segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

MINHAS CIRURGIAS FORAM UMA PONTE ENTRE REALIDADES, UM ESPÍRITO PARTICULARIZANDO SEU RECIPIENTE PARA REFLETIR SUA NATUREZA, de Akwaeke Emezi




“No entanto, ser ogbanje é ser classificado como o outro e trazer alteridade para casa de modo a transcender a mais comum ‘dessemelhança’ bifurcada de gênero. Poderíamos mesmo especular que crianças ogbanje ocupam uma terceira categoria de gênero, a do espírito com aparência humana. O gênero é definido desde o nascimento – à semelhança de como os status masculino ou feminino são definidos – por comportamentos especiais da criança e seus adornos. A aparência sexual do ogbanje pode, de fato, ser vista como fingimento – outra promessa que o ogbanje é suscetível de quebrar em sua recusa de proceder de acordo com padrões humanos. 


– Misty Bastian, “Visitantes ocasionais: Narrativas sobre o Ogbanje (Criança Espiritual) na escrita popular da região sul da Nigéria.” 



O robô se chamava da Vinci. 

Ele era delicado, preciso, inserido através de meu umbigo para fatiar meu útero e as trompas de Falópio em pequenas tiras insignificantes, que foram aspiradas de meu corpo. O procedimento possui um nome técnico que enchia minha boca – histerectomia parcial com salpingectomia bilateral robótica. Tive que repeti-lo por cerca de sete vezes no dia da cirurgia, enquanto enfermeiras me traziam, para assinar, formulários em que eu declarava que sabia o que estavam fazendo comigo, mas não me importei. Por anos eu havia esperando pela cirurgia. Em outra vida, eu treinara para ser cirurgiã, dissecando cadáveres e seccionando camadas de dermes e fáscia e músculos com um instrumento de dez lâminas; mas nesta, eu tinha 28 anos e sentia frio, minha pele entorpecida envolta em camisola hospitalar enquanto enfermeiras me cobriam com lençóis aquecidos. Imóvel, a expectativa soava claras badaladas. Eu não podia esperar pelo momento em que me levariam para fora da sala de cirurgia, finalmente estéril. 

Passaram-se cinco anos desde que me conscientizara de que era transgênero, após me ver em um cenário homossexual no Brooklyn, o que me mostrou tantas outras maneiras de ser, como jamais pensara. Vinda de Massachutetts, deixando para trás bisturis e cavalos pendendo do teto do depósito de uma escola veterinária, passando as noites em cabarés escarlates e casas de show e um curto período como drag king. Cercada por um mundo novo ao meu redor, o desconforto que se espalhara acre e inadequado por meu corpo, por anos e anos, finalmente tinha um nome – disforia de gênero. Veio como uma espécie de alívio: se soubesse o que era, eu teria sabido como lidar com ele. 

Minha melhor amiga Raquel veio para Nova York para a histerectomia. Após a extirpação, ela abriu uma cama dobrável, enquanto eu pedia waffles ao serviço de quarto. Quando a enfermeira entrou, elas tentaram me levantar, mas a dor foi como uma maré selvagem atingindo-me. Eu vacilei, quase caí, de modo que elas me puseram de volta na cama e aumentaram a dosagem de meus analgésicos. Eu prendi o fôlego enquanto Raquel e eu trocamos olhares alarmados, sua mão aquecida prendendo a minha. 

“Não pensei que seria tão ruim” consegui dizer. 

“Nem eu”, disse ela. 

A enfermeira me lançou um rápido e incrédulo olhar. “Um órgão inteiro de seu corpo foi removido”, ressaltou. “É um tipo de cirurgia muito invasivo”. 

Saí da cama poucas horas depois, caminhando devagar pelo hospital com meu suporte rolante de soro às minhas costas, a palma da minha mão deslizando pelas paredes e a enfermeira ao meu lado. No outro dia, Raquel trouxe-me para meu apartamento situado no sótão. Quase toda a minha recuperação foi feita ali, em uma poltrona reclinável cor de musgo úmido. Ela era dotada de um suporte de madeira na lateral que, pressionado, abria a dobradiça e levantava o suporte dos pés com um leve solavanco, alongando a poltrona. Nela, eu dormi por uma semana, pois tinha dificuldade de me levantar ou dobrar-me em ângulos agudos, e minha cama era muito próxima do chão. Eu estava cheia de pontos e hidrocodona, e meus intestinos haviam sido reacomodados. Não foi minha primeira mutilação, mas foi uma das melhores. 

