quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

UMA AVENTURA EM ISTAMBUL, de Lawrence Durrell






O pôr do sol é a hora melhor; com a cidade descaindo suavemente para as trevas, enquanto o sol trava a sua batalha leonina contra a linha do horizonte, impelindo a densa neblina cada vez mais para o alto, transformando-a em breves e preciosas cores e formas. Sentar-se no jardim escurecido do hotel, bebendo calmamente um aperitivo e esperando que o muezim cego subisse ao seu poleiro entre os edifícios e lançasse o seu grito de coruja para os fiéis – era essa a melhor maneira de passa a hora do crepúsculo, vendo as luzes começar a piscar sobre o Taxim e os barcos roçagar e mugir na água escura.

Naquela tarde, particularmente eloquente, estávamos muito calados; o expresso partia pouco antes da meia-noite, ela já tinha as malas prontas. Estávamos sentados entre dois mundos, nem deprimidos nem animados: existindo numa curiosa abstração de certeza a respeito do futuro. Uma parte da mente voltava-se para o chamado que não tardaria a vir da mesquita – o rosto cego e velho de uma ave pronunciando o grasnido nasal do Ebed. Foi então que vi, em meio ao lusco-fusco, um vulto magro, de branco, arrastando-se por entre as árvores distantes; caminhava com um leve traço de falta de firmeza, mas resolutamente, como se para um destino predeterminado. Reconheci o meu amigo, embora não comentasse o fato; e o mesmo, creio, aconteceu com ela, pois seguiu o meu olhar. Não teria nada demais naquilo; mas então, para minha surpresa, vi-o parar, olhar para o céu e entrar na escada em caracol da mesquita. Agora, o ritmo dos seus passos mudara; caminhava lentamente, cansado, como se dobrado sob um grande peso. Vi-o aparecer à janelinha existente na metade da subida e não pude conter uma exclamação de espanto. – Que diabos, o velho Sacrapant!... – Ela olhou para o relógio e depois para o céu.

Ainda era cedo para o muezim. A frágil figura surgiu finalmente na balaustrada, erguendo mãos pequenas, qual avencas, como se numa invocação, mas débil e incoerente; o sentido das suas palavras mal penetrava as pesadas camadas do ar úmido da noite. Pareceu-me ouvir algo como “encontrareis recompensa na firma. Dai-lhe o melhor do vosso esforço, que recebereis cem vezes mais”. Não se podia ter a certeza mas, por entre as oscilantes encantações, julguei ouvir isso. E então pus-me de pé, de um salto, pois a frágil figura começara a inclinar-se para a frente e a pender. O Sr. Sacrapant começou a cair pelo céu noturno, num lento voo em direção ao solo escuro. O esmagar de uma folha de palmeira e depois um estrondo de inconfundível irremediabilidade, seguido pelo ruído de vidro quebrado e moedas espalhadas. A rapidez de tudo aquilo transfixara-me. Fiquei ali, de pé, sem fala. Mas já se ouvia o barulho de pés correndo e vozes; não tardou que uma pequena multidão se juntasse, qual moscas de uma artéria aberta. – Meu Deus! – exclamei. Benedicta mantinha-se sentada, perfeitamente imóvel, a cabeça inclinada. Voltei-me para ela e murmurei-lhe o nome; mas ela não se moveu.

Sacudi-a suavemente pelos ombros, como se sacode um relógio que parou de funcionar, e ela olhou para mim com uma intensa tristeza. – Venha comigo, depressa – falou, agarrando-me a mão. Entre as árvores, os sons eram agora mais distintos – estavam juntando os restos mortais. Sangue sobre o mármore. Estremeci. Atravessamos o jardim escuro, de mãos dadas, encaminhamo-nos para os terraços iluminados e os salões do hotel. Benedicta disse: - Jocas deve tê-lo despedido. Oh, por que será que as pessoas vão aos extremos? – Por quê, realmente? Pensei no rosto pálido e humilde de Sacrapant, brilhando contra o céu na noite. Sem dúvida uma tal explicação era convincente, mas... A noite jazia em ruínas à nossa volta. O jantar em silêncio, o acomodar da bagagem ao carro da firma que aparecera – tudo isso foi feito automaticamente, em meio ao torpor causado pela tristeza daquela morte inesperada. O meu pensamento voltava-se continuamente para a lembrança daquele rosto pálido, inclinando-se para baixo, do alto da torre; Sacrapant dera a impressão de alguém cuidadosamente privado de psicologia individual por alguma experiência com faca ou droga. Por um breve momento, as abas do seu paletó lhe tinham dado a forma de um dardo – de um pato caindo do céu. Mas ele caíra, por assim dizer, bem no meio das nossas emoções; as ondas crescentes da sua morte espalhavam-se agora pelos nossos espíritos, alienando-se um do outro.

Abraçamo-nos, separamo-nos quase com repulsa. A horrenda estação, com seu enxame de turcos de cara de tartaruga, felizmente proibia falas de despedida. Limitei-me a lhe segurar as mãos, enquanto não encontravam o seu vagão e a bagagem não era arrumada pelo motorista. – Ou então, - disse ela gravemente, como se continuando um monólogo interior – ele de repente soube que tinha câncer, ou que a mulher tinha um amante, ou que sua filha preferida... – Compreendi que qualquer explicação serviria e que tudo permaneceria para sempre no campo das especulações, das improvisações. Seria isso também aplicável a todos nós, a todas as nossas ações? Sim, era. Examinei-lhe o rosto novamente, com cuidado, quase com uma atenção tinta de pânico, percebendo finalmente como era inútil amá-la; ela subira para o vagão e olhava-me da janela aberta com uma tristeza hesitante. Não poderíamos estar mais distanciados, naquele momento; uma nuvem de aflição ofuscara todas as nossas emoções. Senti o meu desespero aumentar. Amanhã regressaria a Atenas – ficaria livre de todos, livre até de Benedicta. Meu Deus, a única palavra de cinco letras que interessa! O trem começara a andar. Caminhei ao lado dele durante algum tempo. Ela também parecia quase aliviada – pelo menos era a impressão que me dava. Talvez por se sentir segura de mim – segura de seu poder sobre mim? Puxou para cima a vidraça e, num impulso, exalou sobre ela a fim de escrever a palavra “Brevemente” na pequena mancha de condensação. Imediatamente a dor da separação voltou.

Afastei-me, para ver se conseguia fazer os meus pensamentos se dispersarem por entre aquelas multidões de rostos indistintos. O carro esperava-me para levar de volta ao hotel. Nessa noite, dormi só e, pela primeira vez, experimentei a sufocante sensação de solidão que me avassalou com a convicção de que nunca mais deveria ver Benedicta. Todo aquele episódio permanecera na minha memória, cuidadosamente emoldurado e pendurado, completamente isolado em si: e completamente sem relevância ou continuidade em relação a qualquer outra coisa que eu já tivesse feito ou experimentado. Uma aventura em Istambul!



(Tunc; tradução de Vera Neves Pedroso)



(Ilustração: WJ Rathbone – Istanbul)



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