quinta-feira, 19 de novembro de 2020
VOU VER A LÚCIA!, de José de Alencar
A corte tem mil seduções que arrebatam um provinciano aos seus hábitos, e o atordoam e preocupam tanto, que só ao cabo de algum tempo o restituem à posse de si mesmo e ao livre uso de sua pessoa.
Assim me aconteceu. Reuniões, teatros, apresentações às notabilidades políticas, literárias e financeiras de um e outro sexo; passeios aos arrabaldes; visitas de cerimônia e jantares obrigados; tudo isto encheu o primeiro mês de minha estada no Rio de Janeiro. Depois desse tributo pago à novidade, conquistei os foros de cortesão e o direito de aborrecer-me à vontade.
Uma bela manhã, pois, estava na crítica posição de um homem que não sabe o que fazer. Li os anúncios dos jornais; escrevi à minha família; participei a minha chegada aos amigos; e por fim ainda me achei com uma sobra de tempo que embaraçava-me realmente. Acendi o charuto; e através da fumaça azulada, lancei uma vista pelos dias decorridos. « Lembrar-se é viver outra vez» , diz o poeta.
De repente caiu-me um nome da memória. Achara em que empregar a manhã.
— Vou ver a Lúcia.
Depois da festa da Glória tinha-a encontrado algumas vezes, mas sem lhe falar. Lembro-me de uma manhã em casa do Desmarais. Lúcia passava, parou na vidraça e entrou para comprar algumas perfumarias; o seu vestido roçara por mim; mas ela não me olhou, nem pareceu ter-me visto. Essa circunstância, e talvez um resquício do desgosto que deixara a minha decepção, tiraram-me a vontade de a cumprimentar; contudo conservei o chapéu na mão todo tempo que esteve na loja. Quando escolhia alguns vidros de extratos, mostraram-lhe um que ela repeliu com um gesto vivo e um sorriso irônico:
— Flor de laranja!. . . É muito puro para mim!
Ao sair, dobrou o seu talhe flexível inclinando-se vivamente para o meu lado, enquanto a mão ligeira roçava os amplos folhos da seda que rugia arrastando. Esse movimento podia ser uma profunda cortesia disfarçada com certo acanhamento; e podia não passar de um gesto habitual de faceirice feminina.
Outra vez estava no teatro; tinha ido fazer minha visita a um camarote durante o último intervalo, e conversando reparei na insistência com que me examinava um binóculo da segunda ordem. Da pessoa que o fitava só via a mão pequena e a fronte pura, que denunciavam uma mulher. Depois, ao levantar o pano, vi Lúcia naquela direção, e pareceu-me reconhecer nela a indiscreta luva cor de pérola e o curioso instrumento que me perseguira com o seu exame.
Eis quais eram as minhas relações com essa moça; e confesso que vestindo-me sentia algumas apreensões sobre a recepção que me esperava; não há nada que mais vexe do que a posição de um homem solicitando da memória rebelde da pessoa a quem se dirige um reconhecimento tardio.
Não obstante, poucos minutos depois subia as escadas de Lúcia, e entrava numa bela sala decorada e mobiliada com mais elegância do que riqueza. Ela mostrou não me reconhecer imediatamente; mas apenas falei-lhe do nosso primeiro encontro na Rua das Mangueiras, sorriu e fez-me o mais amável acolhimento. Conversamos muito tempo sobre mil futilidades, que nos ocorreram; e eu tive ocasião de notar a simplicidade e a graça natural com que se exprimia.
O que porém continuava a surpreender-me ao último ponto, era o casto e ingênuo perfume que respirava de toda a sua pessoa. Uma ocasião, sentados no sofá, como estávamos, a gola de seu roupão azul abriu-se com um movimento involuntário, deixando ver o contorno nascente de um seio branco e puro, que o meu olhar ávido devorou com ardente voluptuosidade. Acompanhando a direção desse olhar, ela enrubesceu como uma menina e fechou o roupão; mas doce e brandamente, sem nenhuma afetação pretensiosa.
Tal é a força mística do pudor, que o homem o mais ousado, desde que tem no coração o instinto da delicadeza, não se anima a amarrotar bruscamente esse véu sutil que resguarda a fraqueza da mulher. Se a resistência irrita-lhe o desejo, o enleio casto, a leve rubescência que veste a beleza como de um santo esplendor, influem mágico respeito. Isto, quando se ama; quando a atração irresistível da alma emudece os escrúpulos e as suscetibilidades. O que não será pois quando apenas um desejo ou um capricho passageiro nos excita? Então, ousar é mais do que uma ofensa; é um insulto cruel.
Se eu amasse essa mulher, que via pela terceira ou quarta vez, teria certamente a coragem de falar-lhe do que sentia; se quisesse fingir um amor degradante, acharia força para mentir; mas tinha apenas sede de prazer; fazia dessa moca uma ideia talvez falsa; e receava seriamente que uma frase minha lhe doesse tanto mais, quanto ela não tinha nem o direito de indignar-se, nem o consolo que deve dar a consciência de uma virtude rígida.
Quando me lembrava das palavras que lhe tinha ouvido na Glória, do modo por que Sá a tratara e de outras circunstâncias, como do seu isolamento a par do luxo que ostentava, tudo me parecia claro; mas se me voltava para aquela fisionomia doce e calma, perfumada com uns longes de melancolia; se encontrava o seu olhar límpido e sereno; se via o gesto quase infantil, o sorriso meigo e a atitude singela e modesta, o meu pensamento impregnado de desejos lascivos se depurava de repente, como o ar se depura com as brisas do mar que lavam as exalações da terra.
