No baú velho do inconsciente
mexendo papéis antigos
achei um mapa de sonhos.
Pedi emprestado ao tempo
as minhas mãos de menino,
sentei num chão de memórias
cruzei as pernas cansadas
abri a caixa de armar
falei de novo com o tempo
pedi as pedras esparsas
juntei o quebra-cabeça
bati o pó e a saudade
e comecei a jogar.
Num balet de simetria
as minhas mãos de menino
foram reconstruindo
em sonho, mapa e distância
a geografia física da infância:
Ladeira do Mercado, pedras soltas,
o mundo todo girando, rodando e rebolando
dentro da meia rasgada;
quebrando vidraças, subindo as calçadas,
o mundo todo, inteirinho,
amassado, sacudido
debaixo dos pés do time.
Trapiche antigo, molecada nua,
dos Barés, da Miranda, dos Andradas,
até os moleques que moravam mesmo
num batente qualquer - de qualquer rua.
Saltos ligeiros, corpos gotejando
pingos de rio e pingos de desejos:
fúria que vinha inconsciente e pura
nas estranhas e novas sensações
das primeiras nervosas ereções.
Quintal cheio de sol
linha zero esticada
mão ligeira melada
espalhando cerol.
Banda de asa no ar,
braços fortes colhendo.
Rabo e linha, quedooo!
bota outro medroso...
Velha praça da Igreja dos Remédios
do Monsenhor Oliveira e do Mané Sacristão;
missa chata aos domingos, logo de madrugada,
- as beatas rezando sempre a mesma oração.
Mané doido mascando
Monsenhor celebrando
os moleques roubando
o vinho e o sagrado pão.
Mas, estão faltando pedras,
como é que eu vou trabalhar?
As mãos tristes do menino
estão querendo parar
- cansadas de tentativas
cansadas de jogo inútil.
Acho que o quebra-cabeça
vai ficar mesmo incompleto.
Sempre um espaço a sobrar,
sempre uma pedra a faltar.
As mãos gastas do menino
já não podem continuar.
Estão paradas no tempo
cheias de pedras lisas,
de pedras feitas de nada
que não servem para jogar.
Estão paradas no tempo!
Ah! Tempo, tempo malvado,
tempo, você me enganou:
Pedi o jogo emprestado
pedi as mãos de menino
mas juro que não sabia
que você empresta sempre
cobrando um juro tão alto!
Vou fechar meu baú velho.
Carregue as caixas de armar.
- Leve as ruas, leve os dados,
leve as pontes, leve as bolas,
leve as torres dos castelos,
leve tudo, tempo, leve.
Só quero que você deixe,
impressas aqui neste mapa
de sonhos e de lembranças
as mãos gastas do menino
que já estão ficando longe
sujas de ocasos de infância
sujas de você também.
Mas não me cobre este juro,
você sabe muito bem
que eu já não sei mais chorar!
(Pássaro de cinza)
(Ilustração: Cândido Portinari - crianças brincando 1960)
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