Carnaval de 1917, Rio de Janeiro. Surge com enorme sucesso o samba Pelo Telefone, de Ernesto dos Santos, vulgo Donga. Um fato até então inédito acontece: os clubes carnavalescos, que nunca tocavam a mesma música em seus desfiles, entraram na Avenida Central tocando o Pelo Telefone. Naquela época samba era uma espécie de festa com dança. Dizia-se hoje vou dar um samba lá em casa. A partir do Pelo Telefone é que ficou conhecido como gênero musical. Hoje, mais de 60 anos após o seu lançamento, é considerada a mais discutida e polemizada de nossas músicas.
As dúvidas começam com a data de sua feitura. É de 1916 ou 1917? Alguns estudiosos citam 1917, baseados no sucesso que alcançou no Carnaval desse ano. Donga afirma que foi composto em 1916 e isso é confirmado pelo registro da parte de piano que fez na Biblioteca Nacional, em 16 de dezembro de 1916.
Outra discussão é se foi com o Pelo Telefone que pela primeira vez a palavra samba apareceu na etiqueta de um disco(1). Pesquisadores encontraram edições de A Cabocla de Caxangá com a designação de samba, anteriores a 1917. Outros afirmam que o primeiro samba perpetuado em disco chamava-se Em Casa da Baiana, admitindo sua aparição em 1911. Ary Vasconcelos informa que em 1914 foi gravada A Viola está Magoada, onde consta o batismo de samba. Guimarães Martins, biógrafo de Catulo, diz que A Viola está Magoada, de autoria deste, foi composta em 1912. Donga é incisivo, declarando que registrou o Pelo Telefone com plena consciência de que era a primeira vez que aparecia um disco com a palavra samba. Em 1972, o assunto volta à baila quando o folclorista gaúcho Paixão Côrtes encontrou o catálogo de uma antiga gravadora gaúcha, que teria funcionado entre 1913 e 1914, onde nove músicas estão designadas de samba.
O cearense Nirez manifesta-se dizendo ter em sua coleção particular discos da Odeon, com numeração anterior ao Pelo Telefone. Em 1974, Maurício Quadrio ganha vários discos da Casa Edison. Três deles continham o repertório da revista musical Avança e um trazia em sua etiqueta: Um Samba na Penha.
Polemizou-se também a respeito de quem realizou a primeira gravação. Para Lúcio Rangel, a primeira foi da Banda Odeon, seguida de Baiano, cantor muito popular na época e histórico também, pois gravou o primeiro disco nacional. Ary Vasconcelos tem a mesma opinião, assim como Sérgio Cabral. Aí vem o Donga e embaralha tudo, a primazia à gravação do Baiano.
A autoria foi também muito contestada. No carnaval de 1917, o samba foi às ruas com letra atribuída ao jornalista Mauro de Almeida, apelidado de Peru dos Pés frios. O primeiro verso era cantado de duas maneiras:
O chefe da folia
Pelo telefone
Manda-me avisar
Que com alegria
Não se questione
Para se brincar.
Ou:
O Chefe da Polícia
Pelo telefone
Manda-me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogar.
Donga, em depoimento no Museu da Imagem e do Som, diz que a letra original é O Chefe da Folia… e explica: O Chefe da Polícia… foi uma paródia feita pelos jornalistas de A Noite. Em entrevista a Sérgio Cabral e Ary Vasconcelos, porém, se contradiz afirmando que é O Chefe da Polícia… a letra inicial, mudada para O Chefe da folia… para evitar complicações com as autoridades.
O fato que dá origem à versão O Chefe da Polícia… é de 1913, quando repórteres de A Noite colocaram uma roleta no Largo da Carioca, para com isso mostrar que o Chefe de Polícia fazia vista grossa à jogatina. Antes de J. Efegê descobrir a data certa da peça dos jornalistas, todos os historiadores diziam ter o fato se dado em fins de 1916. Fica a dúvida se esse verso do Pelo Telefone não era anterior ao lançamento do samba.
Os pesquisadores são unânimes na citação de Mauro de Almeida como autor da letra. Donga conta que o autor do primeiro verso é um tal Didi da Gracinda. O Jornal do Brasil de 4 de fevereiro de 1917 publicava uma nota do Grêmio Fala Gente comunicando que seria cantado na Avenida Rio Branco O verdadeiro tango Pelo Telefone e citava os autores: João da Mata, Germano, Tia Ciata e Hilário, sendo delicado ao bom e lembrado amigo Mauro. Donga defende-se dizendo que as músicas eram diferentes. Almirante acusa Donga de omitir o nome de Mauro na parceria, dizendo ter este se apropriado do samba enganando parceiros. É incisivo: Donga não é autor do primeiro samba gravado. No máximo, segundo a história, é um dos parceiros. E acrescentava que o samba havia sido elaborado por uma equipe da qual participara inclusive Sinhô. Donga responde que Almirante nunca quis esclarecer a autoria do samba, mas apenas acusá-lo de apropriação indébita. Declarou peremptoriamente que a letra é de Mauro de Almeida. A omissão do nome de Mauro na gravação da Casa Edison não pode ser atribuída a mim. Em fevereiro de 1917 saía publicada uma paródia alfinetando Donga:
Pelo telefone
A minha boa gente
Mandou-me avisar
Que o meu bom arranjo
Era oferecido
Para se cantar
Ai, ai, ai, leva a mão à consciência, meu bem
Ai, ai, ai por que tanta presença, meu bem
Ó que caradura dizer na roda
Que o arranjo é teu
É do bom Hilário e da Velha Ciata
Que o bom Sinhô escreveu
Tomara que tu apanhes
Pra não tornar a fazer isso
Escrever o que é dos outros
Sem olhar o compromisso.
