domingo, 24 de dezembro de 2023
O FILÓSOFO E O POETA, de Jean Lauand
O filósofo - diz S. Tomás comentando Aristóteles - assemelha-se ao poeta; o filosofar e o ato poético têm algo em comum.
Para bem entender esta afirmação - clássica no pensamento ocidental - e que situará o filosofar mais próximo da poesia do que das ciências naturais ou exatas, começaremos por - seguindo de perto um ensaio em que Pieper trata do filosofar(1) - descrever brevemente o conceito clássico de filosofar para, em seguida, compará-lo com algumas poesias de nossa música popular.
De início, pois, umas breves considerações sobre o filosofar.
Não se pense que indagando sobre o filosofar (seu princípio, seu fim, suas condições) estejamos lidando com questão menor ou secundária. Pelo contrário, “Nossa pergunta, `o que é filosofar?´, pertence ao campo da Antropologia Filosófica (...) nada se pode dizer sobre a essência da Filosofia e do filosofar sem, ao mesmo tempo, fazer uma afirmação sobre a essência do homem”(2).
Pieper, seguindo a sabedoria dos antigos e com os olhos voltados para a problemática atual, começa por confrontar o filosofar com o mundo do trabalho.
O mundo do trabalho é “o mundo do dia de trabalho, o mundo da utilidade da sujeição a fins imediatos, dos resultados, do exercício de uma função; é o mundo das necessidades e da produtividade, o mundo da fome e do modo de saciá-la”(3).
E filosofar é algo que transcende esse mundo do trabalho. Para entender essa afirmação dos antigos, Pieper sugere um interessante “experimento” filosófico: chegar ao coração do mundo do trabalho – um banco por exemplo, às 13h, em dia de pagamento – e, ao chegar sua vez na fila, formular ao inquieto caixa a questão filosófica: “Mas, por que, afinal existem coisas, e não só o nada?” “Eis a antiquíssima questão filosófica que Heidegger designou como a questão fundamental de toda metafísica! Será necessário apontar ainda o que de incomensurável tem tal pergunta frente ao mundo diário das utilidades e das oportunidades? Se tal pergunta ressoasse inesperadamente em meio a homens ocupados na produção de bens úteis, será que seu autor não seria tido por louco?”(4).
Não se pense que a afirmação de que o ato de filosofar transcende o mundo do trabalho equivalha a afirmar que aquele seja etéreo, alheio à realidade quotidiana. Platão, após narrar o episódio de Tales caindo no poço, explica o sentido para o que aponta a indignação filosófica (Teeteto, 175): o filósofo quer saber não se um rei que tem muito ouro é feliz ou não, mas o que é em si o poder, a felicidade e a miséria. Em si e em suas última razões.
Assim, o filósofo não se afasta de modo algum da realidade quotidiana, mas sim das interpretações e valorações quotidianas do mundo e do trabalho.
E aí temos já uma primeira característica comum, pois também o ato poético transcende o mundo do trabalho.
Ao aproximarmos Filosofia e Poesia não devemos perder de vista também aquilo que as diferencia: a Filosofia apreende a realidade em conceitos que não falam à imaginação, enquanto a Poesia pelo som, ritmo, rima e fluxo da linguagem atinge e apresenta a realidade de modo figurativo(5).
Mas, voltemos às semelhanças. O ato poético e o filosófico têm seu princípio no mirandum, naquilo que causa admiração.
O que é admiração? É um abalo que de subido nos faz reparar que o mundo, a natureza, as pessoas escondem um encanto inesperado, até então despercebido. Claro que o filósofo e o poeta não estão sob o influxo desse abalo 24 horas por dia. Claro que perceber esse misterioso encanto não é privilégio exclusivo de quem filosofa ou é poeta. Mas se todo homem potencialmente é abalável pelo maravilhoso, o filósofo e o poeta são aqueles que respondem a esse abalo de modos peculiares.
Por isso, na base da Filosofia e da Poesia encontra-se a sensibilidade, que é, na frase feliz do filósofo inglês Copleston, “reparar naquilo que todo mundo tinha visto (mas não notado)”. Acho que é isso o que Orwell queria dizer quando escreveu em seu 1984: “Os melhores livros são os que nos dizem o que já sabíamos”.
