terça-feira, 29 de setembro de 2015
DECÁLOGO DO CRÍTICO, de Michel Laub
Ler por obrigação, ganhar
pouco, ser odiado por autores criticados ou ignorados por você. Ante tantos
dissabores, saiba para que serve, afinal, fazer crítica literária
I - Um bom começo pode ser
a leitura de O imperador do vinho, de Elin McCoy, a biografia do americano
Robert Parker. Trata-se da figura mais polêmica do universo milionário da
enologia. Uma nota alta na The Wine Advocate, sua newsletter, é capaz de enriquecer
um fabricante; uma nota baixa pode significar a falência. O olfato de Parker é
segurado em cerca de US$ 1 milhão. Ao longo dos anos, percebeu-se que ele
gostava de vinhos frutados. Muitas propriedades, até algumas tradicionais da
França, passaram a chamar especialistas para estudar o solo, mudar a forma do
plantio e da colheita, tudo para colher uvas que originassem vinhos adequados a
esse gosto.
II - Saiba que esse talvez
seja o exemplo máximo de crítico bem-sucedido no mundo de hoje – rico de fato,
influente de fato, uma presença de fato essencial em seu meio. Quase todos os
outros profissionais da categoria, trabalhem eles com música, cinema,
gastronomia, televisão ou concursos de beleza, estão bem mais próximos da
figura descrita por George Orwell em Confissões de um resenhista: “Trinta e
cinco anos, mas aparenta cinqüenta(...) [trabalha num conjugado frio, mas
abafado (...). Dos milhares de livros que aparecem todo ano, é quase certo que
existam 50 ou 100 sobre os quais teria prazer em escrever. Se for de primeira
categoria na profissão, pode conseguir dez ou vinte. É mais provável que
consiga dois ou três”.
III - Ou seja, prepare-se
para uma atividade enfadonha e mal-remunerada. Você lerá só por obrigação.
Nunca mais irá atrás de um livro indicado por um amigo. Nunca mais fechará um
livro com a sensação de que, para o bem ou para o mal, não há nada a dizer
sobre ele. Porque sempre haverá o que dizer. Se não houver, as contas não são
pagas.
IV - Não se preocupe,
porém. Há muitos truques para encher essas páginas em branco. Se você quer
desancar um livro e não sabe como, recorra a alguns adjetivos algo abstratos em
se tratando de literatura, mas ainda assim úteis numa resenha. A timidez, por
exemplo. Argumente que o autor não explora suficientemente os conflitos de sua
obra. Afinal, explorar conflitos é uma tarefa que não tem fim, e há um momento
em que todo autor, por mais extrovertido que seja, precisa parar. Outros
chavões sempre à mão: excesso de objetividade, excesso de subjetivismo, excesso
de frieza, excesso de dramaticidade. A categoria das “idéias fora de lugar”,
deslocada de seu contexto original, também ajuda bastante. Um romance correto,
instigante e envolvente pode ser atacado por reproduzir um modelo “burguês” de
contar histórias, incompatível com o nosso tempo. Um romance sem essas
características pode ser destruído, justamente, por ser mal-escrito e não
envolver o leitor.
V - Para o caso contrário,
isto é, se você quer elogiar um livro que acha ruim – o das linhas finais do
item IV, por exemplo –, há dois recursos clássicos: a) em relação à prosa
desagradável, escatológica e/ou ilegível, diga que ela reproduz o incômodo e a
irredutibilidade de sentidos do mundo contemporâneo; b) em relação à trama
caótica e fragmentária, quando não se entende o que é início, o que é fim e do
que é mesmo que estamos falando, afirme que a maçaroca reproduz, como uma
“metáfora estrutural”, o caos fragmentário da sociedade pós-industrial.
VI - Usando desses
truques, você está pronto para fazer nome devido à afinação com o vocabulário
crítico de sua época. Mas se, por um desses acasos raros, você está decidido a
realmente dizer o que pensa, há também dois caminhos a seguir. O primeiro é
confiar cegamente nos seus juízos pessoais, não temendo a exposição de seus
preconceitos íntimos em público. Assim, você terá mais chances de ser
considerado um sujeito ranheta, excêntrico e/ou pervertido.
VII - O segundo caminho é
considerar-se portavoz de um “sistema”, para o qual são válidas mesmo obras que
não são do seu agrado (por questões sociológicas, por exemplo). Mesmo que os
motivos sejam nobres – sua humildade para não se considerar o juiz definitivo
sobre o que é ou não relevante em termos estéticos –, há boas probabilidades de
você ser visto como um crítico sem alma, sem coragem, sem graça.
VIII - Independentemente
de sua escolha, é inevitável que você seja desprezado. Todos dirão que seu
desejo secreto era ser ficcionista ou poeta, que você é leviano demais,
complacente demais, que tem algum interesse obscuro – ascender na carreira,
agradar aos pares da universidade, arrumar um(a) namorado(a) – ou está a soldo
de alguma entidade obscura – grupos literários rivais, editores, maçons, seitas
religiosas, partidos políticos de esquerda (se você escrever numa pequena publicação)
ou de direita (se receber salário de alguma corporação de mídia).
IX - Mais que isso: você
será odiado. Pelos autores que você desanca. Pelos autores que você ignora.
Pelos autores que você elogia (os motivos serão sempre os errados, na opinião
deles). Pelos outros críticos. Por boa parte do público, mesmo por aquele que o
lê com frequência.
X - Mas se, apesar de tudo
isso, você ainda insiste em abraçar a profissão, é bom se perguntar o motivo.
Quando criança, usando o olfato, Robert Parker era capaz de listar todos os
ingredientes dos pratos que estavam sendo cozinhados na vizinhança, habilidade
que o tornaria um campeão absoluto dos “testes cegos” de identificação de uvas
e safras. Isso se chama vocação. É o seu caso? Você se sente preparado para
conjugar erudição e capacidade interpretativa em tamanha escala? Sendo a
resposta afirmativa, trata-se de uma ótima notícia. Não só para você, que
talvez tenha achado um modo honesto de ganhar a vida, mas para o próprio meio
literário. Porque não há nada de que ele necessite mais, hoje ou em qualquer
tempo: alguém que o ajude a firmar tendências, corrigir rumos, separar o joio
do trigo. Diferentemente do que se diz, um crítico autêntico não é apenas o
advogado do público. Ele é, em última instância, o maior defensor da própria
literatura.
(Ilustração: William
Blake - the gosth of a flea - o fantasma de uma pulga)
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