terça-feira, 18 de julho de 2023
FELIPE DIAZ E O QUADRO DE COURBET, de Jorge Edwards
Tudo começou na segunda ou terça-feira da semana passada, na frente do quadro. Começou como uma ocorrência repentina, como uma pergunta. Não passou de uma brincadeira, mas depois da noite da última segunda-feira, depois que encontraram o cadáver, essa brincadeira, da qual não tinha me esquecido, veio a adquirir matizes mais inquietantes, menos leves. Matizes mais escuros, digamos assim.
− Sabe de uma coisa? – perguntei a Silvia em voz baixa, depois de ter olhado o quadro no salão dos Courbet por alguns minutos.
− O quê?
− Parece muito com você.
− Você está louco! – Silvia exclamou, ruborizada como uma colegial, mais irritada do que eu poderia ter previsto, e olhou para os lados, porque sempre, e sobretudo nessa época do ano, em pleno verão, havia turistas espanhóis.
− Mas é a mesma barriguinha – expliquei, envergonhado, rindo, apesar de tudo, e pensando que os espanhóis não entendiam o chilenismo – e as mesmas coxas grossas, bem torneadas e até os mesmos pelos, a mesma…
− Velho sem-vergonha! – Silvia exclamou, ainda irritada. – Fique quieto! – E empreendeu a retirada pelo centro da sala, rumo à porta de saída, por entre os animais de bronze que tinham povoado as salas de jantar de nossas avós, que durante décadas haviam saído, entre empurrões e sussurros, debaixo do martelo dos leiloeiros: cachorros pensativos, javalis em posição de ataque, leões em estado de sonolência.
− Felipe Díaz – insisti, como se não me restasse outra alternativa senão insistir – tem a mania de fotografar suas amantes nuas e em poses obscenas.
− De onde você tirou isso? – ela perguntou, mais tranquila, pelo menos na expressão dos olhos, mas sem que a exasperação inicial tivesse desaparecido. − O Alfredo me contou, ele é um verdadeiro perito nas histórias do Felipe.
− Sinto falta dele – Silvia murmurou, pensativa. – Há quatro domingos, um mês inteiro, que Felipe não almoça conosco nem dá sinal de vida.
− A gente devia ligar para ele – eu disse.
− Telefonei duas vezes – disse Silvia. – Deixei um recado na secretária eletrônica e ele não se dignou a ligar de volta. Será que aconteceu alguma coisa?
Isso me incomodou, na verdade, embora não houvesse por que me incomodar, só que eu já suspeitava há algum tempo que Silvia podia ter ligado para ele e não ter me dito nada. Me deixou pensativo. Relacionei o assunto, de um jeito difícil de explicar, de explicar inclusive a mim mesmo, com o quadro. Nessa noite, pedi que ela se colocasse na pose da modelo do quadro, a pose exata, quer dizer, que se deitasse de costas, nua, com as pernas roliças separadas, o rosto coberto pelos lençóis. Inclusive tirei uma reprodução do bolso do pijama, porque tinha me dado ao trabalho de colocá-la no pijama, o que, em termos penais, teria revelado deliberação, premeditação, e examinei-a atentamente. A postura tinha de ser o mais fiel possível!
− Não sei que bicho te mordeu – ela exclamou.
− Por que não podemos aproveitar – repliquei –, agora que já estamos velhos, ou que eu estou velho, melhor dizendo… − S’il te plaît! – concordou ela.
− … um bom estímulo erótico? Pensei também que podia tirar uma foto sua. À la Felipe Díaz…
Ela, que tinha coberto o rosto, soltou um grito sufocado entre os lençóis, indecifrável, com um eco adolescente, de pátio de colégio de freiras.
− Ou você preferia que o próprio Felipe Díaz fizesse a foto…?
− Me deixe dormir, por favor – Silvia suplicou. – Estou cansada demais.
No dia seguinte, ou no outro, Felipe Díaz respondeu às mensagens de Silvia às quatro da tarde, hora da nossa sesta, costume sagrado e que ele sabia de cor.
Deixou sua mensagem na secretária eletrônica e quando Silvia ligou de volta, ele havia sumido de novo. Parecia ter resolvido romper o contato conosco, de forma consciente, e confesso que fiquei aborrecido, ofendido. Não falei nada disso a Silvia, para não jogar lenha na fogueira, e porque intuía perfeitamente, fazia muito tempo, sem necessidade do episódio da noite de segunda-feira, que para ela o assunto era mais delicado, mais sensível, mais complexo do que para mim.
