quinta-feira, 24 de setembro de 2015
DECÁLOGO DO AUTOR, de Miguel Sanches Neto
Depois de leitor, você
pode se tornar, então, escritor – embora, pasme, muitos hoje pulem a leitura,
por julgá-la dispensável, e já desejem publicar.
I - Não fique mandando
seus originais para todo mundo.Acontece que você escreve para ser lido
extramuros, e deseja testar sua obra num terreno mais neutro. E não quer ficar
a vida inteira escrevendo apenas para uma pessoa. O que fazer então para não
virar um chato? No passado, eu aconselharia mandar os textos para jornais e
revistas literárias, foi o que eu fiz quando era um iniciante bem iniciante.
Mas os jovens agora têm uma arma mais democrática. Publicar na internet. Há
muitos espaços coletivos, uma liberdade de inclusão de textos novos e você
ainda pode criar seu próprio site ou blog, mas cuidado para não incomodar as
pessoas, enviando mensagens e avisos para que leiam você.
II - Publique seus textos
em sites e blogs e deixe que sigam o rumo deles. Depois de um tempo publicando
eletronicamente, você vai encontrar alguns leitores. Terá de ler os textos
deles, e dar opiniões e fazer sugestões, mas também receberá muitas dicas.
III - Leia os
contemporâneos, até para saber onde é o seu lugar. Existe um batalhão de
internautas ávidos por leitura e em alguns casos você atingirá o alvo e terá
acontecido a magia de um texto encontrar a pessoa que o justifica. Mas todo
texto escrito na internet sonha um dia virar livro. Sites e blogs são etapas,
exercícios de aquecimento. Só o livro impresso dá status autoral. O que fazer
quando eu tiver mais de dois gigas de textos literários? Está na hora de
publicar um livro maior do que Em busca do tempo perdido? Bem, é nesse momento
que você pode continuar sendo um escritor iniciante comum ou subir à categoria
de iniciante com experiência. Você terá que reduzir essas centenas e centenas
de páginas a um formato razoável, que não tome muito tempo de leitura de quem,
eventualmente, se interessar por um livro de estreia. Para isso, você terá de
ser impiedoso, esquecer os elogios da mulher e dos amigos e selecionar seu
produto, trabalhando duro para que fique sempre melhor.
IV - Considere apenas uma
pequenina parte de toda a sua produção inicial, e invista na revisão dela,
sabendo que revisar é cortar. O livro está pronto. Não tem mais do que 200
páginas, você dedicou anos a ele e ainda continua um iniciante. Mas um
iniciante responsável, pois não mandou logo imprimir suas obras completas com
não sei quantos tomos, logo você que talvez nem tenha completado 30 anos. Mas
você quer fazer circular a sua literatura de maneira mais formal. Quer o livro
impresso. E isso é hoje muito fácil. Você conhece um amigo que conhece uma
gráfica digital que faz pequenas tiragens e parcela em tantas vezes. O livro
está pronto. E anda sobrando um dinheirinho, é só economizar na cerveja.
V - Gaste todo seu
dinheiro extra em cerveja, viagens, restaurantes e não pague a publicação do
próprio livro. Se você fizer isso, ficará novamente ansioso para mandar a todo mundo
o volume, esperando opiniões que vão comparar o seu trabalho ao dos mestres. O
livro impresso, mesmo quando auto-impresso, dá esta sensação de poder. Somos
enfim Autores. E podemos montar frases assim: Borges e eu valorizamos o
universal. Do ponto de vista técnico, Borges e eu estamos no mesmo nível:
produzimos obras impressas; mas a comparação não vai adiante. Então como
publicar o primeiro livro se não conhecemos ninguém nas editoras? E aí começa
um outro problema: procurar pessoas bem postas em editoras e solicitar
apresentações. Na maioria das vezes isso não funciona. E, mesmo quando o livro
é publicado, ele não acontece, pois foi um movimento artificial.
