sábado, 15 de agosto de 2020

NOITE DE INSÔNIA EM PIRAÍ, MAIO DE 1874, de Mary del Priore

 


O que perdemos, perdemos. Um amigo repetiu, para mim, uma coisa dita por um grande escritor: “Viva o máximo que puder. É um erro não fazê-lo”. Acho que não vivi, para não revelar muito sobre mim mesmo. E nesse momento, é de mim que tento fugir. De tantas lembranças. Como, mesmo, conheci Nicota? Todos conheciam os netos do barão. Muitas vezes fui levar encomendas de mãe para sinhá Ana Clara, em época de festa. Mãe fazia balas de estalo. O barão as punha no bolso e distribuía, a mancheias, aos convidados. Adoçava os ânimos de qualquer um. Na fazenda, depois de pedir a bênção ao sinhô e à sinhá, eu corria para ajudar os meninos a fazer armadilha para caçar guaiamus na beira do rio. Ou a preparar visgo com leite de gameleira para pegar passarinho. 

Ainda lembro. As canoas silenciosas passando, a pranchada do remo na água. Lustroso, o rio gorgolejava. “Não se bebe água do Paraíba”, mãe dizia… Catávamos pelo chão os araçás roídos pelos bem-te-vis. Aonde a água não chegava, as pedrinhas brilhavam ao sol. E Nicota menina, atrás da gente, suspendia a saia para pular os buracos, cheios de lama. Toda de branco, os cabelos compridos, um pezinho de boneca enfiado nas botinas. “Pega a saracura…”, ela pedia. Eu pegava. “Bicho bonito da perna cor de violeta. Bica?” “Não bica.” Os cabelos de Nicota. O cheiro de menina rica de Nicota. Não catingava a picumã, como tantas outras que eu conhecia. Na volta para a fazenda, eu cuidava: “Menina, olha a cobra”. Ela nem se assustava. 

Depois, um dia, Nicota me honrou. Sorriu só para mim, olhando nos meus olhos. Eu, na multidão. Vergonha: o calção só cobria dos joelhos para cima. Os sapatos apertavam. Mãe de chapéu, vestido preto de gorgorão duro e recendendo a óleo de babosa que passou nos seus e nos meus cabelos. Era dia de procissão, festa de Santa Edwiges. Nicota saiu de anjo com capela de flores na cabeça, asas de organdi e roupa de rendas. Padre Breves ia fazer sermão. Na igreja, tinha briga por lugar. A cidade enchia. O povo vinha da roça e se reunia na porta principal. A orquestra ensaiava: a clarineta, o bombo, os pratos. A volta da praça, as barracas vendiam queijada e suco de cana. O sino repicou anunciando a partida do préstito. As andorinhas fugiram em desordem. As crianças se perfilaram. O hino começou desafinado. Nicota então sorriu para mim, um sorriso de dentes miúdos e brancos. Eu, feioso, mulato e pobre. Os foguetes cruzaram o céu, enquanto os meninos corriam para pegar as flechas. Mas eu fiquei ali… encantado. 

Passaram-se alguns anos e Nicota moça eu encontrei numa festa da Botada na fazenda. Era o fim de um mês de agosto e padre Breves foi benzer o canavial. Sem que essa cerimônia fosse realizada, ninguém, homem livre ou escravo, ia começar sua tarefa. Se algum acidente sobreviesse, seria explicado como justo castigo de céu. Falta de fé, de observância religiosa. Os ombros de Nicota… belíssimos. Branquíssimos e pequeníssimos. O encanto com que os sacudia ao dançar o lundu, ligeiramente febril. 

A casa de vivenda, a do engenho, os paióis, as senzalas foram caiadas e limpas. A escravatura recebeu timões de baeta azul e roupa de algodão para o gasto do ano. Quinze dias antes da moagem, cortaram-se as canas que chegavam em carros de bois e ficavam sob alpendres ou em depósitos especiais. De véspera, enfeitaram a casa da fazenda e mais construções. No terreiro, as bandeiras flutuavam nas extremidades de bambus verdes. Matou-se um boi para o banquete dos senhores, e carneiros e galinhas para a refeição dos escravos. Os compadres e amigos, que tinham vindo de longe com suas famílias, chegaram um dia antes. Foreiros ajudavam escravos nos preparativos da música e dos fogos. 

Nicota reconheceu meu rosto. Percebendo minha perplexidade, correu para desfazê-la por meio de uma delicadeza toda sua. Dirigiu-me cumprimentos. A tarefa de entretê-la com alguma conversa, porém, me intimidou. Eu dizia-lhe o nome com ar sério… Eu, em geral tão corajoso com as meninas morenas e de condição humilde de Piraí. Tentava esconder que ela possuía um “admirador”. Virei e revirei palavras buscando fazer um verso, uma quadra. Nada. 

No dia da Botada, visitantes acorriam sobre carros de bois, amontoados sob toldos de esteiras ou de chitão lavrado. Muitos vinham a pé, descalços, trazendo os sapatos ao ombro. Fui um deles. Ouvia-se o engenho moendo com prazer. Nesse dia, com exceção da gente envolvida com a festa, ninguém mais trabalhava. Teve ceia. Os escravos batucaram depois do jantar. Os foreiros cantaram e dançaram. As músicas faziam referência ao corte da cana, à moagem e ao preparo do açúcar. O barão e os outros fazendeiros da região presentearam as crioulas e mulatas de estimação com cortes de chita ou de cassa, fios de corais e brincos de ouro. 

Padre Breves veio e disse a missa. Depois, a família, os convidados e os escravos foram para o engenho. O feitor e muitos homens livres e negros estavam ao pé da máquina… Duas velas acesas foram colocadas perto dos cilindros sobre a plataforma que sustenta as canas, e foi disposta entre elas uma imagem de Nosso Senhor na cruz. O padre tomou seu breviário e leu várias orações e, em certos momentos, com um ramo de arbusto, preparado para esse gesto e mergulhado na água benta, aspergiu o engenho e os presentes. Sinhá Ana Clara, com Nicota e suas irmãs, além das mucamas enfeitadas, trouxeram os primeiros feixes de cana, envoltos em fitas coloridas, para serem bentos e passados na moenda. Nicota ria muito, fazendo caretas para tia Maria Gata. 

Correu bebida. Dormi no paiol. Acordei no meio da noite. O céu, um tapete de estrelas. A lua ia alta. Dos arbustos vinham estalidos de grilos. Na mata, tudo parecia repousar. Sem fazer barulho, caminhei de manso até o laranjal. Que vi? Nicota, a mais bela da noite, branca, esguia, cor de açúcar. A camisa levantada cobria-lhe a cabeça. Que vi? Nicota, de cócoras, estrumava o terreno. Corri para longe para não ver mais. Nunca esqueci. Parecia que a lua tinha caído ali. 



(Beije-me onde o sol não alcança



(Ilustração: Johann Moritz Rugendas - lundu, 1835) 

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