Muitíssimo mais delicado e mais complexo!
− Pelo menos está vivo – Silvia suspirou e eu disse a mesma coisa, mas com outra entonação: pelo menos está vivo.
Estava vivo, no entanto eu tinha outra intuição, em cima da primeira, e que me provocava um sentimento de perplexidade, e, além da perplexidade, de angústia profunda, como se destruísse todos os meus esquemas, sem a segurança mais elementar: a de que ele não estaria vivo por muito tempo. Intuição acertada, como se veria poucos dias depois. Felipe tinha passado havia pouco dos cinquenta anos, e deixado para trás, creio que também havia pouco, a metade dos cinquenta. Gente que vive como Felipe se acaba cedo, eu pensava, o que quer dizer que ele já estava vivendo por empréstimo, de llapa (como dizíamos em Iquique). Mas talvez eu pensasse assim, reconheço, por deformação profissional. Nós, os médicos, acreditamos que as regras da medicina servem para alguma coisa e que a transgressão a elas é sempre sancionada por algum deus obscuro. Cada vez que nos encontramos com um ser que parece fugir a essas regras, com alguém rebelde aos nossos vaticínios, uma pessoa que bebe como um cossaco, por exemplo, e tem o fígado em perfeito estado, que come gordura e não engorda, fingimos que nos alegramos por ele, por seu vigor, por sua saúde invejável, mas no fundo ficamos irritados, nos sentimos arbitrária e injustamente desmentidos. Nossos razoáveis conselhos, nossos apelos à prudência, com seu tom agourento, adquirem um ar ridículo. Por que amargurar tanto a vida com um monte de bobagens!
Estava, portanto, influenciado por uma deformação profissional e, talvez, também por uma deformação ideológica. Porque durante toda a minha vida, minha vida madura e útil, pelo menos, eu tinha sido escravo de uma configuração extrema de racionalidade, de um sistema global, total e totalizador, de pensamento e de conduta. Achava que tinha me libertado na velhice, mas o monstro dogmático, no momento menos esperado, se manifestava, dava rabanadas dentro da minha pobre cabeça. Pois bem, Felipe reapareceu de repente, emergiu lá do fundo de seu caos pessoal, de seu delírio aparentemente tranquilo, só aparentemente!, e compreendi, nos primeiros segundos, que já era outro. Nos dias em que não tínhamos nos visto, ele havia chegado ao abismo, ao inferno, e estava com um pé do outro lado.
O encontro com Felipe se deu na manhã da sexta-feira passada, semana cheia de sinais, de anúncios da culminação do verão, e da culminação, ainda insuspeitada, de muitas outras coisas, e que havia começado com nossa expedição, à primeira vista inocente, para conhecer o quadro de Gustave Courbet, batizado de um jeito entre pomposo e brincalhão, não sei se pelo próprio artista, de A origem do mundo, e que acabava de entrar em exposição, depois de mais de um século de clandestinidade. Isso ocorreu em frente ao Dôme, no vértice do ângulo formado pela Rue Delambre e o Boulevard du Montparnasse, vértice que pertence, como todos sabem, a muitas mitologias, à mitologia sul-americana, sem dúvida, e a uma ou outra metafísica.
− Como tem passado, Felipe? – perguntei, e pensei de imediato que minha pergunta havia sido indiscreta, brusca demais, porque sua cor, suas olheiras, o gesto quase evasivo, muito pouco seu, contrário a seu caráter, além do evidente tremor das mãos, dos lábios, indicava que ele não estava bem, que dessa vez estava acontecendo alguma coisa séria, talvez muito séria. Até essa manhã, apesar de seus frequentes excessos, Felipe tinha sido o eterno vencedor, o homem que nunca se queixava neste mundo de queixumes, o sujeito mais alheio à depressão que eu tinha conhecido na minha vida, na profissional e na outra, e vê-lo de repente pálido, cabisbaixo, trêmulo, com o olhar fugidio, e isso em plena luz do dia, em todo o resplendor dos primeiros dias de agosto, me pôs em guarda. Posso ter começado a perder a memória, o pulso e até a visão e a audição, para não falar das pernas, que um dia foram famosas nos campos de futebol de Iquique e de Santiago de Nueva Extremadura, mas, nos meus setenta e tantos anos, o que ainda não se perdeu é o meu diagnóstico, o meu não menos famoso diagnóstico.