Tanto o filósofo como o poeta recusam-se a ter uma visão exclusiva e acabada do fato bruto, de um mundo de rotina onde tudo funciona “normalmente”.
Pieper, falando do filosofar, e da sensibilidade admirativa que essa atitude requer, põe o seguinte exemplo: um dia, ao saudar um amigo, “Como vai, meu amigo,”, uma pessoa pode sentir o abalo filosófico que o leva a perguntar pelo ser (“o que afinal é isto, em si e em suas últimas razões”) e indagar-se: Mas, afinal o que a amizade é? Que misteriosos e maravilhosos laços me unem à pessoa amiga fazendo-a minha?
Pode também perguntar “pelo ser do ter”: o que é, afinal ter? O que queremos dizer quando falamos em “meu” amigo, “minhas” idéias, “meu” amor, “meu” cigarro, “meu” Deus?
A admiração, gerando por exemplo poesia ou filosofar, abala a visão rotineira e quotidiana onde o “ter” não constitui problema algum.
Já o poeta e o filósofo (o exemplo é recolhido por Pieper) voltam-se para o maravilhoso e admirável caráter do ter, expresso no Hai-Kai:
“Meu jardim
disse o rico;
o jardineiro, sorriu...”
Mas precisemos um pouco melhor a essência do abalo admirativo: a admiração, fonte do filosofar, versa sobre coisas simples: “A questão filosófica, portanto, diz respeito ao que sucede todos os dias diante de nossos olhos; mas isto que está diante dos olhos... perde a opacidade, a concretitude, o aspecto definitivo, a evidência. As coisas começam a revelar um aspecto estranho, desconhecido, mais profundo”.(6)
É também a temática de Heidegger em “O Caminho do Campo”: “O dom que (o Simples) dispensa se esconde na inaparência do que é sempre o mesmo”(7). Para em seguida fazer agudo diagnóstico dos males do nosso tempo: “O homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o Simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entediados só veem monotonia a seu redor. O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa esgotou-se.
O número dos que conhecem o Simples como um bem que conquistaram diminui, não há dúvida, rapidamente. Esses poucos porém, serão, em toda a parte, os que permanecem”(8).
De fato, não é preciso muito esforço para verificar como, no nosso tempo, perdemos quase completamente a capacidade de admirar-nos com o Simples. Precisamos mais e mais do estapafúrdio (pense-se nos esoterismos e no pulular de seitas nos dias de hoje) para provocar algo assim como uma pseudo-admiração, prostituída, falsa, sucedâneo para a legítima admiração que reclama respostas filosóficas, poéticas, religiosas, amorosas: formas genuínas de respostas à verdadeira admiração.
“A admiração filosófica não é suscitada pelo ´nunca se viu tal coisa´, por aquilo que é anormal ou sensacional... Perceber no comum e no diário aquilo que é incomum e não diário, o mirandum, eis o princípio do filosofar. Nesse ponto, como dizem Aristóteles e S. Tomás, o ato de filosofar se assemelha à poesia”(9).
A letra de “Força Estranha” nos fala da arte e do artista, de seus temas, condição e missão: o que o poeta vê, como o vê e expressa. E o que se diz é que o tema e a inspiração da arte procedem da admiração das coisas simples que o poeta vê e – aí está o seu dom – repara: “Eu vi o menino correndo, os cabelos brancos na fronte do artista, a mulher preparando outra pessoa...”
Objetar-se-á que os exemplos – especialmente este último – parecem banais, pouco poéticos, demasiadamente prosaicos (“olhar para aquela barriga”) para as delicadas musas. Como também o ver “muitos homens brigando”.
O poeta responde dizendo que a poesia não tem a necessidade – exageradamente romântica – de fugir à realidade pois “a vida é amiga da arte”. Mas também não precisa cair no estreito e grosseiro “realismo” insensível a tudo o que transcendia o plano meramente material, incapaz portanto de ver, por exemplo, o real encanto do menino correndo ou da nova vida que surge, ou, pelo seu contraste: ver a paz devida, ausente na luta dos homens.
A respeito de realidade e poesia, Caetano diz que é uma questão de sensibilidade, de abrir-se à luz do sol que brilha, ensina, dá a conhecer o jogo das coisas que são e mostra o seu valor.
