sexta-feira, 25 de dezembro de 2020
O CORPO DOS CONDENADOS, de Michel Foucault
Damiens fora condenado, em 2 de março de 1757, a «fazer confissão pública [amende honorable] diante da porta principal da Igreja de Paris», aonde devia ser levado e conduzido numa «carroça, nu, em camisa, segurando uma tocha de cera acesa com um peso de duas libras»; em seguida, «na dita carroça, na praça de Grève, e num cadafalso que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, a sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com enxofre a arder, e nas partes em que será atenazado serão deitados chumbo derretido, azeite a ferver, piche em fogo, cera e enxofre derretidos, e depois o seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e os seus membros e corpo consumidos no fogo, reduzidos a cinzas, que serão lançadas ao vento»(1).
«Finalmente, foi esquartejado», relata a Gazette d’Amsterdam(2). Esta última operação foi muito longa, pois os cavalos utilizados não estavam habituados à tração; de maneira que, em vez de quatro, foi necessário usar seis; e como se isto não bastasse, para desmembrarem as coxas do desgraçado, tiveram de lhe cortar os nervos e de lhe rasgar as articulações…
«Diz-se que, apesar de ter sido sempre um grande praguejador, não proferiu qualquer blasfémia; apenas as dores excessivas o faziam soltar gritos horríveis e, muitas vezes, repetia: Meu Deus, tende piedade de mim; Jesus, ajuda-me. Os espetadores ficaram muito edificados com a solicitude do cura de São Paulo, que, apesar da idade avançada, não perdia um momento para consolar o paciente.»
E o polícia Bouton relata: «Atearam o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão só ficou um pouco queimada. Em seguida, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, pegou em tenazes de aço preparadas para o efeito, com cerca de um pé e meio de comprimento, e atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa, e passou então às duas partes do músculo do braço direito; depois atenazou-lhe os mamilos. Embora forte e robusto, este executor teve muita dificuldade para arrancar os bocados de carne, que ele tirava com as tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e aquilo que arrancava formava em cada parte uma ferida do tamanho de um escudo de seis libras.
«Após estes suplícios com a tenaz, Damiens, que gritava muito, mas sem praguejar, levantou a cabeça e olhou-se; o mesmo carrasco, com uma colher de ferro, tirou do caldeirão uma droga fervente, que derramou profusamente sobre cada ferida. Em seguida, ataram com cordas menores as cordas destinadas a atrelar os cavalos, sendo estes depois atrelados a cada membro ao longo das coxas, pernas e braços.
«O senhor Le Breton, escrivão, aproximou-se várias vezes do paciente para lhe perguntar se tinha alguma coisa a dizer. Disse que não; a cada tormento, gritava como vemos representados os condenados: “Perdão, meu Deus! Perdão, Senhor.” Apesar de todos estes sofrimentos, levantava de vez em quando a cabeça e olhava-se corajosamente. As cordas muito apertadas pelos homens que puxavam as pontas provocavam-lhe dores inexprimíveis. O senhor Le Breton voltou a aproximar-se dele e perguntou-lhe se queria dizer alguma coisa; disse que não. Vários confessores aproximaram-se e falaram-lhe demoradamente; beijava resignado o crucifixo que lhe apresentavam; estendia os lábios e continuava a dizer: “Perdão, Senhor.”
«Os cavalos deram uma arrancada, cada um deles puxando um membro a direito, cada qual segurado por um carrasco. Um quarto de hora depois, a mesma cerimónia e, por fim, depois de várias tentativas, foram obrigados a puxar os cavalos da seguinte forma: os do braço direito a cabeça, os das coxas rodando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas articulações. Estes puxões foram repetidos várias vezes sem sucesso. Ele levantava a cabeça e olhava-se. Foram obrigados a juntar dois cavalos, frente aos que estavam atrelados às coxas, o que totalizava seis cavalos. Nem assim.