Um ogbanje é um igbo nascido dentro do corpo humano, uma espécie de impostor maligno, cujo objetivo é atormentar a mãe humana morrendo de súbito apenas para retornar no próximo filho e fazer tudo de novo. Eles vêm e vão. Eles nunca estão realmente aqui – se você é algo que nasceu e morreu, você é uma coisa morta mesmo enquanto está viva. A ontologia igbo explica por que cada um de nós é, de alguma forma, um ciclo de reencarnação. – Você é um ancestral, você se tornará um ancestral, a recorrência continuará no interior de uma linhagem. No entanto, o ogbanje são intrusos nesse ciclo, desvios indesejáveis. Eles não se originam na linhagem; eles vêm de lugar nenhum. Assim, é importante para um ogbange nunca se reproduzir: se o fizesse, isso contribuiria para uma linhagem, e quando ela se extinguisse, seu espírito se juntaria àquelas dos humanos, participando de sua recorrência de reencarnações. 

Remover o útero é uma maneira eficiente de fazer com que isso nunca ocorra. 

Ao longo do período em que meu gênero se impôs de diferentes maneiras desde minha infância, uma de suas mais fortes características foi a de uma infindável e violenta aversão à reprodução, tendo um corpo que fora marcado por seu potencial reprodutivo – um útero para carregar crianças, seios cheios para alimentá-los. Minha primeira cirurgia foi um procedimento laboratorial realizado dois anos antes que eu me mudasse para o Brooklyn, uma redução de seios; alguma gordura removida de meu tórax, algumas glândulas, alguma pele, nada relevante. Foi necessária uma carta de meu terapeuta, provando que eu era sã. 

“Nunca tive notícia de alguém assim”, disse-me o cirurgião. “Macho para fêmea, fêmea para macho, tudo bem. Mas essa coisa no entremeio?” Rangi os dentes em um sorriso e lhe entreguei a carta, junto com as imagens impressas do tórax que eu desejava. Era o que me convinha, um tórax que não se moveria muito, não balançaria com inexatidão pendular ou deixar-me quase sem fôlego por minhas costelas se encontrarem encapsuladas no esmagador aperto de uma faixa torácica todo dia. Paguei-lhe com US$ 10.000 de meu magro empréstimo escolar e tentei não me enraivecer diante das dificuldades. Eu teria que superá-las. Se eu tivesse solicitado um aumento dos seios estaria tudo bem, mas desejá-los menores sem sofrer de dor nas costas foi considerado suficientemente ridículo pedir aprovação de um terapeuta. Durante minha visita pós-operatória, o cirurgião queixou-se de ter gastado tanto tempo numa consulta, como foi o meu caso. Foram poucas consultas de talvez 30 minutos. 

Minhas cicatrizes hipertrofiaram, deixando queloides marrom-brilhante e rios rasos e lustrosos em meu tórax. Por vezes, quando eu me sentia como se não fosse suficientemente trans, eu os observaria para lembrar-me de que eu escolhera modificar meu corpo e embora a distrofia e a cirurgia não sejam pré-requisitos para tornar-se trans, as cicatrizes ainda serviram como uma reflexão fundamental de minha própria certeza. Eu estava segura daquilo em que estava transformando meu corpo, mas estava claro para mim que o gênero em que eu fora criada era incorreto – eu nunca fui uma mulher. Após a primeira cirurgia, minha depressão aumentou consideravelmente. Era uma conexão que eu não havia levado em conta antes, a de que minha distrofia estava afetando minha saúde mental – a tentativa de suicídio à qual sobrevivi quatro meses antes da cirurgia. A escolha de finalmente modificar meu corpo pareceu a melhor solução, em grande parte porque outras pessoas haviam feito o mesmo. O aviso foi quase infeccioso, mas eu era a pessoa que tinha que viver neste corpo; eu era a pessoa que sofria dentro dele. A redução foi simplesmente um procedimento necessário, algo que me ajudou a abandonar o desejo de morrer, algo que tornou a existência um pouco mais fácil. 

Ainda assim, havia um forte sentimento de transgressão no que eu estava fazendo, do que eu não podia escapar, especialmente por ser nigeriana. Era muitíssimo fácil estar em sintonia com nossas comunidades e ouvir as vozes carregadas de desgosto, dizendo que o que eu havia feito fora uma mutilação, que Deus havia me feito de um modo por alguma razão e que eu não tinha nenhum direito de dizer ou fazer de outro modo, que eu estava mutilando a mim mesma. Havia um ideal ao qual meu corpo deveria se conformar, e eu estava me afastando dele ao fazer a cirurgia. Eu o estava rejeitando como central e escolhendo algo diferente: um mundo em que o próprio desvio era o ideal. Eu o escolhi prontamente. Eu nunca me importei em ser uma coisa mutilada. 

