa que haveria de projetar, harmoniosa nos seus contrastes e dominantemente mel e mel e mel, com o branco dos degraus, o adobe, a cerâmica. Representava e vendia cores, possuía as tinturas, os pigmentos, as fórmulas, e seu carro era roxo, não esse comum, horrível, mas aquela cintilação que provoca um oh! nas ruas. Havia os concorrentes, e sua propaganda era agressiva, comportava prejuízos, oferecia opções. Mude a cor do seu carro da noite para o dia, faça você mesmo o preço e pague quando e como quiser, e se puder. Não mude vida, mude de cor, e seja feliz em roxo, em preto ou em poca – a cor que é todas as cores.

Ela não fugiu com a mão quando ele quis segurá-la, nem esquivou-se ao beijo. Não dizia nada – apenas, de alguma forma misteriosa, alcançou comunicar-se, chamava-se Lúcia. Desconhecia o amor, nunca se dera em afeto a ninguém, homem ou mulher, e acedia afinal em participar de sua vida, para tornar-se objeto e complemento. Ele atraiu-a a si, sua mão começou a descobri-la, o ombro não fugia, antes aconchegava-se.

- Você tem um pé azul?

Ela se aconchegou mais.

- E o outro é verde?

Não precisava dizer, as coisas são para serem vistas, sentidas, os pés, a noite azul e púrpura, o campo, as colinas. O carro buscava algum desvio, um sítio isolado, corria, numa faixa de asfalto madrepérola. A chuva caía, dois holofotes antineblina encheram a noite de uma rascante fosforescência – nos cosmos, no âmago de alguma incrível nebulosa devia haver um recanto assim, a beleza em estado puro e lácteo, alucinógeno, alucinante, ondas vibráteis interpenetrando-se vertiginosas.


Dois: Uma Joia para Marlúcia


O posto de gasolina tinha dois empregados, o rapaz lá dentro – aquele perfume. Chovia. As luzes dos faróis em fila cintilavam, ofuscantes, cresceu um clamor de buzinas. Talvez fosse um mau contato no relé, o motor podia pegar de repente, como da vez anterior. Do posto veio um homem de macacão, chamou o companheiro, conseguiu auxílio, empurraram o carro para a área cimentada.

- Que perfume é esse aqui?!

Ainda dentro do carro, ele se voltou para Lúcia, fitou-a. Não vai demorar. Conhecera-a três horas antes, em seguida a outro enguiço, naquela avenida: o fiscal de trânsito e alguns populares empurraram o carro para uma rua transversal, ela estava no passeio, sob a marquise. Reparara logo em seus braços – usava blusa sem mangas, e a calça Lee parecia dificultar seus movimentos. Chamava-se Lúcia, hesitara ao entrar no carro, ele levara-a consigo, o amor tinha sido satisfatório por causa das circunstâncias, mas ela ia adquirindo império sobre os seus sentimentos.

- Quem sabe a gasolina acabou?

- Não, tem meio tanque ainda.

Voltou-se novamente para Lúcia, acariciou-lhe o braço. Não demora, você vai ver. Quando levantou o capô, sob a chuva, ela saiu também do carro, correu, subiu os três degraus da porta de vidro, entrou no escritório do posto. Ele sorriu. A submissão dela , a docilidade com que se entregara, lisonjeava seu amor-próprio. A vida futura se descortinava.

O empregado do posto debruçara-se sobre o motor e seu companheiro, distanciado, encarregava-se da bomba, atendia um e outro carro.

- Há um perfume aqui!...

- A chuva lavou o piso e as paredes, quase não se percebe.

- É agradável.

- Os fregueses gostam.

Tinha sido a primeira infidelidade em dez anos de casado, sentia-se mais homem, completo. O escritório de representação vinha dando bom dinheiro, e além disso começava a adquirir renome com seus trabalhos de arquitetura, estava construindo, vendia projetos.

Subiu os três degraus, empurrou a porta, entrou na sala envidraçada. Sentada num divã, envolta em perfume, Lúcia olhava para o teto. Havia um rapaz sentado atrás de um birô, e o isolamento dos dois, ali, trouxe-lhe algum desconforto.

- Você está bem, não precisa de nada?

Lúcia nunca falava, limitava-se a sacudir a cabeça negativamente. Fez um afago em seu rosto e teve a impressão de que ela se retraía. Voltou para o carro. O empregado espargia um líquido sobre o motor.

- O que é isso?

- Perfume.

- Para quê? Eu quero é ver o carro funcionando.

Não seria melhor apanhar um táxi, ir embora com Lúcia? Entrou no carro, calcou a tecla do rádio, varreu várias estações. Esse perfume acaba enjoando. Retornou à sala envidraçada – o rapaz tinha vindo para perto de Lúcia – estava de short – havia falado qualquer coisa.

- Que foi?

O rapaz contornou o birô, sentou-se.

- Apanhei uma revista para D. Marlúcia lá dentro.

- D. Marlúcia?

O rapaz não entendeu o sentido da indagação, indicou, sorrindo, a moça.

