domingo, 13 de dezembro de 2020
OLHOS MORTOS DE SONO, de Anton Tchekhov
É noite. A babá Varka, de uns treze anos, embala o berço da criança e vai ronronando, quase imperceptivelmente:
Báiu-báiuchki-baiú,
Vou cantar-te uma canção...
Arde, em frente da imagem, um candeeiro verde. Estende-se, através do quarto, de um canto a outro, uma corda com cueiros e um enorme par de calças negras. O candeeiro projeta no teto uma grande mancha verde, enquanto os cueiros e as calças lançam sombras compridas sobre o fogão, sobre o berço e sobre Varka... Quando a luz começa a bruxulear, a mancha e as sombras animam-se e põem-se em movimento, como tangidas pelo vento. Falta ar. Cheira a sopa de repolho e couro de botas.
A criança chora. Seu pranto há muito já se tornou rouco e cansado, mas continua gritando e não se sabe quando vai parar. Mas Varka está com sono. Seus olhos grudam, a cabeça pende, dói-lhe o pescoço. Não consegue mover as pálpebras, nem os lábios, e tem a impressão de que seu rosto secou e lenhificou-se, que a cabeça ficou pequena como uma cabeça de alfinete.
— Báiu-báiuchki-báiu, — ronrona — vou fazer-te um mingauzinho...
Um grilo ruída no fogão. Atrás da porta, no quarto vizinho, roncam o patrão e o aprendiz Afanássi... O berço range, como se fora um lamento, Varka vai ronronando — e tudo isto funde-se num canto soturno, acalentador, que é tão doce ouvir, quando se vai para a cama. Agora, porém, esse canto apenas irrita e constrange, porque traz um entorpecimento, e dormir é impossível. Se isso, Deus não o permita acontecer, os patrões vão moê-la de pancada.
Bruxuleia o candeeiro. A mancha verde e as sombras põem-se em movimento, entram pelos olhos entrecerrados, imóveis, de Varka, confundem-se, em seu cérebro meio adormecido, em imagens nebulosas. Ela vê nuvens escuras, que se perseguem pelo céu, gritando como aquela criança. Mas eis que soprou o vento, sumiram as nuvens, e Varka vê uma estrada larga de macadame, coberta de lama quase líquida. Sobre aquela estrada, carroças deslocam-se devagar em fila, arrastam-se homens de alforje ao ombro e perpassam sombras estranhas. De ambos os lados, vê-se uma floresta, através do nevoeiro gélido. De repente, os homens de alforje e as sombras caem por terra, na lama semilíquida. "Para que isso?", pergunta Varka. "Dormir, dormir!", respondem-lhe. E eles adormecem profunda e docemente. Pegas e corvos estão pousados sobre os fios telegráficos, gritam como a criança e procuram acordar os homens.
— Báiu-báiuchki-baiú, vou cantar-te uma canção... — ronrona Varka e já se vê em certa isbá escura, abafada.
Revolve-se no chão o seu falecido pai, Iefim Stiepanov. Ela não o vê, mas ouve como rola de dor e geme. Como diz o doente, a hérnia "tomou conta dele". A dor é tão forte que ele não pode, agora, dizer palavra e somente sorve o ar e bate os dentes como se bate num tambor:
— Bu-bu-bu...
Mãe Pielaguéia correu à casa senhorial, para avisar os patrões de que Iefim estava morrendo. Já saiu há muito e está demorando demais. Varka fica deitada sobre o fogão, sem dormir, prestando atenção àquele "bu-bu-bu". Mas, eis que se ouve um carro chegar à isbá. Os patrões enviaram para ver o doente um médico jovem, hóspede deles. O médico entra na isbá. Não se consegue vê-lo no escuro, mas ouve-se como tosse e faz barulho com a fechadura.
— Acendam a luz — diz ele.
— Bu-bu-bu... — responde Iefim.
Pielaguéia corre para o fogão, à procura dos fósforos. Depois de um minuto de silêncio, o médico encontra um no bolso e o acende.
— Nesse instante, paizinho, nesse mesmo instante — diz Pielaguéia e corre para fora, um pouco depois, e volta com um toco de vela.
Iefim está com as faces coradas, brilham-lhe os olhos, e o olhar parece estranhamente penetrante, como se pudesse ver através do médico e das paredes.