Se ogbanje significa uma sobreposição de realidades – um espírito que parece ser inacreditavelmente convincente como ser humano, então com o que ele se parece para que alguém sinta a distrofia de gênero e busque uma cirurgia para resolvê-la? Nossa linguagem em torno de identidade de gênero é com frequência tão ocidental, como cruzá-la com realidades não-ocidentais? Por exemplo, há um vocábulo para a distrofia experimentada por espíritos que veem a si mesmos na forma humana? Era inevitável que eu seria levada a essas sobreposições, pois eu vivo lá, habitando realidades simultâneas que são geralmente consideradas mutuamente exclusivas. 

A possibilidade de que eu fosse um(a) ogbanje acorreu-me ao mesmo tempo em que me dei conta de que era trans, mas levou um tempo até que eu entrasse em conflito com esses dois mundos. Eu suprimi o primeiro por alguns anos, pois grande parte de minha educação foi de formação científica e toda ela era ocidentalizada – era difícil para mim ver um mundo espiritual Igbo da mesma maneira, senão mais válido. O legado do colonialismo sempre nos ensinara que tal mundo não era real, que isso não passava de fetiche e superstição. Quando finalmente eu aceitei sua validade, eu revi o que ele significaria para meu gênero. Para começar, ogbanje teria um gênero. Gênero é, apesar de tudo, uma coisa tão humana. 

No entanto, ser trans significa ser de qualquer gênero diferente daquele que nos é legado no nascimento. Se ogbanje possuem ou não possuem eles próprios um gênero isso não tinha a menor importância, ainda são considerados uma categoria distinta, de modo que talvez minha transição não estivesse absolutamente localizada em categorias humanas. Ao contrário, as cirurgias foram uma ponte entre realidades, um movimento do ser caracterizada como feminina a ser caracterizada por mim mesma como ogbanje; um espírito adequando seu recipiente para que ele reflita sua natureza. 

É consideravelmente difícil convencer um médico a remover um órgão saudável, mesmo se nossa integridade dependa de sua ausência, especialmente se o órgão é reprodutivo e eles pensem que você é uma mulher. 

Eu não tinha uma carta para meu útero – foi extremamente difícil encontrar um terapeuta com experiência com pacientes não-binários trans e eu não tinha nenhum dinheiro. Mas eu pensei que talvez eu pudesse economizá-lo algum dia, de modo que marquei consultas com ginecologistas para discutir minhas opções. Escolhi não revelar meu gênero (ou sua falta), mas em vez disso expressar meu desejo de fazer a cirurgia como uma escolha eletiva, apenas porque eu não queria ter filhos. Os médicos me receberam com resistência e tênue desdém. 

“E se você mudar de ideia?”, perguntavam-me, em seguidas salas de exame, metal e vidro e jalecos brancos, todos se esfumando atrás de uma mesma porta fechada. Eu tive que voltar mil vezes, mas eu não reclamei pois aquelas pessoas tinham o que eu precisava – mãos enluvadas para me abrir e jogar meu útero no plástico brilhante de lixo biológico, ou onde quer que fosse que órgãos indesejáveis fossem lançados. Minha disforia havia dado um nó apertado em meu corpo, desde quando eu não tinha ideia de como eu pagaria outra cirurgia ou, nesse ritmo, mesmo encontrar um médico que quisesse realizá-la. Ela não seria tão severa como antes de minha primeira cirurgia, mas ainda estava lá – um lembrete tão vermelho que era quase preto, mostrando-se a cada mês. Eu não conseguia descansar com facilidade sabendo que ainda havia uma possibilidade de ficar grávida, de modo que tentei um DIU. Quando o inseriram, eu gritei de dor, uma dor excruciante como de algo atravessando o colo do útero. Nos meses seguintes, eu sangrei muito, em ultra tampões e absorventes noturnos, transbordantes copos menstruais. Por fim, um ultrassom mostrou que o DIU estava fora de posição, de modo que o removeram. Senti como se meu corpo o tivesse cuspido fora, um lembrete de que nada menor que uma incisão seria suficiente. Deixei o Brooklyn e me mudei para a região norte da cidade, para o apartamento do sótão com a poltrona reclinável. Ocasionalmente, eu teria episódios de dor lancinante na pelve, que me imobilizariam por horas na cama. Após poucas semanas de meu segundo inverno lá, fui a um urologista, pensando que havia alguma coisa de errado com minha bexiga. Os exames se prolongaram por toda a tarde; depois ele me chamou em seu consultório para me dizer que havia 84 por cento de certeza de que eu tinha endometriose. “Podemos colocá-la em controle de natalidade”, sugeriu. Recusei. 

