domingo, 18 de março de 2018

UM TELEFONE QUE DEU O QUE FALAR, de Renato Vivacqua








Carnaval de 1917, Rio de Janeiro. Surge com enorme sucesso o samba Pelo Telefone, de Ernesto dos Santos, vulgo Donga. Um fato até então inédito acontece: os clubes carnavalescos, que nunca tocavam a mesma música em seus desfiles, entraram na Avenida Central tocando o Pelo Telefone. Naquela época samba era uma espécie de festa com dança. Dizia-se hoje vou dar um samba lá em casa. A partir do Pelo Telefone é que ficou conhecido como gênero musical. Hoje, mais de 60 anos após o seu lançamento, é considerada a mais discutida e polemizada de nossas músicas. 

As dúvidas começam com a data de sua feitura. É de 1916 ou 1917? Alguns estudiosos citam 1917, baseados no sucesso que alcançou no Carnaval desse ano. Donga afirma que foi composto em 1916 e isso é confirmado pelo registro da parte de piano que fez na Biblioteca Nacional, em 16 de dezembro de 1916. 

Outra discussão é se foi com o Pelo Telefone que pela primeira vez a palavra samba apareceu na etiqueta de um disco(1). Pesquisadores encontraram edições de A Cabocla de Caxangá com a designação de samba, anteriores a 1917. Outros afirmam que o primeiro samba perpetuado em disco chamava-se Em Casa da Baiana, admitindo sua aparição em 1911. Ary Vasconcelos informa que em 1914 foi gravada A Viola está Magoada, onde consta o batismo de samba. Guimarães Martins, biógrafo de Catulo, diz que A Viola está Magoada, de autoria deste, foi composta em 1912. Donga é incisivo, declarando que registrou o Pelo Telefone com plena consciência de que era a primeira vez que aparecia um disco com a palavra samba. Em 1972, o assunto volta à baila quando o folclorista gaúcho Paixão Côrtes encontrou o catálogo de uma antiga gravadora gaúcha, que teria funcionado entre 1913 e 1914, onde nove músicas estão designadas de samba. 

O cearense Nirez manifesta-se dizendo ter em sua coleção particular discos da Odeon, com numeração anterior ao Pelo Telefone. Em 1974, Maurício Quadrio ganha vários discos da Casa Edison. Três deles continham o repertório da revista musical Avança e um trazia em sua etiqueta: Um Samba na Penha. 

Polemizou-se também a respeito de quem realizou a primeira gravação. Para Lúcio Rangel, a primeira foi da Banda Odeon, seguida de Baiano, cantor muito popular na época e histórico também, pois gravou o primeiro disco nacional. Ary Vasconcelos tem a mesma opinião, assim como Sérgio Cabral. Aí vem o Donga e embaralha tudo, a primazia à gravação do Baiano. 

A autoria foi também muito contestada. No carnaval de 1917, o samba foi às ruas com letra atribuída ao jornalista Mauro de Almeida, apelidado de Peru dos Pés frios. O primeiro verso era cantado de duas maneiras: 


O chefe da folia 

Pelo telefone 

Manda-me avisar 

Que com alegria 

Não se questione 

Para se brincar. 


Ou: 


O Chefe da Polícia 

Pelo telefone 

Manda-me avisar 

Que na Carioca 

Tem uma roleta 

Para se jogar. 


Donga, em depoimento no Museu da Imagem e do Som, diz que a letra original é O Chefe da Folia… e explica: O Chefe da Polícia… foi uma paródia feita pelos jornalistas de A Noite. Em entrevista a Sérgio Cabral e Ary Vasconcelos, porém, se contradiz afirmando que é O Chefe da Polícia… a letra inicial, mudada para O Chefe da folia… para evitar complicações com as autoridades. 

O fato que dá origem à versão O Chefe da Polícia… é de 1913, quando repórteres de A Noite colocaram uma roleta no Largo da Carioca, para com isso mostrar que o Chefe de Polícia fazia vista grossa à jogatina. Antes de J. Efegê descobrir a data certa da peça dos jornalistas, todos os historiadores diziam ter o fato se dado em fins de 1916. Fica a dúvida se esse verso do Pelo Telefone não era anterior ao lançamento do samba. 

Os pesquisadores são unânimes na citação de Mauro de Almeida como autor da letra. Donga conta que o autor do primeiro verso é um tal Didi da Gracinda. O Jornal do Brasil de 4 de fevereiro de 1917 publicava uma nota do Grêmio Fala Gente comunicando que seria cantado na Avenida Rio Branco O verdadeiro tango Pelo Telefone e citava os autores: João da Mata, Germano, Tia Ciata e Hilário, sendo delicado ao bom e lembrado amigo Mauro. Donga defende-se dizendo que as músicas eram diferentes. Almirante acusa Donga de omitir o nome de Mauro na parceria, dizendo ter este se apropriado do samba enganando parceiros. É incisivo: Donga não é autor do primeiro samba gravado. No máximo, segundo a história, é um dos parceiros. E acrescentava que o samba havia sido elaborado por uma equipe da qual participara inclusive Sinhô. Donga responde que Almirante nunca quis esclarecer a autoria do samba, mas apenas acusá-lo de apropriação indébita. Declarou peremptoriamente que a letra é de Mauro de Almeida. A omissão do nome de Mauro na gravação da Casa Edison não pode ser atribuída a mim. Em fevereiro de 1917 saía publicada uma paródia alfinetando Donga: 


Pelo telefone 

A minha boa gente 

Mandou-me avisar 

Que o meu bom arranjo 

Era oferecido 

Para se cantar 

Ai, ai, ai, leva a mão à consciência, meu bem 

Ai, ai, ai por que tanta presença, meu bem 

Ó que caradura dizer na roda 

Que o arranjo é teu 

É do bom Hilário e da Velha Ciata 

Que o bom Sinhô escreveu 

Tomara que tu apanhes 

Pra não tornar a fazer isso 

Escrever o que é dos outros 

Sem olhar o compromisso. 