— E então? O que foi que você inventou? — pergunta-lhe o médico, inclinando-se sobre ele. — O quê! Faz muito tempo que tem isso?
— Como? Chegou a hora da morte, Vossa Nobreza... Vou deixar o mundo dos vivos...
— Chega de bobagem... Vamos curá-lo!
— Seja como quiser, Vossa Nobreza, agradecemos humildemente, mas a gente compreende... Se já chegou a hora da morte, que se vai fazer?
O médico passa um quarto de hora lidando com Iefim, depois se levanta e diz:
— Não posso fazer mais nada... Você deve ir para o hospital, eles vão te operar lá. Vá agora mesmo... Se, falta! Já é um pouco tarde, no hospital estão todos dormindo, mas não faz mal, vou dar a você um bilhetinho. Está ouvindo?
— Mas, como é que ele pode ir, paizinho?— diz Pielaguéia. — Não temos cavalo.
— Não faz mal, falarei com os patrões, eles vão emprestar um.
O médico sai, apaga-se a vela e escuta-se novamente: "bu-bu-bu..."Depois de meia hora, ouve-se chegar à isbá uma telega pequena, enviada pelos patrões, Iefim apronta-se e vai...
Mas, eis que chega uma clara, luminosa manhã. Pielaguéia foi ao hospital para se informar sobre Iefim. Uma criança chora e Varka ouve alguém cantar, com a sua voz:
— Báiu-báiuchki-baiú, vou cantar-te uma canção...
Volta Pielaguéia, persigna-se e murmura:
— De noite, eles o operaram e. de manhãzinha, entregou a alma a Deus... Que esteja em paz, lá no céu... Dizem que o levamos para lá muito tarde...
Varka vai para o mato e chora lá. Mas, eis que alguém lhe bateu na nuca, com tanta força que sua testa choca-se contra uma bétula. E ergue os olhos e vê. Diante de si, o patrão sapateiro.
— Que está fazendo, porca? A criança chora e você está dormindo.
Puxa-lhe a orelha com força. Ela sacode a cabeça e torna a balançar o berço e a ronronar sua canção. A mancha verde e as sombras das calças e dos cueiros balançam-se, piscam-lhe e, pouco depois, dominam-lhe novamente o cérebro. Vê mais uma vez a estrada de macadame, coberta de lama semilíquida. Os homens de alforje às costas e as sombras estão estirados e dormem profundamente. Vendo-os, Varka sente uma vontade louca de dormir, dormir com toda a alma; mãe Pielaguéia, porém, caminha a seu lado, apressando-a. Vão à cidade pedir emprego.
— Uma esmolinha, pelo amor de Deus! — implora a mãe aos transeuntes. — Por caridade, meus bons senhores!
— Me dá a criança! – responde-lhe uma voz conhecida. — Me dá a criança! — repete a mesma voz, mas agora já abruptamente, com rancor. — Está dormindo, animal?
Varka levanta-se de um salto e, olhando em redor, compreende o que sucedeu: não hás mais estrada, nem Pielaguéia, nem gente, mas, no meio do quarto, está a patroa, que veio amamentar a criança. Enquanto a patroa gorda, de ombros largos, alimenta e acalma a criança, Varka olha-a de pé, esperando que acabe. Além das janelas, o ar já está se tornando azul, empalidecem as sombras e a mancha verde no teto. Não demora a manhã.
— Toma! — diz a patroa, abotoando a camisola sobre o peito. — Está chorando. Deve ser mau-olhado.
Varka apanha a criança, deita-a no berço e recomeça a embalá-la. A mancha verde e as sombras desaparecem pouco a pouco e já não há ninguém que se esgueire para dentro de sua cabeça e enevoe-lhe o cérebro. Mas não passou o sono, um sono terrível! Varka deita a cabeça na beirada do berço e balança-se com todo o corpo, a fim de dominar este sono, mas, apesar de tudo, seus olhos estão grudados e pesa-lhe a cabeça.
— Varka, vai acender o fogão! — ressoa a voz do patrão, atrás da porta.
Quer dizer que já é tempo de se levantar e começar o trabalho. Varka deixa o berço e corre a buscar lenha no depósito. Está contente. Quando se anda ou corre, não se tem tanto sono. Traz lenha, acende o fogão e sente voltar a si o rosto lenhificado e aclararem-se as idéias.