Ele disse que estava bem, como sempre se responde nesses casos, e depois, com uma mudança de tom inesperada, como se entendesse que não podia me enganar (ou podia me enganar?, pergunta póstuma, e tinha me enganado durante longos anos, tinham me enganado?), pegou no meu braço e acrescentou uma coisa. Acrescentou o seguinte.
− O que acontece, Patito (diminutivo muito chileno de Patricio, meu nome), é que chegou a hora de eu encerrar a partida, e estou lendo Sêneca para me consolar, mas a verdade é que não me resigno inteiramente, para que te dizer o contrário?, e não durmo…
− E a dose diária de uísque – perguntei – como vai?
− Um tanto alta – admitiu, com a expressão de uma pessoa que admite ou que constata, com certa tristeza, e que censura a si própria sem muito esforço.
− Um tanto alta!
O gesto dos meus ombros, dos meus braços, indicou que os comentários eram supérfluos. Você sabe tão bem como eu! – meu gesto queria dizer –, e não vou repetir!
Felipe disse, então, com sua voz rouca, aguardentosa, ou uiscosa, para ser mais exato, que pela primeira vez em sua vida tinha se visto em uma situação que definiu − com uma pitada de ironia, e até com humor, mas admitamos que sem alegria, sem a menor complacência − como dramática.
− Uma cagada dramática! – exclamou da maneira mais chilena deste mundo miserável. – Tive de escolher entre uma mulher e a garrafa, e se quer que eu diga a verdade, a pura verdade, desconfio que fiquei com a garrafa.
− Vai mal! – exclamei.
− E o diagnóstico vai pior, imagino – acrescentou com cara de preocupação.
− Péssimo diagnóstico!
Qualquer que fosse o diagnóstico, nos sentamos no terraço do Dôme e ele tomou seu primeiro Ballantine’s desde o meio-dia, com os dois cubos de gelo indispensáveis e com o toque simbólico de água Perrier (nos lembramos de Acario Cotapos, Cotapós para os franceses, que pedia uma “Panimavide”. “Une Panimavide, s’il vous plaît!”) e eu uma limonada, ou melhor dizendo, um citron pressé clássico. Um dos meus segredos, segredo não muito bem guardado, visto que o divulgo em voz alta, como um missionário, mas raramente compartilhado, é, foi, era?, a ausência de álcool, a água mineral e a limonada. Era, insisto, depois dos acontecimentos dos últimos dias e das últimas horas, e me pergunto se haverá volta àquilo, à limonada com todas as suas circunstâncias, ao que era e deixou de ser.
Acho que conversamos sobre a Bósnia Herzegovina, sobre as imagens brutais que tínhamos de engolir com nossos cafés da manhã, a barbárie, o racismo, que depois de tantas guerras, tantas campanhas contra, tantos discursos e tantas boas intenções encontravam-se em pleno auge, e sobre a incapacidade vergonhosa das Nações Unidas, dos governos europeus, da Casa Branca, de todos eles.
− De todos nós – definiu Felipe, que nessa manhã não estava para concessões, que falava com nervos triturados, com o fígado dolorido e eu, com minha antiga cara de militante, de beato condoído com os males deste mundo, concordei. Ele pediu seu segundo Ballantine’s e quando o serviram com uma dose mais generosa que a primeira, dada a sua qualidade de velho cliente assíduo daquele terraço, cliente, por assim dizer, histórico, que conhecia aquele lugar desde os tempos anteriores à restauração, tempos de Giacometti, de Alejo Carpentier e de Negro Ulloa, retomou o assunto.
− O que mais me deixa fodido – disse – é que a minha decadência coincide com a decadência de tudo, das cidades que amamos, das culturas que admiramos. Quando derrubaram o Muro de Berlim, há tão poucos anos, eu pulava numa perna só, rindo dos fanáticos, dos policiais, dos hipócritas e sem vergonhas de todo tipo que tinham tornado a nossa vida impossível, e agora, ao contrário, depois daquela euforia momentânea, me sinto derrotado, deprimido.
Fodido!