E assim, podemos nos maravilhar com o menino, com os brancos cabelos do sempre jovem artista e com o surgir da nova vida, sem sermos acusados de querer fugir à realidade pois “aquele que conhece as coisas que são” sabe que há uma realidade de encanto nessas cenas. Note-se que “O tempo parou”, ou a “ausência de tensão do futuro”, é a caracterização que filósofos (como Von Hildebrand ou Pieper) utilizam para falar da contemplação da verdade ou da beleza.
E quem quer que no caminho, na estrada da vida não esteja totalmente cego para essa luz sentir-se-á arrastado – é a experiência relatada desde a Antigüidade por todos os genuínos poetas – por uma estranha força que o compele a externar (“por isso essa voz tamanha”) essas maravilhas.
Quando essa manifestação é de ordem primordialmente estética recebe o nome de arte e seus cultores têm o curioso dom da eterna juventude, por muito que o tempo não pare.
Mas, passemos a outros componentes da postura filosófica platônica. Se o princípio da filosofia é a admiração, seu fim (no sentido da meta) é a “theoria”. Teoria é o simples olhar, “simples visão”(10) contemplativa, desinteressada, ou melhor, desinteresseira: a contemplação pura da verdade e do belo ainda que disso não resulte nada de útil para o “mundo do trabalho”, por exemplo, que não aumente o PIB, mas porque vale “em si”.
Assim Pieper situa a concepção clássica: “Somente aquele que admira consegue realizar em si a forma original de relação com o ser, que desde Platão se chama ´teoria´, isto é, aceitação puramente receptiva da realidade... Teoria só existe quando o homem não se tornou cego e insensível ao maravilhoso, ao fato de que alguma coisa existe”(11). E, noutra passagem, teoria, “contemplação é um conhecimento com amor. É a visão do objeto amado”(12). Confronte-se com a antológica “Que maravilha” de Jorge Ben:
Lá fora está chovendo
Mas assim mesmo eu vou correndo
Só para ver
O meu amor...
Que maravilha, que coisa linda
é o meu amor
Registre-se também a oposição que o poeta faz entre a “teoria” (“só para ver...”) e o mirandum (o maravilhoso, que maravilha...) e o “mundo do trabalho”:
Por entre automóveis
Bancários, ruas e avenidas
Milhões de buzinas
Tocando sem cessar...
Se a admiração nos levou à contemplação (teoria), leva-nos também a uma determinada afirmação do mistério como condição do filosofar.
Também aqui devem ser evitadas as confusões: mistério não deve ser entendido como algo esotérico, mas o mistério do simples, dessa realidade quotidiana que, pelo abalo da admiração, manifesta-se misteriosa: o que é o amor?, o que é a dor?, o que o homem é?
Filósofo algum jamais poderá dar resposta plena e acabada a essas e a tantas outras questões. Por isso, Platão personifica o filosofar em Eros, pois Eros é filho de Poro e de Pênia (da abundância e da penúria). Eros (o filosofar, o homem) herdou do pai, Poro, o desejo de conhecer que, nesta vida, não se realizará plenamente (pois Eros é também filho de Pênia).
O filosofar, dizíamos, manifesta o que o homem é. E nessa estrutura dual do mistério e da admiração, misto de ter e não-ter, ânsia de posse que não chega a se perfazer (“...amor é sede depois de se ter bem bebido” – Guimarães Rosa) manifesta-se a estrutura ontológica da criatura humana: uma estrutura de esperança, um não-ter-ainda, não-ser-ainda; intermediária entre a plenitude da divindade e a opacidade do bruto.
O mistério é o claro-escuro: sim, sabemos o que é por exemplo o amor, mas, ao mesmo tempo, não sabemos o que o amor é.
A razão pela qual a realidade é misteriosa para o homem não está na falta de luz mas no excesso, no fato de ter sido criada por Deus, fonte de luz-ser e de inteligibilidade. A realidade é cognoscível para o homem porque é criada por Deus. Uma afirmação que requer a devida complementação: a realidade é inexaurível para o homem porque é criada por Deus.
À luz destas considerações, trataremos a seguir do samba “Sei lá, Mangueira”.
