sábado, 15 de maio de 2021
UMA ALDEIA CINZENTA E TRISTE, de Amós Oz
A professora Emanuela explicou à classe como é um urso, como os peixes respiram e que sons a hiena produz à noite. Ela também pendurou na sala gravuras de animais e aves. Quase todos os alunos debocharam dela, porque nunca na vida tinham visto um animal sequer. E muitos deles não acreditaram que existissem no mundo tais criaturas. Pelo menos nas redondezas. Sem contar, disseram, sem contar que a professora não tinha conseguido encontrar na aldeia alguém que topasse ser seu marido, e por isso, disseram, a cabeça dela estava cheia de raposas, pardais, todo tipo de invencionice que as pessoas sozinhas criam devido à solidão.
Só o pequeno Nimi, de tanto ouvir o falatório da professora Emanuela, começou a ter sonhos com animais à noite. A turma ria dele quando chegava contando, logo pela manhã, como seus sapatos marrons, que durante a noite ficam ao lado da sua cama, se transformavam em dois ouriços que se arrastavam e examinavam o quarto a noite inteira, mas de manhã, quando ele abria os olhos, os ouriços voltavam de repente a ser um simples par de sapatos ao lado da cama. Numa outra vez, morcegos negros vieram à meia-noite, levaram-no sobre as asas e voaram com ele através das paredes da casa pelo céu da aldeia e por sobre os montes e os bosques, até que o conduziram a um palácio encantado.
Nimi era um menino um pouco descuidado, e andava quase sempre com o nariz escorrendo. Além disso, entre os salientes dentes da frente havia um belo intervalo. As crianças chamavam esse espaço de poço de lixo.
Todas as manhãs Nimi chegava à sala e começava a contar a todos um novo sonho, e todas as manhãs diziam-lhe chega, já ficou chato, fecha o teu poço de lixo. E quando ele não parava, atormentavam-no. Mas Nimi, em vez de ficar ofendido, também participava do deboche. Fungava e engolia o catarro, e começava de repente a chamar a si mesmo, numa alegria transbordante, exatamente pelos apelidos pejorativos que as crianças lhe deram: Poço de Lixo, Sonhador, SapatoOuriço.
Maia, a filha de Lília, a padeira, que sentava atrás dele na sala, cochichava algumas vezes: Nimi. Escuta. Você pode sonhar com o que quiser, com animais, com meninas, mas fique quieto. Não conte. Não vale a pena.
Mati dizia a Maia: Você não entende, Nimi sonha só para contar os sonhos. E geralmente os sonhos dele não se interrompem nem quando ele acorda pela manhã.
Tudo divertia Nimi e tudo despertava nele alegria: a xícara rachada da cozinha e a lua cheia no céu, o colar da professora Emanuela e seus próprios dentes salientes, os botões que esqueceu de abotoar e o rugido dos ventos no bosque, tudo o que existe e acontece parecia engraçado a Nimi. Em todas as coisas via motivo suficiente para se arrebentar de rir.
Até que uma vez ele fugiu da sala de aula e da aldeia, e entrou sozinho no bosque. Durante dois ou três dias, procuraram-no quase todos os aldeões. Por mais de uma semana ou dez dias, procuraram-no os guardas. Depois, apenas seus pais e a irmã continuaram a procurar por ele.
Passadas três semanas ele voltou, magro e imundo, todo arranhado e machucado, mas relinchando de tanto entusiasmo e alegria. E desde então o pequeno Nimi não parou mais de relinchar e tampouco tornou a falar: não pronunciou nenhuma palavra desde que voltou do bosque, e só ficava circulando descalço e esfarrapado pelas ruelas da aldeia, nariz escorrendo, mostrando os dentes e o intervalo entre eles, se metendo entre os pátios, subindo nas árvores e postes, relinchando o tempo todo, com o olho direito lacrimejando sem parar por causa da sua alergia.
Era totalmente impossível voltar a frequentar a escola por causa da "doença do relincho". As crianças, quando saíam da aula, provocavam-no intencionalmente, para que ele relinchasse. Elas os chamavam de Nimi, o potro. O médico esperava que isso fosse passar com o tempo: talvez ali, no bosque, ele tivesse se deparado com alguma coisa que o assustou ou abalou, e por enquanto está com a doença do relincho.