- Ah, sim... Lúcia. Você está bem, querida?

Ela parecia irritada, como se suas atenções a aborrecessem – mas talvez não fosse bem isso – claro que não – estava se preocupando sem motivo – não queria perdê-la.

Saiu dali a contragosto, o chão parecia faltar-lhe sob os pés. Havia se equivocado, ela se chamava Marlúcia, o rapaz achara jeito de saber com muita rapidez – e chamara-a pelo nome.

O empregado tinha ido abrigar-se sob uma cobertura e limpava o giguilê com o jato de ar comprimido,uma sombrinha dependurada no braço.

- Desculpe, estava dentro do carro, chuva demorada acaba molhando.

A sombrinha de Helena.

O empregado retornou ao carro. Seguiu-o, decorrido algum tempo, alongando o trajeto sob a chuva para ver a sala, de longe. O rapaz falava a Lúcia, a Marlúcia. Ela segurava a revista, tinha um ar pudico.

Entrou no carro, furioso, tocou a buzina. Queria ir embora com a moça, procurar uma butique, dessas que funcionam noite e dia, comprar uma jóia para ela, um anel com pedra bonita, algum topázio. Não convinha insistir com a buzina, Marlúcia não haveria de atender, nem conhecia o som.

- Estou colocando o giguilê.

Lá dentro o rapaz exibia as pernas de atleta. Conversava, oferecia revistas. Já sabia o nome dela, decerto ia descobrir também o endereço – a calça Lee não distingue socialmente, onde será que ela mora?

Marlúcia surgiu à porta. Ele silenciou o rádio e acenou com a mão. Ela não correspondeu. Insistiu com novo aceno, ela desapareceu lá dentro. Sentiu-se ridículo.

- Já terminou?

- Estou acabando. Pus perfume.

- Que mania é essa?

- Posso pôr dentro do carro? É uma oferta da casa.

Não deu resposta. A chuva era fraca, mas ia molhando, voltou à sala. Recostado ao birô, o rapaz manuseava papéis, o short curto, as pernas. Marlúcia bebia numa xicrinha.

- Que é isso?

- Café, disse o rapaz – aceita?

- Não! – não gosto! Conteve-se, amenizou a voz, era uma cortesia. – Isso vai tirar o seu sono, querida!

Ela torceu o nariz.

Vou comprar uma pulseira de ouro pra você, viu, meu, pensou, junto ao ouvido dela. Seria difícil encontrar uma butique aberta agora – e no entanto ele queria dar-lhe qualquer coisa, não importava o preço. O rapaz sabia que os dois não eram casados – ela não tinha aliança – e chamara-a pelo nome – julgava-se com direito a meter a cara. Transitava pela sala, fingia ocupar-se com uma coisa e outra.

Tocou de leve os cabelos dela, inibido. Não queria sair dali, o rapaz tinha o campo livre, podia fazer o quem entendesse. Encostou-se à parede envidraçada. O empregado veio bater com o nó dos dedos no vidro.

Foi experimentar a ignição, o motor funcionou, normal.

Deu dinheiro ao empregado, uma gorjeta exagerada, pediu que chamasse a moça. Marlúcia veio, com sombrinha, entrou no carro, sentou-se ao seu lado. O rapaz apareceu lá dentro, encostou-se ao vidro, petulante. Não se pode impedir ninguém de olhar para uma moça, mesmo acompanhada. Teve que fazer uma volta com o carro, passou rente aos degraus, o rapaz olhava, insistente, e Marlúcia não lhe dava atenção, apenas sorria, como sempre.

Atolou o pé no acelerador, o posto ficou para trás, o perfume veio dentro do carro.


Três: Apito, Violão, um Bandolim


Não via razão para um homem ficar em pelo na chuva e se preocupou por causa de Marluce. O carro enguiçara outra vez, tentara fazê-lo pega, com a luz interna acesa, e de repente assustou-se com o berro da buzina de um caminhão. Podia ser a umidade no distribuidor, fez sinal pedindo paciência – o motorista, se quisesse, passaria ao lado. O caminhão saiu da rodovia, avançou pelo piso de areia e brita, parou, e quatro, cinco homens deixaram o abrigo de lona, desceram da carroçaria, vieram empurrar o carro para o acostamento.

Não vai demorar, logo sairemos daqui, disse ele à moça sentada ao seu lado. Uma hora antes o carro havia sofrido outro enguiço defronte de um posto de gasolina, e depois, em vez de retornarem ao centro, distanciaram-se ainda mais, para novas intimidades. Quando a encontrara no começo da noite, ela havia se abrigado da chuva sob a marquise de uma loja. Vestia calça Lee e blusa sem mangas – ele ainda estava preso ao fascínio dos seus braços. Agora vinham voltando, o carro enguiçara novamente.

- Que há como o carro?

Era um dos homens do caminhão.

- Deve ser algum problema no carburador.

Fazia frio, a chuva caía, aquele era um trecho deserto, sem casas. Lá em cima da carroçaria, sob a lona, alguém batina num violão, havia um apito, um bandolim, cantavam e riam.