Eu já tinha lhe falado, e mais de uma vez, sobre os efeitos depressivos do álcool. Não ganhava nada sendo teimoso. Mas, pelo visto, sou. Um médico talvez seja teimoso por profissão e até por natureza. Está envolvido, ao fim e ao cabo, em uma luta teimosa: contra o quê? Contra o tempo? Contra a morte? Preferi não dizer nada a ele, para não deprimi-lo mais. Mas quem estava lendo Sêneca era ele, afinal!
− Que idade você tem Felipillo? – perguntei depois de um tempo. – Já fez sessenta?
− Falta pouco – respondeu, olhando por cima dos óculos abaixados, que tinha posto para contemplar o fundo do copo, como se as formações de gelo derretido entre os restos desbotados de uísque servissem para adivinhar o futuro. O futuro se apresentava negro e ele acrescentou que faltava, na verdade, para os fatais sessenta anos, quase nada.
− Questão de minutos! – acrescentou, rindo, tapando a boca com a mão direita, com o pulso agora firme.
− Você ainda é jovem, um moço!, mas já faz tempo, se quer que eu diga, que deixou de ser menino e talvez fosse conveniente começar a tomar consciência do assunto.
− Acho que já comecei – respondeu, com a cara pesada, entrelaçando em cima da mesa as mãos nervosas, nodosas, delicadas, apesar das veias avermelhadas, e olhando de soslaio para mim: − Faz um bom tempo!
− Pois então – adverti em tom de sermão inevitável e ainda por cima atuando como se eu fosse um padre de colégio – isso quer dizer que você não pode continuar vivendo sem rumo. Está na hora de assumir uma posição, rapaz, uma conduta de vida!
− Foi o que me disse uma adivinha nas agitações de maio de 1968, há mais de um quarto de século!
− Você tem de perder peso, oito a dez quilos, pelo menos, eliminar essa barriga vergonhosa, fazer exercício todo dia…
− O que me ensinaram foi que exercício era para bois – disse Felipe, batendo na barriga.
− … e controlar o colesterol, o açúcar, a ureia e o estado geral do fígado, que provavelmente está precário, e fazer um exame de próstata. Quando foi a última vez que você examinou a próstata, se é que alguma vez já fez esse exame? E seguir uma dieta, mas não durante duas ou três semanas, isso não adianta; durante o resto da vida! Só um cálice de vinho no almoço, um no jantar, e acabaram-se para sempre a gordura, os doces, os pataches…
− Que horror! – uivou Felipe Díaz, o eterno Felipe Díaz, com voz rouca, teatral, arrancando os cabelos, e chamou o garçom com um gesto espalhafatoso.
O garçom era um francês alto, ossudo e magro, mais para jovem.
− Desta vez, mon cher, como é sexta-feira, vou passar para o terceiro…
− Tout de suite, monsieur – respondeu o garçom e nos transmitiu, inclinando-se e fazendo cara de gozador, uma cabala secreta ou um fragmento de filosofia de bar. Os aperitivos, em sua bem consolidada opinião, e sobretudo se eram bebidas fortes, uísques on the rocks, por exemplo, ou martínis muito secos, tinham de ser bebidos em números ímpares: um, três, cinco, sete… Os senhores entendem?
Compreendi que eram elucubrações de bêbados, de bebuns e, nesse caso preciso, de um explorador de extraviados alcoólicos, e me perguntei se não estava perdendo miseravelmente o meu tempo. E mais, cheguei a me perguntar se minha profissão de médico clínico geral e psicólogo não teria sido sempre, em última instância, uma completa perda de tempo, uma vez que os seres humanos eram sombrios, alienados, inajudáveis e irredutíveis. A imagem da mulher nua do quadro, como se fosse mais real, mais vigente que todo o resto, voltou a dançar na minha cabeça e imaginei Felipe, o imaginei então, antes de ter observado as reações descontroladas de Silvia diante de seu cadáver, e imagino-o com mais razão agora, depois daquele episódio, abrindo as pernas dela, colocando-as na mesma posição. Que disparate! Mas ele, sorrindo, parecido com o Felipe Díaz inconsciente e sublime de toda a vida, não o que eu havia encontrado meia hora antes na esquina mitológica, achou que o garçom tinha toda razão, como se fosse, mais que um atendente de bar, um iluminado, um guru. Não tive alternativa senão dar de ombros: dar de ombros irritado, embora ainda sem saber o que me esperava, e olhar os turistas das mesas ao lado.
(A origem do mundo; tradução de José Rubens Siqueira)
(Ilustração: Gustave Courbet - a origem do mundo)
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