Maia dizia a Mati: será que eu e você deveríamos fazer alguma coisa? Como podemos ajudá-lo? E Mati respondia: deixa pra lá, Maia. Daqui a pouco eles vão se cansar disso. Daqui a pouco eles vão esquecê-lo.
Quando as crianças lhe davam um chega pra lá com zombarias, e atiravam pinhas e cascas sobre ele, o pequeno Nimi corria, relinchando. Subia bem alto nos galhos da árvore mais próxima e de lá, em meio às ramagens, se voltava para elas relinchando, com um olho lacrimejando e os dentes da frente salientes. E às vezes, até no meio da noite alta, parecia que se ouvia ao longe o eco de seu relincho no escuro.
A aldeia era cinzenta e triste. À volta dela apenas montes e bosques, nuvens e vento. Não havia outras aldeias nas redondezas. Quase nunca chegavam forasteiros, nem sequer visitantes ocasionais. Trinta, talvez quarenta casas pequenas se espalhavam ao longo do declive, no vale fechado e rodeado por montes íngremes. Somente a oeste havia uma abertura estreita entre as montanhas, e por essa abertura passava o único caminho que levava à aldeia, mas não ia adiante, porque não havia nenhum adiante: ali terminava o mundo.
Vez por outra aparecia um vendedor ambulante, ou algum artesão, ou simplesmente algum mendigo perdido. Mas nenhum peregrino permanecia por mais de duas noites, porque a aldeia era amaldiçoada: um estranho silêncio pairava sempre ali, nenhuma vaca mugia, nenhum burro zurrava, nenhum pássaro chilreava, nenhum grupo de gansos selvagens cortava o céu vazio, tampouco os aldeões falavam entre si, só o estritamente necessário. Apenas o som do rio se ouvia sempre, dia e noite, pois um rio caudaloso corria entre os bosques nos montes. Com uma espuma branca nas margens, esse rio cortava a aldeia todinha, agitado, borbulhante, produzindo um ruído parecido com um suspiro baixo, e prosseguia sendo tragado entre as curvas dos vales e bosques.
À noite o silêncio negro e denso era ainda mais profundo do que durante o dia: nenhum cachorro esticava o pescoço ou revirava as orelhas para uivar para a lua, nenhuma raposa resmungava no bosque, nenhuma ave noturna gritava, nenhum grilo trilava, nenhum sapo coaxava, nenhum galo cantava na aurora. Já fazia anos que todos os animais dessa aldeia e das redondezas haviam desaparecido, vacas, cavalos e carneiros, gansos, gatos e canários, cachorros, aranhas domésticas e lebres. Nem mesmo um pintassilgo vivia lá. Nenhum peixe restara no rio. As cegonhas e os grous rodeavam os vales em suas jornadas errantes. Até mesmo os insetos e os vermes, até as abelhas, moscas, formigas, minhocas, mosquitos e traças não eram vistos havia muitos anos. Os adultos que ainda lembravam em geral preferiam calar-se. Negar. Fingir que esqueceram.
Anos antes viveram na aldeia sete caçadores e quatro pescadores. Mas quando o rio ficou sem peixes, quando os animais selvagens partiram para longe, emigraram dali também os pescadores e os caçadores, em busca de lugares que a maldição não havia atingido. Somente um pescador de nome Almon — um homem velho e solitário — permaneceu na aldeia. Vivia numa pequena choupana ao lado do rio e falava longamente consigo mesmo, inflamado, enquanto cozinhava uma sopa de batatas. As pessoas da aldeia ainda o chamavam de Almon, o pescador, embora ele já não fosse pescador, e sim lavrador: durante o dia Almon plantava verduras e raízes comestíveis em canteiros de terra fofa, e também cultivava umas vinte e trinta árvores frutíferas no declive da colina.
Até mesmo um pequeno espantalho Almon colocara entre os canteiros, porque acreditava que talvez, antes de sua morte, numa certa noite, todas as aves voltariam e com elas todos os animais que desapareceram. Almon discutia com o espantalho, às vezes longamente e com raiva. Ajeitava-o, repreendia-o, abandonava-o completamente, e logo voltava, trazendo uma velha cadeira; sentava-se diante do espantalho e tentava, com uma paciência infinita, convencê-lo, ou pelo menos fazê-lo alterar um pouco as suas opiniões inflexíveis.