Abriu a porta do carro e saiu, levantou o capô. Sem se importar com a chuva, um dos homens do caminhão inclinou-se para o motor, no escuro, examinando os fios, as conexões.

Marluce bateu a outra porta, foi caminhando no asfalto, a sombrinha aberta.

- Onde vai nesse frio?

Ela não respondeu, como era do seu feitio, afastou-se, e foi nesse momento que o homem nu saltou da boleia do caminhão e acercou-se com o foco da lanterna, bem humorado. Não posso ver defunto sem chorar, disse, inclinando-se sob o capô, a barriga saliente, as maminhas caídas no peito, o cabelo crescido branco no rosto, as nádegas.

- Minha senhora está comigo, saiu com a sombrinha e volta já.

- Não se preocupe, disse o homem nu, vocês não vão demorar aqui, eu dou logo um jeito nesse motor. Não posso ver defunto sem chorar. Zé! Traz a pinga de lá.

O outro trouxe a garrafa e o homem nu bebeu um gole, já com a tampa do distribuidor na mão, examinando o platinado.

Na luz dos faróis, a chuva.

- Aqui está a chave de fenda, o problema é com giguilê, é o terceiro enguiço que eu tenho.

- Então deve ser gasolina suja, convém mandar lavar o tanque amanhã. Aliás, hoje, né? quantas horas são?

Protegendo a cabeça com as mãos, avançou uns passos no asfalto, não avistou Marluce. Era sua primeira infidelidade conjugal, uma beleza de moça, não podia imaginar o futuro sem ela. No enguiço anterior haviam-se demorado no posto de gasolina, um rapaz de short oferecera café e revistas, rodeara, fizera agrados. Ainda agora, lembrando-se daquilo, sentia crescer a irritação. Comemorara com bolo e velas há dois meses os dez anos de casado, era sua primeira escapulida, mas rechaçava qualquer reclamo da consciência, assumia os riscos e responsabilidades. O escritório de representação estava dando bom dinheiro, a arquitetura também, ele recebia como um direito as coisas boas que a vida lhe vinha proporcionando. Os parentes, os amigos, tinham inveja dele por causa do casal de gêmeos, lindos, e também por Helena, um amor de esposa, agora grávida de cinco meses e barriguda. Ia chegar em casa fora de hora e não haveria problemas, eram os enguiços do carro.

Os homens faziam uma folia lá em cima do caminhão, com o apito e o bandolim, a cachaça, o violão, quando Marluce reapareceu, a sombrinha aberta, o ar de donzela. Ele já não se importava com o homem nu, que continuava ali, sob a chuva, e fez sinal a Marluce, chamando-a para dentro do carro, mas ela foi agachar-se sob a carroçaria do caminhão – atraída pela cantoria.

Buzinou e o homem nu achou que era com ele, sorriu amistoso, deu a entender que estava terminando com o distribuidor ou com giguilê.

Resmungou um palavrão, não pedira par de gêmeos a ninguém, tampouco um amor de esposa, não tinha que agradecer, dar graças por nada. Estava disposto a arrancar seu quinhão de vida, o naco melhor, e mais alguma coisa, o que pudesse e viesse.

A garrafa passava de mão em mão, o apito e o bandolim desceram da carroçaria, o preto também, e o louro, quatro, cinco homens pulavam, dançavam à frente de Marluce. A chuva engrossara, ele abriu a porta do carro, enfrentou o aguaceiro, foi lá pegar Marluce pela mão, ela escapou com a sombrinha, o ar pudico – os homens saracoteando em torno.

O homem nu gritou escorrendo água, já tinha terminado. Foi ligar ignição, a chuva no rosto, aparava com a língua. O motor pegou. Acendeu os faróis, buzinou, fez o limpador do pára-brisa funcionar, e na passagem da paleta, no leque batido de chuva, viu que um dos homens, o preto, tinha agarrado Marluce num abraço e beijava-a com movimentos libidinosos.

O motorista ligou o motor do caminhão, o homem nu subiu para a boleia com sua lanterna, a buzina-corneta soou estridente, o bandolim e o apito galgaram a carroçaria, e também o preto e o louro.

No vento e na chuva ele tinha chegado lá, quis pegar Marluce pelo braço, ela esquivou-se ainda e de repente largou a sombrinha, ergueu as mãos para as mãos que o preto lhe estendia.

Perdeu a noção do que estava acontecendo, gritou chamando a moça. No alto da carroçaria, sob a lona, Marluce rodopiava de um lado para outro, miolo de pão atirado a peixes famintos – o caminhão afastava-se, veloz.

A chuva caía despejada, voltou correndo para o carro, acionou a ignição, o motor não pegou, era o giguilê, tentou outra vez, pôs-se a bombear furiosamente o pedal do acelerador enquanto no vidro do pára-brisa a noite escurecia.


(Os Agricultores Arrancam Paralelepípedos)




(Ilustração: Linnea Strid)





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