quarta-feira, 12 de junho de 2019
UMA MULHER BAIXINHA, de Franz Kafka
É uma mulher baixinha; bem esguia de nascença, mesmo assim seu corpete é fortemente amarrado; eu a vejo sempre no mesmo vestido, ele é de tecido cinzento-amarelado, de certo modo um tom de madeira, e é um pouco provido de borlas ou apliques em forma de botão que são da mesma cor; ela está sempre sem chapéu, seus cabelos louro-embotados são lisos e não exatamente desajeitados, mas mantidos bem soltos. Embora tenha o corpete sempre bem amarrado, ela se movimenta com desenvoltura, e inclusive exagera nessa mobilidade, gosta de botar as mãos à cintura e mover o tronco para o lado com um meneio de modo surpreendentemente rápido. Sou capaz de reproduzir a impressão que sua mão causa em mim apenas se digo que jamais vi uma mão na qual os dedos estivessem separados uns dos outros de maneira tão aguda como estão na dela; ainda assim, sua mão não apresenta qualquer estranheza anatômica, é uma mão completamente normal.
Eis que essa mulher baixinha está muito insatisfeita comigo, sempre tem algo a reclamar de mim, sempre lhe acontece uma injustiça por minha causa, eu a incomodo sem parar; caso se pudesse julgar a vida em suas partes mais mínimas e cada um desses pedacinhos separadamente, com certeza cada um dos pedacinhos da minha vida seria uma amolação para ela. Pensei muitas vezes sobre o porquê de eu a amolar tanto assim; pode ser que tudo em mim se contraponha a seu senso de beleza, sua noção de justiça, seus hábitos, suas tradições, suas esperanças; existem naturezas contraditórias como a minha e a dela, mas por que ela sofre tanto por causa disso? Na verdade, nem sequer existe uma relação entre nós que a obrigue a me suportar. Ela precisaria apenas se decidir a me ver como um completo estranho, que, no fundo, também sou, de modo que nem me defenderia contra uma decisão dessas, mas inclusive a saudaria; ela só precisaria se decidir a esquecer da minha existência, que eu, aliás, jamais a obriguei e de modo algum a obrigaria a perceber – e, ao que tudo indica, esse sofrimento todo teria passado. Nisso, inclusive, não dou a mínima para mim mesmo e para o fato de que o comportamento dela naturalmente também me é embaraçoso, não dou bola porque no fundo reconheço muito bem que todo esse embaraço não é nada em comparação com o sofrimento dela. Ainda que eu, de qualquer modo, tenha absoluta consciência de que não se trata de um sofrimento cheio de amor; ela não se importa absolutamente nem um pouco em me melhorar de verdade, na medida em que também tudo o que ela reclama de mim não apresenta uma estrutura a partir da qual meu progresso profissional pudesse ser perturbado. Mas meu progresso profissional também não importa a ela, o que lhe importa é apenas seu interesse pessoal, ou seja, vingar a tortura que eu lhe causo e impedir a tortura vinda de mim que ainda a ameaçará no futuro. Eu já tentei mostrar-lhe uma vez como se poderia botar um fim, da melhor maneira possível, nesse incômodo permanente, mas justamente com isso a deixei em uma irritação tamanha que não mais voltarei a repetir a tentativa.