À tardinha, em dias claros, Almon, o pescador, costumava sentar em sua cadeira à margem do rio. Ele colocava um velho par de óculos que escorregava pelo nariz em direção ao espesso bigode de pelos brancos, e lia livros. Ou sentava, escrevia e apagava linhas e mais linhas no seu caderno, sempre balbuciando consigo mesmo todo tipo de queixas, opiniões e argumentos. Com o correr dos anos, ele aprendeu a entalhar na madeira, à luz do candeeiro, à noite, belas e variadas figuras de animais e aves, e também criaturas desconhecidas que surgiam da sua imaginação ou lhe apareciam em sonhos. Almon distribuía essas criaturas de madeira entre as crianças da aldeia: Mati ganhou uma gata feita de pinha com filhotes esculpidos em casca de nogueira. Para o pequeno Nimi, Almon entalhou um esquilo, e para Maia, dois grous de pescoço esticado com as asas abertas, prontos para voar.
Somente por essas estatuetas, bem como pelos desenhos feitos pela professora Emanuela na lousa, as crianças conheciam o aspecto de um cachorro, do gato, da borboleta, do peixe, do pintinho, do cabrito e do bezerro. A professora Emanuela também ensinou a algumas crianças as vozes dos animais, vozes que os adultos da aldeia com certeza ainda lembravam da infância, antes que as criaturas desaparecessem, mas as crianças jamais as ouviram em toda a vida.
Maia e Mati quase sabiam de algo que lhes era proibido saber. E ambos tomavam muito cuidado para que ninguém suspeitasse que eles sabiam, ou quase sabiam. Às vezes os dois se encontravam em segredo atrás do depósito de palha abandonado, e ali sentavam e cochichavam uns quinze minutos, e se afastavam por dois caminhos diferentes. Entre todos os adultos da aldeia havia apenas um em quem, talvez, eles pudessem confiar. Ou não? Mais de uma vez, Mati e Maia quase haviam decidido contar o segredo a Danir, o consertador de telhados, que se divertia, às vezes em voz alta, com seus jovens amigos na praça da aldeia à tardinha, conversando sobre coisas proibidas para crianças. E quando bebia vinho com os amigos, até mesmo falava, rindo, de um cavalo, de uma cabra e um cachorro que ele pensava trazer para cá, de alguma das aldeias do vale.
O que teria acontecido se tivessem revelado o segredo a Danir, o consertador de telhados? Ou se decidissem contar justamente para o velho Almon? E se algum dia se atrevessem a penetrar um pouco na escuridão do bosque para tentar esclarecer até que ponto o segredo era verdadeiro, ou se não passava de uma ilusão, um sonho passageiro que mais combinava com Nimi, o potro, do que com eles?
E por enquanto esperavam, sem saber exatamente o que esperavam. Uma vez, à tardinha, cheio de coragem, Mati perguntou ao pai por que as criaturas tinham desaparecido da aldeia. O pai não se apressou em responder. Levantou-se do banco da cozinha, caminhou alguns instantes de uma parede a outra, e então parou e segurou os ombros da Mati. Mas em vez de olhar para o filho, os olhos do pai se perderam numa mancha escura na parede, em cima da porta, de onde tinha caído o reboco por causa da infiltração de umidade, e disse isto: Veja. Mati. É assim. Certa vez aconteceram aqui coisas de todo tipo. Coisas das quais não podemos nos orgulhar. Mas nem todos são culpados. É claro que não somos todos culpados na mesma medida. Fora isso, quem é você para nos julgar? Você ainda é pequeno. Não julgue. Você não tem nenhum direito de julgar adultos. E, afinal, quem exatamente contou a você que um dia existiram animais aqui? Pode ser que sim, quem sabe. E pode ser que nunca tenham existido. Pois já passou muito tempo. Esquecemos, Mati. Esquecemos e pronto. Deixa pra lá. Quem ainda tem força para lembrar? Agora desça ao porão e traga um pouco de batatas, e chega de ficar falando sem parar.
E quando Mati se levantava para sair do aposento, seu pai ainda acrescentou: Preste atenção, por favor, vamos combinar agora, você e eu, que essa conversa não aconteceu. Que mão falamos nada sobre isso.
Os outros pais, quase todos, preferiam negar. Ou contornar o assunto com silêncio. Não falar dele de jeito nenhum.
Principalmente na presença das crianças.
(De repente, nas profundezas do bosque; tradução de Tova Sender)
(Ilustração: Paul Delvaux at the Albertina)
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