VI - Nunca peça a ninguém
para indicar o seu livro a uma editora. Se por acaso um amigo conhece e gosta
de seu trabalho, ele vai fazer isso naturalmente, com alguma chance de sucesso.
Tente fazer tudo sozinho, como se não tivesse ninguém mais para ajudar você do
que o seu próprio livro. Sim, este livro em que você colocou todas as suas
fichas. E como você só pode contar com ele...
VII - Mande seu livro a
todos os concursos possíveis e a editoras bem escolhidas, pois cada uma tem seu
perfil editorial. É melhor gastar seu dinheiro com selos e fotocópias do que
com a impressão de uma obra que não será distribuída e que terá de ser enviada
a quem não a solicitou. Enquanto isso, dedique-se a atividades afins para
controlar a ansiedade, porque essas coisas de literatura demoram, demoram muito
mesmo. Você pode traduzir textos literários para consumo próprio ou para
jornais e revistas, pode fazer resenhas de obras marcantes, ler os clássicos ou
simplesmente manter um diário íntimo. O importante é se ocupar. Com sorte e
tendo o livro alguma qualidade além de ter custado tanto esforço, ele acaba
publicado. Até o meu terminou publicado, e foi quando me tornei um iniciante
adulto. Tinha um livro de ficção no catálogo de uma grande editora. E aí tive
de aprender outras coisas. Há centenas de livros de iniciantes chegando aos
jornais e revistas para resenhas e uma quantidade muito maior de títulos consagrados.
E a maioria vai ficar sem espaço nos jornais. E é natural que os exemplares
distribuídos para a imprensa acabem nos sebos, pois não há resenhistas para
tantas obras.
VIII - Não force os amigos
e conhecidos a escrever sobre seu livro. Não quer dizer que eles não possam
escrever, podem sim, mas mande o livro e, se eles não acusarem recebimento ou
não comentarem mais o assunto, esqueça e não lhes queira mal, eles são nossos
amigos mesmo não gostando do que escrevemos. Se um ou outro amigo escrever
sobre o livro, festeje mesmo se ele não entender nada ou valorizar coisas que
não julgamos relevantes em nosso trabalho. E mande umas palavras de
agradecimento, pois você teve enfim uma apreciação. E se um amigo escrever mal
de nosso livro, justamente dessa obra que nos custou tanto? Se for um
desconhecido, ainda vá lá, mas um amigo, aquele amigo para quem você fez isso e
aquilo.
IX - Nunca passe recibo às
críticas negativas. Ao publicar você se torna uma pessoa pública. E deve
absorver todas as opiniões, inclusive os elogios equivocados. Deixe que as
opiniões se formem em torno de seu trabalho, e talvez a verdade suplante os
equívocos, principalmente se a verdade for que nosso trabalho não é lá essas
coisas. O livro está publicado, você já pensa no próximo, saíram algumas
resenhas, umas superficiais, outras negativas, uma muito correta. Você é então
um iniciante com um currículo mínimo. Daí você recebe a prestação de contas da
editora, dizendo que, no primeiro trimestre, as devoluções foram maiores do que
as vendas. Como isso é possível? Vejam quantos livros a editora mandou de
cortesia. Eu não posso ter vendido apenas 238 exemplares se, só no lançamento,
vendi 100, o gerente da livraria até elogiou – enfim uma vantagem de ter
família grande.
X - Evite reclamar de sua
editora. Uma editora não existe para reverenciar nosso talento a toda hora. É
uma empresa que busca o lucro, que tem dezenas de autores iguais a nós e que
quer ter lucro com nosso livro, sendo a primeira prejudicada quando ele não
vende. Não precisamos dizer que é a melhor editora do mundo só porque nos
editou, mas é bom pensar que ocorreu uma aposta conjunta e que não se alcançou
o resultado esperado. Mas que há oportunidades para outras apostas e, um dia,
quem sabe... Foi tentando seguir estas regras que consegui ser o autor
iniciante que hoje eu sou.
(Ilustração: Tarsila
do Amaral- Oswald de Andrade, 1923)
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