Também pesa, caso se queira assim, uma certa responsabilidade sobre mim, pois, por mais estranha que a mulher baixinha me pareça, e por mais que a única relação que existe entre nós dois seja o incômodo que eu lhe causo, ou, muito antes, o incômodo que ela permite que eu lhe cause, não deveria ser indiferente para mim como ela sofre de modo visível, inclusive fisicamente, por causa desse incômodo. Daqui e dali, e isso tem aumentado nos últimos tempos, chegam até mim notícias de que ela mais uma vez se mostrou pálida, tresnoitada, torturada por dores de cabeça e quase incapaz para o trabalho pela manhã; ela causa preocupações a seus parentes com isso, de quando em quando tentam descobrir os motivos de seu estado, e até agora ainda não os encontraram. Só eu os conheço, é o velho e sempre novo incômodo. Mas nem por isso compartilho as preocupações de seus parentes; ela é forte e rija; quem consegue se incomodar assim, provavelmente também consegue superar as consequências do incômodo; inclusive alimento a suspeita de que ela – pelo menos em parte – apenas se apresenta sofrida para desse modo conduzir as suspeitas do mundo a mim. Mas, para dizer de maneira aberta como eu a incomodo com minha existência, ela, por sua vez, é orgulhosa demais; ela tomaria como uma humilhação de si mesma apelar a outros por minha causa; apenas por aversão ela se ocupa comigo; discutir essa questão imunda diante da opinião pública seria demais pa mais força e mais rapidez à inapelabilidade mais completa do que seu incômodo privado – comparativamente mais fraco – seria capaz de conseguir, ao fim e ao cabo; então ela por certo se recolherá, suspirará aliviada e voltará as costas para mim. Pois bem, caso sejam essas, de fato, as suas esperanças, ela se engana. A opinião pública não assumirá o papel dela; a opinião pública jamais terá como reclamar de mim por tantas e tão infinitas coisas, mesmo que me coloque sob a lente de sua lupa mais potente. Eu não sou um homem assim tão inútil quanto ela acredita; não quero me vangloriar, e, sobretudo, não nesse contexto, mas mesmo que eu não me caracterize exatamente por ser útil de modo especial, com certeza também não dou na vista pelo aspecto contrário; só para ela, para seus olhos quase radiantemente brancos, é que eu sou assim, e ela não conseguirá convencer mais ninguém disso. De modo que eu poderia me mostrar completamente tranquilo no que diz respeito a isso? Não, de jeito nenhum; pois se de fato todo mundo ficar sabendo que eu chego a adoecê-la com meu comportamento, e alguns vigilantes, justamente os mais diligentes em levar notícias adiante, já estão perto de descobrir tudo, ou pelo menos se comportam como se o tivessem descoberto, o mundo haverá de chegar e me perguntar por que eu torturo a pobre mulher baixinha com minha incorrigibilidade, se eu tenho a intenção de talvez levá-la à morte, e quando enfim terei o juízo e a simples compaixão humana para parar com isso – se o mundo me perguntar isso, será difícil de responder a ele. Será que deverei confessar, então, que não acredito muito naqueles sinais de doença, e com isso despertar a impressão desagradável de que eu, para me livrar de uma culpa, culpo a outros, e de um modo tão pouco refinado? E se eu pudesse, inclusive, dizer abertamente que, mesmo que acreditasse em uma doença real, eu não teria a menor compaixão, uma vez que a mulher me é de todo estranha e a relação que existe entre nós foi estabelecida apenas por ela, e existe, portanto, apenas da parte dela? Não quero dizer que não acreditariam em mim; muito antes, não acreditariam nem deixariam de acreditar em mim; nem sequer iriam tão longe a ponto de se poder falar disso; simplesmente registrariam a resposta que dei a respeito de uma mulher fraca e doente, e isso seria bem pouco favorável a mim. Nisso, como em qualquer outra resposta, por certo se colocará com obstinação em meu caminho a incapacidade do mundo em não deixar que surja, em um caso como esse, a suspeita de uma relação amorosa, ainda que esteja claro ao extremo que uma relação assim não existe e que, se existisse, ela partiria antes de mim, que de fato seria capaz, pelo menos, de admirar a mulher baixinha no vigor de seu juízo e na infatigabilidade de suas conclusões, se eu não fosse punido logo e sempre justamente pelas preferências dela. Da parte dela, em todo caso, não existe o menor sinal de uma relação amistosa comigo; nesse ponto ela é correta e verdadeira; e é também aí que repousa minha última esperança; nem se fosse adequado a seu plano de guerra fazer acreditar que existe uma relação assim comigo, ela se esqueceria de tudo a ponto de fazer algo semelhante. Mas a opinião pública, completamente embotada nesse sentido, permanecerá com sua opinião e sempre se decidirá contra mim. De