terça-feira, 1 de novembro de 2011

SENTIMENTO SÚBITO, de Lucila Nogueira







Porque você nada sabe da insônia
não venha assim desavisado com esse universo de frases protocolares
e toda uma higiene pasteurizada de ternura
cuidado e não se aproxime demais
existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda
e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar em tudo
estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento súbito

a água que lavou as letras da biblioteca
é um sinal de que o amor e a palavra exigem renovação
que tanto estudo não resolve o desamparo
e que continua desabitada a casa que sou

finjo-me autobiográfica e renasço como personagem
espasmo de eletrochoque eu sirvo o meu senhor
ducha de eletricidade eu sirvo o meu senhor
e basta o seu tom de voz ser um pouco menos terno
que eu já sinto dor

como quem escolhe uma salada de rúcula
em um cardápio de veludo escuro
você está sentado numa poltrona de aço
que já começa a ser engolida
pelo mar vulcânico da minha loucura

não sei porque tudo vinha tão vagarosamente de modo calmo
e de repente foi aquele estalo aquele sobressalto
e você não entendeu nos intervalos de linguagem
o meu jeito pelo avesso de cantar um blue

você não entendeu nada
você não percebeu que eu sou um fósforo apagado
esquecido na fuligem com memória do passado
que a vida cai pesadamente em meu cabelo azulado
e para a tela grande perder o colorido basta uma pilha se gastar

por isso eu chego a ti numa bolha de sabão gigante
soprada no canudo de mamoeiro do quintal da infância
onde aprendi a noite o sol os cristais coloridos e as músicas ciganas
daí que basta você me tocar e eu retorno à vida
quebra-se o encanto e o feitiço
e saio para a realidade carne que se desprende das páginas do livro

escrevo sobre a vida como um exorcismo
não tenho remorso do que vivo
o meu poema é o sinônimo da minha pele exposta
na implosão do muro de Berlim dos sentimentos físicos

sinal vermelho
rostos vazios
caminhei coberta de sargaços na avenida
como um insignificante alfinete atraído por um imã
e perdi o sono perambulando nos telhados
à procura das palavras mais precisas
quando finalmente descobri que o que importa mesmo sempre está implícito

e agora
eu só quero que você ouça minha voz subterrânea
ecoando muito além de toda superfície
mesmo que em mim nada esteja a salvo
quero que observe com perplexidade como eu tenho estilo
e a melancolia dos meus olhos claros
atravessa nervosamente o cosmos como um neutrino
argila submarina de abalos sísmicos na manhã de uma rua vazia de domingo

hoje falta-me companhia para sair e beber um vinho
nada acontece e eu não sei como faço para manter-me viva
nada acontece e eu fico inerte sem regresso nem partida
devo mudar uma vida que já não me serve
mas ando muito cansada de ser sempre eu a tomar todas as iniciativas

você não entendeu nada
e eu estava dizendo apenas na verdade
que subitamente eu fui ficando perturbada
você me lê somente para encontrar suas palavras
mas eu venho de uma raça de saltimbancos e acrobatas
e brilham relâmpagos da tempestade nos meus gestos delicados

o meu corpo flutua como sílabas de imagens congeladas
e nessa opressão desarticulada decido desesperadamente ficar calada
mas não esqueço o convite para ver as estrelas num deserto do Marrocos
nem a minha estranha fuga automática daquele mundo cor-de-rosa entre penhascos
para voltar aqui e ficar sempre à espera do destino e do acaso
sentinela do nada

e a vida passa como as nuvens na janela
da próxima vez eu vou ter mais cuidado
porque das outras sei que estraguei tudo
só por ter medo de encarar a realidade

eu vou telefonar
depois a gente se fala
agora eu não posso acordar
entenda que eu carrego a saudade das aves migratórias
que sobrevoam os alpinistas do círculo polar

porque você nada sabe da insônia
e existe uma parte de mim onde ninguém chegou ainda
e o desespero sempre faz com que a gente precise acreditar e em tudo
estou ficando cada vez mais com medo desse sentimento súbito.



(Ilustração: Liu Yuanshou)



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