O cronista Vagalume, no seu livro Na Roda do Samba, diz que a letra é um arranjo de Mauro de Almeida, a música também é um arranjo de Donga e o resto: foi pescado na casa da tia Ciata. Recentemente, Flávio Silva, num trabalho sherloqueano, encontra em jornais da época considerações de Mauro sobre o assunto. Num dos artigos ele revela que não é o autor, mas tão só o arreglador. Algumas daquelas estrofes já andaram por aí no canto popular, arreglei-as para que pudessem ser cantadas com a música que me fora oferecida. Em sua coluna de 24/1/17 respondendo a outro cronista que o citara como autor da letra comenta: devo dizer-te, meu caro Arlequim, como protesto em benefício da verdade, que os versos do samba carnavalesco Pelo Telefone não são originais, ou melhor, são mas não meus. Tirei-os de trovas populares… Isso que foi dito acima corrobora a feliz observação de Tinhorão, que disse ser o samba uma verdadeira colcha de retalhos, com nuanças de batuques, estribilhos do folclore baiano e maxixe carioca. 

Agora voltemos à letra. Além da primeira estrofe, já citada, que possui duas versões, ainda havia uma versalhada: 


I – O Chefe da Polícia ou O chefe da folia… 


II – Ai, ai, ai é deixar mágoas pra trás 

Ó rapaz 

Ai, ai, ai fica triste se és capaz e verás. 


III – Tomara que tu apanhes 

Pra não tornar a fazer isso 

Tirar amores dos outros 

Depois fazer teu feitiço. 


IV – Ai se a rolinha, sinhô, sinhô 

Se embaraçou, sinhô, sinhô 

É que a avezinha 

Nunca sambou, sinhô, sinhô 

Porque este samba, sinhô, sinhô 

De arrepiar 

Põe perna bamba 

Mas faz gozar. 


V – O Peru me disse 

Se o Morcego visse 

Não fazer tolice 

Eu então saísse 

Dessa esquisitice 

De disse e não disse. 

De disse e não disse. 


VI – Ai, ai, ai está o canto ideal 

Triunfal 

Ai, ai, ai viva o nosso Carnaval 

Sem rival. 


VII – Se quem tira amor dos outros 

Por Deus fosse castigado 

O mundo estava vazio 

E o inferno habitado. 


VIII – Queres ou não, sinhô 

Vir pro cordão, sinhô, sinhô 

Vir pro cordão sinhô, sinhô 

É ser folião, sinhô, sinhô 

De coração 

Porque este samba, sinhô, sinhô 

De arrepiar… etc. 


IX – Quem for bom de gosto 

Mostre-se disposto 

Não procure encosto 

Tenha o riso posto 

Nada de desgosto. 


X – Ai, ai, ai toca o samba 

Com calor 

Meu amor 

Ai, ai, ai pois quem dança 

Não tem dor nem calor. 


O estribilho Ai se a rolinha… é pernambucano, segundo Vagalume. A letra acima é a que Baiano esgoela no disco. Com o passar do tempo vira uma verdadeira casa-da-mãe-joana, com todo mundo mexendo, uns tirando, outros implantando palavras. O segundo verso, Claribalte Passos publica invertido: 


Ai, ai, ai, fica triste se és capaz e verás 

Bota as mágoas para trás… 


O quarto verso aparece também modificado: 


Olha a rolinha, sinhô, sinhô 

Se embaraçou 

Caiu no laço 

Do nosso amor. 


Edgar de Alencar restringe o samba a oito partes. Mário Reis, na gravação que fez para os festejos do IV centenário do Rio, canta quatro partes numa tremenda salada. A primeira ficou assim: 


O Chefe da Polícia 

Pelo Telefone 

Mandou-me avisar 

Que com alegria 

Não se questione 

Para se brincar. 


No quarto verso, cheio de puritanismo, trocou o malicioso me faz gozar por um castíssimo me faz CHORAR. Almirante canta o verso ai, ai se a rolinha em disco de um jeito e publica em seu livro de outra forma. Na partitura original, impressa pelo Instituto de Artes Gráficas do Rio, não constam a nona e a décima estrofes. Como podem observar, é uma tremenda barafunda. Eu, que não pretendo atiçar o fogo, faço minhas as palavras de Ary Vasconcelos quando reivindica para o Pelo Telefone o título de primeiro samba de sucesso, independendo a época de sua feitura. 



Notas 

(1) Quando este livro já se encontrava no nascedouro gráfico foi lançado pela Funarte a “Discografia brasileira 78 rpm”, notável trabalho de quatro infatigáveis pesquisadores: Jairo Severiano, Grácio Barbalho, Alcino Santos e Nirez. 

Uma das revelações não poderia deixar de ser mencionada: a palavra samba, sem dúvida alguma, apareceu pela primeira vez na face de um disco em 1909 e não 1904 como anteriormente foi anunciado e a música era “Um samba na Penha”, cantado por Pepa Delgado, lançado pela Casa Edison. Agora persiste a dúvida, se a peça é de 1904, porque a gravação só foi feita em 1909? 




(Ilustração: na foto, da esquerda para a direita Cascata, Donga, Ataulfo Alves, Pixinguinha, João da Baiana, Ismael Silva, Alfredinho do Flautim) 















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