«Por fim, o executor Samson foi dizer ao senhor Le Breton que não havia forma nem esperança de sucesso, e disse-lhe que fosse perguntar às autoridades se queriam que o mandasse cortar aos pedaços. Quando voltou da cidade, o senhor Le Breton ordenou que se fizessem novos esforços, o que foi feito; mas os cavalos recusaram e um dos que estavam atrelados às coxas caiu no chão. Tendo regressado, os confessores falaram-lhe de novo. Ele dizia-lhes (ouvi-o): “Beijem-me, Senhores.” O senhor cura de São Paulo não ousou, mas o senhor de Marsilly passou por baixo da corda do braço esquerdo e beijou-lhe a testa. Os carrascos reuniram-se e Damiens dizia-lhes para não praguejarem, que cumprissem a sua missão, pois não lhes queria mal por isso; rogava-lhes que orassem a Deus por ele e recomendava ao cura de São Paulo que rezasse por ele na primeira missa.
«Após duas ou três tentativas, o executor Samson e aquele que o havia atenazado tiraram cada qual uma faca do bolso e cortaram as coxas do tronco do corpo; os quatro cavalos, com toda a força, arrancaram depois as duas coxas: primeiro a do lado direito e depois a outra; em seguida, fizeram o mesmo aos braços, na zona dos ombros e axilas e nas quatro partes; foi necessário cortar as carnes quase até ao osso; puxando com toda a força, os cavalos arrancaram primeiro o braço direito e depois o outro.
«Depois de retiradas estas quatro partes, os confessores acercaram-se dele para lhe falarem; mas o carrasco disse-lhes que ele estava morto, embora, na verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como se estivesse a falar. Um dos carrascos chegou até a dizer-me, pouco depois, que quando agarraram no tronco do corpo para o atirarem à fogueira, ele ainda estava vivo. Depois de terem sido libertados das cordas dos cavalos, os quatro membros foram atirados para uma fogueira, preparada no recinto em frente do cadafalso; em seguida, o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos, e atearam fogo à palha misturada com a lenha.
«… Cumprindo a sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último pedaço encontrado nas brasas só acabou de ser consumido às dez e meia da noite. Os bocados de carne e o tronco levaram cerca de quatro horas a queimar. Os oficiais, entre os quais eu me encontrava, bem como o meu filho, com arqueiros formados em destacamento, permaneceram no local até perto das onze horas.
«Há quem queira respostas sobre o facto de, no dia seguinte, um cão se ter deitado no local onde se fizera a fogueira; apesar de enxotado várias vezes, o cão voltava sempre. Mas não é difícil de compreender que esse animal achasse esse local mais quente do que outros.»(3)
Três quartos de século depois, eis o regulamento redigido por Léon Faucher «para a Casa dos Jovens detidos em Paris»(4):
Art. 17. O dia dos detidos começará às seis horas da manhã no inverno e às cinco horas no verão. O trabalho durará nove horas por dia em todas as estações. Duas horas por dia serão dedicadas ao ensino. O trabalho e a jornada terminarão às nove horas no inverno e às oito horas no verão.
Art. 18. Levantar. Ao primeiro rufar do tambor, os detidos devem levantar-se e vestir-se em silêncio, enquanto o vigilante abre as portas das celas. Ao segundo rufar, devem estar de pé e fazer a cama. Ao terceiro, põem-se em fila para irem à capela, onde se faz a oração da manhã. Há um intervalo de cinco minutos entre cada rufar.
Art. 19. A oração é feita pelo capelão e segue-se uma leitura moral ou religiosa. Este exercício não deve durar mais do que meia hora.
Art. 20. Trabalho. Às 05h45 no verão e às 06h45 no inverno, os detidos descem para o pátio, onde devem lavar as mãos e a cara, e receber uma primeira distribuição de pão. Logo depois, formam-se por oficinas e dirigem-se para o trabalho, que deve começar às 06h00 no verão e às 07h00 no inverno.
Art. 21. Almoço. Às 10h00, os detidos deixam o trabalho para se dirigirem ao refeitório; vão lavar as mãos nos seus pátios e formar-se por divisões. Depois do almoço, recreio até às 10h40.
