segunda-feira, 26 de agosto de 2013
O ARQUIVO, de Victor Giudice
No fim de um ano de trabalho, João
obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos. João era moço.
Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um
dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou
atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.
No dia seguinte, mudou-se para um
quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar
um aluguel menor. Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No
entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a
disposição.
Dois anos mais tarde, veio outra
recompensa.
O chefe chamou-o e lhe comunicou o
segundo corte salarial. Desta vez, a empresa atravessava um período excelente.
A redução foi um pouco maior: dezessete por cento. Novos sorrisos, novos
agradecimentos, nova mudança. Agora, João acordava às cinco da manhã. Esperava
três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele
tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.
Prosseguiu a luta.
Porém, nos quatro anos seguintes,
nada de extraordinário aconteceu. João preocupava-se. Perdia o sono, envenenado
em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão
do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.
Uma tarde, quase ao fim do
expediente, foi chamado ao escritório principal.
Respirou descompassado.
- Seu João. Nossa firma tem uma
grande dívida com o senhor.
João baixou a cabeça em sinal de
modéstia.
- Sabemos de todos os seus esforços.
É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.
O coração parava.
- Além de uma redução de dezesseis
por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de
posto.
A revelação deslumbrou-o. Todos
sorriam.
- De hoje em diante, o senhor
passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?
Radiante, João gaguejou alguma coisa
ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.
Nesta noite, João não pensou em
nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio. Mais uma vez, mudou-se.
Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia,
sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara
certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.
Chegava em casa às onze da noite,
levantava-se às três da madrugada.
Esfarelava-se num trem e dois ônibus
para garantir meia hora de antecedência.
A vida foi passando, com novos
prêmios.
Aos sessenta anos, o ordenado equivalia
a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra,
saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze
minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos,
entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há
muito tempo. O corpo era um monte de rugas sorridentes. Todos os dias, um
caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de
serviço, foi convocado pela chefia:
- Seu João. O senhor acaba de ter
seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de
amanhã, será a de limpador de nossos sanitários. O crânio seco comprimiu-se. Do
olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse.
Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:
- Agradeço tudo que fizeram em meu
benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.
O chefe não compreendeu:
- Mas seu João, logo agora que o
senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a
taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta
anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?
A emoção impediu qualquer resposta.
João afastou-se. O lábio murcho se
estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu
ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas
arestas. Tornou-se cinzento. João transformou-se num arquivo de
metal.
(Ilustração: De Chirico -
muebles em el valle)
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