“Por que não?” perguntou, e sem mais nem menos o ar em seu consultório parou de se mover. Eu podia sentir meus nervos retinindo, o gosto familiar do momento logo antes de cada e toda revelação como uma película amarga sobre minha língua. 

É mais fácil quando estou sozinha. Meus amigos e a família sabem que não sou mulher – disse-lhes – mas alguns continuam achando que sou, de qualquer forma. Eu ignoro, pois às vezes é mais fácil não ligar, aceitar o isolamento de ser invisível como um lugar seguro. Eu existo separada do inexato conceito de gênero binário; sem a estreiteza dessas categorias, eu nem mesmo tenho que pensar sobre meu gênero. Só, apenas existo eu, quando me vejo com clareza. 

No entanto, falar com outras pessoas exige escolher a quem e sobre o que devo falar para que possam entender. “Sou trans”, explico. “E fiz uma cirurgia de redução dos seios, para que os hormônios revertam isso”. 

O médico assentiu enquanto meu estômago revirava. “Tive alguns pacientes trans”, disse. “Poderíamos fazer uma histerectomia, se é isso o que você quer. Seu plano de saúde cobre.” 

Fitei-o, a esperança e a descrença entorpecendo minhas mãos. Estava horrorizada diante da possibilidade de ele dizer algo transfóbico, que eu teria que lidar com a violência da dilaceração de minha pele, uma bala que eu não agendara quando me apresentei a ele naquela tarde. Em vez disso, quando deixei o consultório, eu tinha uma data de cirurgia para dali a duas semanas. 

Ele restaurou meu umbigo durante a histerectomia, abrindo-o e depois introduzindo-o de volta ao meu abdome em sua nova configuração. Em minha consulta após a operação, ele chamou a enfermeira para gabar-se de como ele cicatrizara. Havia apenas duas pequenas cicatrizes, cada uma com pouco menos de um centímetro, nas partes superior e inferior de meu umbigo. Liguei para minha mãe uma ou duas semanas após a cirurgia e lhe disse o que tinha feito, embora eu soubesse que ela não fosse entender. Ela suspirou com a resignação de uma mãe que tentara impedir sua criança e falhara. “Você poderia tentar não cortar mais nenhuma parte de seu corpo?”, ela disse, e eu ri tanto que meus pontos doeram. 

Poucos dias depois eu fui para sua casa para o Natal, atendentes empurrando-me pelos dois aeroportos em uma cadeira de rodas, fraca mas leve. O restante de minha recuperação foi monótono. Após 17 anos e aproximadamente 200 menstruações, deslizei com facilidade para minha vida nova e incruenta. Há uma história vívida de mutilação com ogbanje: quando morto ele pode ser cortado, cicatrizado para impedir que volte inapercebido. O ogbanje é também um bando, eles se separam uns dos outros quando nascem, mas retornam ao bando quando morrem. Gosto de pensar que há uma espécie de memória compartilhada ou geracional dentro daquilo; estar morto ou mutilado não são coisas estranhas a nenhum de nós, não temos medo nem de um nem do outro. 

Tem sido penoso refazer-me a cada vez que aprendo mais sobre quem ou o que sou – dar os passos que cada restauração exige, arcar com os custos. Por vezes, esses custos são desgastados em seu coração, como quando as pessoas a quem você ama não mais têm espaço em sua visão de mundo para você. Noutras horas, é o corpo que as suporta, em criações e modificações. Por ora, cheguei à conclusão de que a mutilação como uma passagem da inexatidão ao alinhamento, e de cicatrizes como forma de adorno que celebra essa passagem. Os queloides em meu tórax e a pequenas linhas que extravasam de meu umbigo funcionam como lembretes – que mesmo quando significaram sair de uma realidade para ser absorvida por outra, eu continuei escolhendo por mover-me em minha própria direção. 



(Tradução de Wagner Mourão Brasil) 



(Ilustração: Mbonu Emerem - ogbanje - the spirit child)



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