modo que, afinal de contas, apenas restaria a mim mudar a tempo, antes que o mundo intervenha e, na medida em que não pudesse eliminar o incômodo da mulher baixinha, o que é impensável, em todo caso, pelo menos, amenizá-lo um pouco. E de fato já me perguntei várias vezes se por acaso minha situação presente me satisfaz de modo a fazer com que eu não queira mudá-la, e se talvez não seria possível encaminhar certas mudanças em mim, ainda que não o fizesse por estar convencido de sua necessidade, mas apenas para acalmar a mulher. E realmente tentei fazê-lo de modo honesto, não sem cansaço e com todo o cuidado, isso, inclusive, me parecia adequado, quase chegou a me divertir; mudanças isoladas acabaram ocorrendo, chegaram a se tornar até bem visíveis, eu não precisava chamar a atenção da mulher para elas, pois ela percebe coisas assim bem mais cedo do que eu mesmo, percebe até a expressão da intenção em meu ser; mas, ainda assim, não fui contemplado com o sucesso. E como ele também poderia se tornar possível? A insatisfação dela comigo é, conforme agora já vejo, uma insatisfação fundamental; nada pode eliminá-la, nem sequer a eliminação de mim mesmo o faria; seus ataques de fúria, por exemplo à notícia de meu suicídio, seriam ilimitados. Não posso sequer imaginar que ela, essa mulher arguta, não perceba isso tão bem quanto eu, e me refiro tanto à desesperança de seus esforços quanto à minha inocência, minha incapacidade de, mesmo com a melhor das vontades, corresponder a suas exigências. É claro que ela o percebe, mas, em sua condição de natureza combativa, ela o esquece em meio à paixão do combate, e meu jeito infeliz, que eu, no entanto, não posso escolher que seja diferente, pois ele me foi dado assim – o que se pode fazer? –, consiste em querer sussurrar uma última advertência a alguém que perdeu todas as estribeiras. Desse modo, nós naturalmente jamais vamos nos entender. Sempre de novo haverei de, na felicidade das primeiras horas da manhã, sair de casa e ver esse rosto amargurado por minha causa, os lábios entreabertos denotando aborrecimento, o olhar examinador e já conhecedor do resultado antes mesmo do exame, que passeia por mim e ao qual, mesmo à maior fugacidade, nada pode escapar, o sorriso amargo que se encrava nas faces de menina, o levantar queixoso dos olhos para o céu, as mãos levadas à cintura para se arvorar segura, e em seguida a palidez e o tremor da indignação.
Há pouco, fiz, aliás pela primeira vez, conforme confessei surpreso comigo mesmo na oportunidade, algumas insinuações sobre o caso a um bom amigo, apenas de passagem, com toda a leveza, limitando-me a algumas palavras, e reduzi o significado do todo, por menor que ele no fundo seja para mim, no que diz respeito ao exterior, ainda um pouco abaixo da verdade dos fatos. O estranho é que esse amigo ainda assim não deixou de prestar atenção, e até mesmo concedeu de modo próprio um significado maior à questão, não deixou se distrair e insistiu nela. Mais estranho ainda, contudo, foi o fato de ele, apesar disso, subestimar a questão em um ponto decisivo, pois me aconselhou seriamente a viajar um pouco. Nenhum conselho poderia ser mais incompreensível do que esse; embora as coisas se mostrem simples, de modo que qualquer um pode compreendê-las ao se aproximar um pouco, tão simples assim elas, no fundo, não são, a ponto de, com minha partida, tudo ou até mesmo apenas o mais importante voltar à ordem. Pelo contrário, eu preciso, muito antes, me proteger de uma partida; e, se é que devo seguir algum plano, então por certo que é o de manter a questão nos limites em que esteve até agora, estreitos, e sem que o mundo exterior ainda esteja envolvido, portanto, me manter tranquilo e ficar onde estou e não permitir grandes mudanças, causadas por essa questão, que poderiam dar na vista, do que aliás também faz parte não falar com ninguém a respeito; mas tudo isso não porque se trate de algum segredo perigoso, e sim porque é uma questão pequena e meramente pessoal e, como tal, pelo menos fácil de ser conduzida, e inclusive porque é assim que ela deve permanecer. Nisso, aliás, as observações desse amigo acabaram por se mostrar úteis, elas não me ensinaram nada de novo, mas me fortaleceram em meu ponto de vista básico.
De um modo geral, aliás, fica claro, assim que se reflete com mais exatidão, que as mudanças que o estado das coisas parece ter assumido no decorrer do tempo não são mudanças da coisa em si, mas sim apenas a evolução do meu ponto de vista sobre ela, inclusive na medida em que esse ponto de vista em parte mais tranquilo, mais másculo, mais próximo do cerne, em parte, contudo, também sob a influência impossível de ser superada dos abalos constantes, por mais leves que estes sejam, começa a assumir um certo nervosismo.