E continuávamos a conversar tranquilamente de mil coisas, menos daquela que me tinha levado à sua casa. Não posso repetir-lhe todo esse longo diálogo; mal conseguirei recompor com as minhas lembranças algum fragmento dele.
— Há muito tempo que está no Rio de Janeiro? perguntou-me Lúcia depois de uma pausa.
— Há pouco mais de um mês. Cheguei justamente no dia em que a encontrei pela primeira vez.
— Ah! no mesmo dia?...
Acabava de desembarcar.
— Mas naquela tarde, lembro-me... o senhor estava fumando. Se quer, pode acender o seu charuto; não me incomoda.
Recusei por delicadeza.
— Veio passear? Demora-se pouco naturalmente.
— Vim ver a corte; e depois talvez me resolva a ficar.
— De uma vez?
— Se achar meio de estabelecer-me. Sou pobre; preciso fazer uma carreira; e a corte oferece-me outros recursos, que não encontro em Pernambuco.
— Ah! é filho de Pernambuco?... Que bonita cidade que é o Recife! Como são lindos aqueles arrabaldes da Madalena, da Ponta do Uchoa e da Soledade!..
— Já esteve no Recife! Em que época?
— Faz dois anos.
— Em 1853... Devo tê-la visto alguma vez! Nesse tempo era eu estudante e conhecia todas as moças bonitas da cidade.
— Então já vê que não me podia conhecer! Demais, estive apenas uma tarde. O vapor pouco se demorou.
— Donde vinha?
— Da Europa. Apenas desembarquei, meti-me num carro, e fui passear. Vinte dias embarcada! Sabe o que é isto? Tinha saudade das árvores e dos campos de minha terra, que eu não via há oito meses! Que passeios encantadores por aquelas quintas cobertas de mangueiras, que bordam as margens do rio! Havia uma sobretudo na Soledade, que me encantou: era uma casinha muito alva que aparecia no fundo de uma rua de arvoredo sombrio; mas tudo tão gracioso, tão bem arranjado que parecia uma pintura. Duas senhoras, uma já de idade, que me pareceu a mãe, e outra ainda mocinha e muito bonita, passeavam pela quinta colhendo flores e frutas. Mandei parar o carro, e fiquei olhando com inveja para a casa e as duas senhoras, pensando na vida tranquila e sossegada que se devia viver naquele retiro.
— A senhora me faz saudades de minha terra. Lembrei-me de minha casa, e das tardes em que passeava assim por aqueles sítios com minha mãe e minha irmã.
— O senhor tem mãe e irmã! Como deve ser feliz! disse Lúcia com sentimento.
— Quem é que não tem uma irmã! respondi-lhe sorrindo. E minha mãe ainda é muito moça para que eu tivesse a desgraça de a haver perdido.
— Perdi a minha muito cedo e fiquei só no mundo; por isso invejo a felicidade daqueles que têm uma família. Há de ser tão bom a gente sentir-se amada sem interesse!
Depois de uma hora de conversa despedi-me, e voltei sem ter arriscado um gesto ou uma palavra duvidosa.
— Já vai? disse Lúcia vendo-me tomar o chapéu.
— Não posso demorar-me mais tempo. Se a minha visita não lhe aborrece, voltarei outro dia.
— Deu-me tanto prazer! Até amanhã; sim?
E apertou-me a mão cordialmente.
Na rua achei-me tão ridículo com os meus vinte e cinco anos e os meus escrúpulos extravagantes, que estive para voltar. Como podia eu temer um engano, depois do que sabia dessa mulher?
Encontrei-me à tarde com Sá no Hotel da Europa, onde costumava jantar. Estava ainda muito viva a lembrança do que me sucedera naquela manhã para não aproveitar a ocasião de falar-lhe a respeito, tendo porém o cuidado de ocultar o papel que havia representado na pequena comédia.
— Tens visto a Lúcia? perguntei-lhe.
— Não; há muito tempo que não a encontro.
— Tu a conheces bem, Sá?
— Ora! Intimamente!
— Tens toda a certeza de que ela seja o que me disseste na Glória?
— E esta! Pois duvidas?. . . Vá à casa dela; já te apresentei.
— Supunha que fosse apenas uma dessas mocas fáceis, a quem contudo é preciso fazer a corte por algum tempo.
— O tempo de abrir a carteira. Andas no mundo da lua, Paulo. Queres saber como se faz a corte à Lúcia?... Dando-lhe uma pulseira de brilhante, ou abrindo-lhe um crédito no Wallerstein.
— Não é sem razão que te pergunto isto; encontrei-a há dias, e a sua conversa, os seus modos, pareceram-me tão sérios!
— Por que lhe falaste nesse tom? Naturalmente a trataste por senhora como da primeira vez; e lhe fizeste duas ou três barretadas. Essas borboletas são como as outras, Paulo; quando lhes dão asas, voam, e é bem difícil então apanhá-las. O verdadeiro, acredita-me, é deixá-las arrastarem-se pelo chão no estado de larvas. A Lúcia é a mais alegre companheira que pode haver para uma noite, ou mesmo alguns dias de extravagância.
Acabamos de jantar e não tocamos mais no assunto.
(Lucíola)
(Ilustração: Kiéra Malone)
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