SEI LÁ MANGUEIRA
(Paulinho da Viola – Hermínio B. de Carvalho)
Vista assim, do alto
Mais parece um céu no chão
Sei lá...
Em Mangueira a poesia
Feito o mar se alastrou
E a beleza do lugar
Pra se entender
Tem que se achar
Que a vida não é só isso que se vê
É um pouco mais
Que os olhos não conseguem perceber
E as mãos não ousam tocar
E os pés recusam pisar
Sei lá, não sei
Sei lá, não sei
Não sei se toda beleza
De que lhes falo
Sai tão somente do meu coração
Em Mangueira a poesia
Num sobe-desce constante
Anda descalça ensinando
Um modo novo da gente viver
De pensar e sonhar de sofrer
Sei lá, não sei
Sei lá, não sei não
A Mangueira é tão grande
Que nem cabe explicação
Esta canção está de tal modo marcada pelo sentido clássico de mistério, que, literalmente, podemos colocá-la lado a lado com trechos filosóficos de Pieper:
O filósofo:
"O verdadeiro sentido da admiração é que o mundo é mais profundo, mais amplo e mais misterioso do que pode parecer ao conhecimento comum”(13).
O poeta:
Sei lá, não sei
Sei lá, não sei
Não sei se toda a beleza
de que lhes falo
sai tão-somente do meu coração
O filósofo:
“Mistério significa que uma realidade é inconcebível, porque sua luz é inesgotável e inexaurível. É o que experimenta quem se admira”(14)
O poeta:
Sei lá, não sei
Sei lá, não sei não
A Mangueira é tão grande
Que nem cabe explicação
Admiração, contemplação e mistério, bem como outros componentes do filosofar, apontam para algo ainda mais profundo: encarar o mundo como criação de Deus!
Só podemos maravilhar-nos, só é digno de contemplação, só há o excesso de luz e a grandeza do mistério, se o mundo possui algo do encanto de Deus.
Seja-me permitida ainda mais uma vez intercalar num parágrafo de Pieper trechos de “Sei lá Mangueira”.
Pieper:
“Se dos antigos se aproximasse um discípulo dizendo que era sua intenção aprender e considerar um determinado objeto de maneira filosófica, os antigos mestres replicariam: ´Estás convencido de que a realidade do mundo é algo de divino...
Sei lá Mangueira:
Visto assim do alto
Mais parece um céu no chão...
Pieper:
... a realidade do mundo é algo de divino e, por isso mesmo, digno de veneração...´” (15)
Sei lá Mangueira:
Que as mãos não ousam tocar
E os pés recusam pisar...
Pode-se dizer, pois, que o tema, - tão fundamental para os grandes antigos – da reverência como condição para o conhecimento (e que para o homem de hoje, é de tão difícil compreensão...) foi também plena e retamente captado por Paulinho-Hermínio:
“Pra se entender
Tem que se achar
Que a vida não é só isso que se vê
É um pouco mais
Que os olhos não conseguem perceber
e as mãos não ousam tocar...”
Notas:
(1) Was heisst Philosophieren? 8a. ed. München, Kösel, 1980 (seguirei, por vezes, a tradução brás. Cit. Em (13)
(2) ibidem, p. 11.
(3) ibidem, p. 12.
(4) ibidem, p. 17.
(5) cfr., p. ex. PIEPER, Verteidigungsrede für die Philosophie, München, Kösel, p. 111.
(6) op. Cit. (1) p. 63.
(7) HEIDEGGER, Sobre o problema do ser. O caminho do campo. São Paulo, Duas Cidades, 1969, p. 69.
(8) ibidem, p. 70.
(9) op. Cit. (1), p. 66-67.
(10) PIEPER, J. Lazer e Culto. São Paulo, Herder, 1969, p. 108.
(11) op. Cit. (1), p. 66.
(12) op. cit. (10), p. 60.
(13) PIEPER, O que é filosofar? O que é Acadêmico? São Paulo, EPU, 1981, p. 29.
(14) ibidem, p. 29.
(15) ibidem, p. 64.
(Originalmente, “Que há de comum entre estes dois senhores?” e “Filosofia e Poesia”, artigos publicados no Jornal da Tarde, resp. 15-8-81 e 19-6-82)
(Ilustração: Di Cavalcanti – Samba)
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