O cronista Vagalume, no seu livro Na Roda do Samba, diz que a letra é um arranjo de Mauro de Almeida, a música também é um arranjo de Donga e o resto: foi pescado na casa da tia Ciata. Recentemente, Flávio Silva, num trabalho sherloqueano, encontra em jornais da época considerações de Mauro sobre o assunto. Num dos artigos ele revela que não é o autor, mas tão só o arreglador. Algumas daquelas estrofes já andaram por aí no canto popular, arreglei-as para que pudessem ser cantadas com a música que me fora oferecida. Em sua coluna de 24/1/17 respondendo a outro cronista que o citara como autor da letra comenta: devo dizer-te, meu caro Arlequim, como protesto em benefício da verdade, que os versos do samba carnavalesco Pelo Telefone não são originais, ou melhor, são mas não meus. Tirei-os de trovas populares… Isso que foi dito acima corrobora a feliz observação de Tinhorão, que disse ser o samba uma verdadeira colcha de retalhos, com nuanças de batuques, estribilhos do folclore baiano e maxixe carioca.
Agora voltemos à letra. Além da primeira estrofe, já citada, que possui duas versões, ainda havia uma versalhada:
I – O Chefe da Polícia ou O chefe da folia…
II – Ai, ai, ai é deixar mágoas pra trás
Ó rapaz
Ai, ai, ai fica triste se és capaz e verás.
III – Tomara que tu apanhes
Pra não tornar a fazer isso
Tirar amores dos outros
Depois fazer teu feitiço.
IV – Ai se a rolinha, sinhô, sinhô
Se embaraçou, sinhô, sinhô
É que a avezinha
Nunca sambou, sinhô, sinhô
Porque este samba, sinhô, sinhô
De arrepiar
Põe perna bamba
Mas faz gozar.
V – O Peru me disse
Se o Morcego visse
Não fazer tolice
Eu então saísse
Dessa esquisitice
De disse e não disse.
De disse e não disse.
VI – Ai, ai, ai está o canto ideal
Triunfal
Ai, ai, ai viva o nosso Carnaval
Sem rival.
VII – Se quem tira amor dos outros
Por Deus fosse castigado
O mundo estava vazio
E o inferno habitado.
VIII – Queres ou não, sinhô
Vir pro cordão, sinhô, sinhô
Vir pro cordão sinhô, sinhô
É ser folião, sinhô, sinhô
De coração
Porque este samba, sinhô, sinhô
De arrepiar… etc.
IX – Quem for bom de gosto
Mostre-se disposto
Não procure encosto
Tenha o riso posto
Nada de desgosto.
X – Ai, ai, ai toca o samba
Com calor
Meu amor
Ai, ai, ai pois quem dança
Não tem dor nem calor.
O estribilho Ai se a rolinha… é pernambucano, segundo Vagalume. A letra acima é a que Baiano esgoela no disco. Com o passar do tempo vira uma verdadeira casa-da-mãe-joana, com todo mundo mexendo, uns tirando, outros implantando palavras. O segundo verso, Claribalte Passos publica invertido:
Ai, ai, ai, fica triste se és capaz e verás
Bota as mágoas para trás…
O quarto verso aparece também modificado:
Olha a rolinha, sinhô, sinhô
Se embaraçou
Caiu no laço
Do nosso amor.
Edgar de Alencar restringe o samba a oito partes. Mário Reis, na gravação que fez para os festejos do IV centenário do Rio, canta quatro partes numa tremenda salada. A primeira ficou assim:
O Chefe da Polícia
Pelo Telefone
Mandou-me avisar
Que com alegria
Não se questione
Para se brincar.
No quarto verso, cheio de puritanismo, trocou o malicioso me faz gozar por um castíssimo me faz CHORAR. Almirante canta o verso ai, ai se a rolinha em disco de um jeito e publica em seu livro de outra forma. Na partitura original, impressa pelo Instituto de Artes Gráficas do Rio, não constam a nona e a décima estrofes. Como podem observar, é uma tremenda barafunda. Eu, que não pretendo atiçar o fogo, faço minhas as palavras de Ary Vasconcelos quando reivindica para o Pelo Telefone o título de primeiro samba de sucesso, independendo a época de sua feitura.
Notas
(1) Quando este livro já se encontrava no nascedouro gráfico foi lançado pela Funarte a “Discografia brasileira 78 rpm”, notável trabalho de quatro infatigáveis pesquisadores: Jairo Severiano, Grácio Barbalho, Alcino Santos e Nirez.
Uma das revelações não poderia deixar de ser mencionada: a palavra samba, sem dúvida alguma, apareceu pela primeira vez na face de um disco em 1909 e não 1904 como anteriormente foi anunciado e a música era “Um samba na Penha”, cantado por Pepa Delgado, lançado pela Casa Edison. Agora persiste a dúvida, se a peça é de 1904, porque a gravação só foi feita em 1909?
(Ilustração: na foto, da esquerda para a direita Cascata, Donga, Ataulfo Alves, Pixinguinha, João da Baiana, Ismael Silva, Alfredinho do Flautim)
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