terça-feira, 21 de setembro de 2021

BAÚ VELHO, de Farias de Carvalho

 



No baú velho do inconsciente

mexendo papéis antigos

achei um mapa de sonhos.



Pedi emprestado ao tempo

as minhas mãos de menino,

sentei num chão de memórias

cruzei as pernas cansadas

abri a caixa de armar

falei de novo com o tempo

pedi as pedras esparsas

juntei o quebra-cabeça

bati o pó e a saudade

e comecei a jogar.



Num balet de simetria

as minhas mãos de menino

foram reconstruindo

em sonho, mapa e distância

a geografia física da infância:



Ladeira do Mercado, pedras soltas,

o mundo todo girando, rodando e rebolando

dentro da meia rasgada;

quebrando vidraças, subindo as calçadas,

o mundo todo, inteirinho,

amassado, sacudido

debaixo dos pés do time.



Trapiche antigo, molecada nua,

dos Barés, da Miranda, dos Andradas,

até os moleques que moravam mesmo

num batente qualquer - de qualquer rua.



Saltos ligeiros, corpos gotejando

pingos de rio e pingos de desejos:

fúria que vinha inconsciente e pura

nas estranhas e novas sensações

das primeiras nervosas ereções.



Quintal cheio de sol

linha zero esticada

mão ligeira melada

espalhando cerol.



Banda de asa no ar,

braços fortes colhendo.

Rabo e linha, quedooo!

bota outro medroso...



Velha praça da Igreja dos Remédios

do Monsenhor Oliveira e do Mané Sacristão;

missa chata aos domingos, logo de madrugada,

- as beatas rezando sempre a mesma oração.



Mané doido mascando

Monsenhor celebrando

os moleques roubando

o vinho e o sagrado pão.



Mas, estão faltando pedras,

como é que eu vou trabalhar?

As mãos tristes do menino

estão querendo parar

- cansadas de tentativas

cansadas de jogo inútil.



Acho que o quebra-cabeça

vai ficar mesmo incompleto.

Sempre um espaço a sobrar,

sempre uma pedra a faltar.

As mãos gastas do menino

já não podem continuar.



Estão paradas no tempo

cheias de pedras lisas,

de pedras feitas de nada

que não servem para jogar.



Estão paradas no tempo!



Ah! Tempo, tempo malvado,

tempo, você me enganou:



Pedi o jogo emprestado

pedi as mãos de menino

mas juro que não sabia

que você empresta sempre

cobrando um juro tão alto!



Vou fechar meu baú velho.

Carregue as caixas de armar.

- Leve as ruas, leve os dados,

leve as pontes, leve as bolas,

leve as torres dos castelos,

leve tudo, tempo, leve.

Só quero que você deixe,

impressas aqui neste mapa

de sonhos e de lembranças

as mãos gastas do menino

que já estão ficando longe

sujas de ocasos de infância

sujas de você também.



Mas não me cobre este juro,

você sabe muito bem

que eu já não sei mais chorar!



(Pássaro de cinza)



(Ilustração: Cândido Portinari - crianças brincando 1960)


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