Fico mais tranquilo em relação ao caso quando acredito reconhecer que uma decisão, por mais próxima que pareça estar às vezes, ao fim e ao cabo terminará por não chegar tão logo assim; nós nos sentimos inclinados, principalmente nos anos da juventude, a superestimar a velocidade com que as decisões chegam; se algum dia minha juíza baixinha, enfraquecida por meu olhar, desabasse de lado no assento, segurando-se com uma das mãos no encosto traseiro e mexendo com a outra nas amarras de seu corpete, enquanto lágrimas de ira e de desespero corressem por suas faces abaixo, eu saberia que a decisão havia chegado e que logo eu seria chamado a me responsabilizar. Mas nada de decisão, nada de responsabilização, mulheres se sentem mal com facilidade, o mundo não tem tempo de cuidar de todos os casos. E o que aconteceu, então, ao longo de todos esses anos? Nada, a não ser que tais casos se repetiram, ora mais fortes ora mais fracos, e que seu número total, portanto, se tornou maior. E o fato de pessoas se encontrarem nas proximidades, pessoas que gostariam de intervir caso encontrassem uma possibilidade para tanto; mas elas não encontram nenhuma, por enquanto elas confiam apenas em seu faro, e o faro sozinho, embora baste para ocupar seu dono à farta, não se mostra proveitoso para qualquer outra coisa. Porém, foi assim desde sempre, no fundo; desde sempre existiram esses inúteis vagabundos de esquina e meros respiradores de ar, que sem cessar desculpavam sua proximidade de algum modo bem espertinho, de preferência alegando parentesco; eles sempre vigiaram, sempre encontraram o que farejar com seus narizes, mas o resultado de tudo isso é apenas que continuam parados por aí. A diferença toda está no fato de que eu aos poucos os reconheci, sei distinguir seus rostos; no passado, eu acreditava que eles viriam lentamente de todas as partes e se juntariam, as medidas do caso aumentariam, portanto, e obrigariam por si mesmas à decisão; hoje em dia acredito saber que isso tudo esteve desde sempre aí, e tem bem pouco ou até mesmo nada a ver com a chegada da decisão. E a decisão em si, por que eu a menciono com uma palavra tão grandiosa? Se alguma vez – e com certeza não será amanhã ou depois de amanhã, e provavelmente não será jamais – se chegar ao ponto de a opinião pública, apesar de tudo, se ocupar da questão que, conforme jamais deixarei de repetir, não é de sua competência, embora eu por certo não saia da investigação sem danos, com certeza se levará em consideração que não sou desconhecido da opinião pública, que desde sempre vivo bem às claras debaixo de sua luz, cheio de confiança e merecendo confiança, e que por isso essa mulher baixinha e sofredora que se manifestou retroativamente, e que, para mencionar de passagem, um outro que não eu talvez há tempo já tivesse reconhecido como um carrapicho que não larga da gente, amassando-o debaixo de sua bota sem fazer qualquer ruído diante da opinião pública; que essa mulher, afinal de contas e no pior dos casos, apenas poderia acrescentar um pequeno floreio horrível ao diploma com o qual a opinião pública há muito já me esclareceu como seu membro digno de atenção. Este é o estado atual das coisas, que, portanto, se mostra pouco adequado para me deixar intranquilo.
Que eu, com os anos, no entanto, tenha me tornado um pouco intranquilo não tem absolutamente nada a ver com a importância da questão; simplesmente não se consegue suportar o fato de incomodar alguém de forma ininterrupta, mesmo quando por certo se reconhece o caráter infundado desse incômodo; fica-se intranquilo, começa-se, de certo modo apenas em termos físicos, a ficar à espreita de decisões, mesmo que com razão não se acredite muito em sua chegada. Em parte, no entanto, também se trata apenas de uma consequência da idade; a juventude concede roupas belas a tudo; detalhes feios se perdem na inesgotável fonte de vigores da juventude; alguém pode até ter tido um olhar um tanto à espreita, mas ele com certeza não foi levado a mal, talvez nem sequer tenha sido percebido, nem sequer por ele mesmo, mas o que sobra com a idade são restos, e cada um deles é necessário, nenhum é renovado, cada um deles se encontra sob observação, e o olhar à espreita de um homem que envelhece é um olhar que está completa e nitidamente à espreita, e não é difícil de constatá-lo. Mas também aqui isso não representa uma piora objetiva e real.
Por onde quer, pois, que eu a veja, sempre de novo fica claro, e insisto nisso, que se encubro com a mão, ainda que bem de leve, essa pequena questão, eu mesmo assim poderei levar com tranquilidade e por muito tempo adiante, sem ser incomodado pelo mundo, a vida que tenho levado até agora, apesar de todo o espernear da mulher.
(Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias; tradução de Marcelo Backes)
(Ilustração: Amedeo Modigliani - portrait of Jeanne Hebuterne)
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