Art. 22. Escola. Às 10h40, ao rufar do tambor, os detidos formam filas e entram na escola por divisões. A aula dura duas horas, dedicadas alternadamente à leitura, à escrita, ao desenho linear e ao cálculo.
Art. 23. Às 12h40, os detidos deixam a escola por divisões e dirigem-se aos seus pátios para o recreio. Às 12h55, ao rufar do tambor, voltam a formar-se por oficinas.
Art. 24. Às 13h00, os detidos devem estar nas oficinas: o trabalho dura até às 16h00.
Art. 25. Às 16h00, os detidos deixam as oficinas e vão para os pátios, onde lavam as mãos e se formam por divisões para entrarem no refeitório.
Art. 26. O jantar e o recreio que se segue duram até às 17h00: neste momento, os detidos voltam para as oficinas.
Art. 27. Às 19h00 no verão e às 20h00 no inverno, termina o tempo de trabalho; é feita uma última distribuição de pão nas oficinas. Uma leitura de um quarto de hora, que tem por objeto algumas noções instrutivas ou alguma questão comovente, é feita por um detido ou por um vigilante, seguida da oração da noite.
Art. 28. Às 19h30 no verão e às 20h30 no inverno, os detidos devem encontrar-se nas celas, depois da lavagem das mãos e da inspeção às roupas feita nos pátios; ao primeiro rufar de tambor, devem despir-se e, ao segundo, deitar-se na cama. As portas das celas são fechadas e os vigilantes fazem a ronda pelos corredores para garantir a ordem e o silêncio.
*
Vimos aqui um suplício e um emprego do tempo. Não sancionam os mesmos crimes nem punem o mesmo género de delinquentes. Mas cada um deles define bem um certo estilo penal. Estão separados por menos de um século. É a época em que foi reorganizada, na Europa e nos Estados Unidos, toda a economia do castigo. Época de grandes «escândalos» para a justiça tradicional, época de inúmeros projetos de reformas; nova teoria da lei e do crime, nova justificação moral ou política do direito de punir; abolição das antigas ordenanças, supressão dos costumes; projeto ou redação de códigos «modernos»: Rússia, 1769; Prússia, 1780; Pensilvânia e Toscana, 1786; Áustria, 1788; França, 1791, Ano IV, 1808 e 1810. Para a justiça penal, é uma era nova.
Entre tantas mudanças, destaco uma: o desaparecimento dos suplícios. Atualmente, tende-se um pouco a negligenciá-la; é possível que, no seu tempo, tenha dado lugar a demasiadas declamações; talvez tenha sido demasiado facilmente associada a uma «humanização» que não carecia de análise. De qualquer modo, qual a sua importância se a compararmos com as grandes transformações institucionais, com códigos explícitos e gerais, regras unificadas de procedimento; o júri adotado quase em toda a parte, a definição do caráter essencialmente corretivo da pena, e a tendência, que não para de se acentuar desde o século XIX, para modular os castigos em conformidade com os indivíduos culpados? Castigos menos imediatamente físicos, uma certa moderação na arte de fazer sofrer, um jogo de dores mais subtis, mais despojados do seu fausto visível; será que isto merece uma atenção particular, não sendo, certamente, mais do que o efeito de reformas mais profundas? Contudo, a verdade é que, em poucas décadas, desapareceu o corpo supliciado esquartejado, amputado, simbolicamente marcado no rosto ou nos ombros, exposto vivo ou morto, apresentado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal.
Notas:
(1) Pièces originales et procédures du procès fait à Robert-François Damiens, 1757, t. III, pp. 372-374.
(2) Gazette d’Amsterdam, 1 de abril de 1757.
(3) Citado em A. L. Zevaes, Damiens le régicide, 1937, pp. 201-214.
(4) L. Faucher, De la reforme des prisons, 1838, pp. 274-282.
(Vigiar e punir; tradução de Pedro Elói Duarte)
(Ilustração: the pillory at Charing Cross - London-1809)
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