— Varka, vai pôr o samovar! — grita a patroa.
Varka pica a lenha em gravetos, mas apenas tem tempo de acendê-los e enfiá-los no samovar, já se ouve nova ordem:
— Varka, limpa as galochas do patrão!
Senta-se no chão, limpa as galochas e pensa em como seria bom enfiar a cabeça numa galocha grande e funda e cochilar um pouco... De repente, a galocha cresce, fica inchada, enche todo o quarto. Varka deixa cair a escova, mas, no mesmo instante, sacode a cabeça, arregala os olhos, procura fazer com que os objetos não cresçam e não se movam em seus olhos.
— Varka, vai lavar a escada lá fora, que até dá vergonha perante os fregueses.
Varka lava a escada, arruma os quartos, depois acende outro fogão e corre à venda. Há muito serviço, não sobra um instante de lazer.
Mas, não há nada tão difícil como ficar parada, diante da mesa da cozinha, e descascar batata. A cabeça tende a pender sobre a mesa, a batata parece saltitar-lhe nos olhos, a faca tomba-lhe da mão. Ao lado dela, vai andando de um lado para outro a patroa gorda e zangada, de mangas arregaçadas, e fala tão alto que sua voz reboa no ouvido. É outra tortura servir à mesa, um inferno lavar roupa, costurar. Há momentos em que se tem vontade de não ligar a coisa alguma, arremessar-se ao chão e dormir.
Passa o dia. Vendo a escuridão chegar às janelas, Varka aperta com as mãos as têmporas, que tendem a lenhificar-se e sorri, sem saber por quê. A treva acaricia-lhe os olhos que grudam e promete-lhe um sono forte, para daqui a pouco. De noite, chegam visitas.
— Varka, vai pôr o samovar! — grita a patroa.
— O samovar é pequeno e, antes que as visitas se dêem por satisfeitas, torna-se necessário esquentá-lo umas cinco vezes. Depois do chá, Varka passa uma hora inteira, parada, olhando as visitas e esperando ordens.
— Varka, corre para comprar três garrafas de cerveja!
Levanta-se de um salto e procura correr o mais depressa possível, para enxotar o sono.
— Varka, vai buscar vodca! Varka, onde está o saca-rolhas? Varka, limpa os arenques!
Mas, eis que as visitas se foram, finalmente. Apagam-se as luzes, os patrões vão dormir.
— Varka, embala a criança! — ressoa a ordem derradeira. Um grilo trila no fogão. A mancha verde no teto e as sombras das calças e dos cueiros esgueiram-se novamente para os olhos entrecerrados de Varka, bruxuleiam e enevoam-lhe a cabeça.
— Báiu.báiuchki-baiú — ronrona — vou cantar-te uma canção...
Mas a criança grita, extenua-se de tanto berrar. Varka vê novamente o macadame lamacento, os homens de alforje às costas, Pielaguéia, pai Iefim. Compreende tudo, reconhece a todos, mas, através da modorra, somente não consegue compreender aquela força que lhe amarra pés e mãos, que a esmaga e impede-lhe a vida. Olha ao redor, procura aquela força, para se livrar dela, mas não a encontra. Por fim, extenuada, concentra todas as energias e todo o seu olhar, espia para cima, para a mancha verde que bruxuleia e, prestando atenção aos gritos, encontra o inimigo que a impede de viver.
O inimigo é a criança.
Ri. Acha estranho que, até então, não tenha compreendido uma coisa tão simples. A mancha verde, as sombras e o grilo parecem rir igualmente, surpreendidos.
A idéia absurda toma conta de Varka. Ergue-se do tamborete e passeia pelo quarto, sem piscar, um sorriso largo no rosto. Está contente e excitada com a idéia de que, dentro de um instante, vai livrar-se da criança, que a deixa amarrada de pés e mãos... Matar a criança e, depois, dormir, dormir, dormir...
Rindo, pestanejando e ameaçando a mancha verde com os dedos, Varka aproxima-se cautelosa do berço e inclina-se sobre a criança. Depois de estrangulá-la, deita-se rapidamente no chão, ri de alegria porque já pode dormir e, um instante depois, dorme profundamente, como se estivesse morta...
(A dama dos cachorrinhos e outros contos; tradução de Bóris Schnaiderman)
(Ilustração: Peter Fendi)
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