segunda-feira, 7 de novembro de 2011
PAISAGEM SEM HISTÓRIA, de Luiz Ruffato
Uma morna aragem visita o fim de tarde do quarto escancarado, despenteando levemente a solidão de uma frágil teia. Assustada, a minúscula aranha expele um invisível fio, por onde escorrem abdome e pernas, exilando-se por detrás do forro úmido-esverdeado de um guarda-roupa coxo, preto verniz deitado em angico, por cujas portas esbandeiradas entrevê-se aquilo que um dia foram fotografias caprichosamente recortadas de revistas, Amiga, Contigo, Grande Hotel, coladas nas folhas de madeira, e arrancadas à força por alheias mãos descontroladas. De quem aquele sorriso melancólico? E aquela testa? O olho que nos mira romanticamente: Roberto Carlos? Quem, o casal do qual apenas restaram braços entrelaçados? E a moça sentada no capô de um Gordini vermelho? Manchas de papel perfazendo inúteis desenhos incompreensíveis. Lantejoulas enfeitiçam noturnos vestidos ornamentais, encarcerados no silêncio. Sapatos, saltos alto e baixo, mergulhados na confusão do móvel, jacaroam entre camisolas e anáguas e roupas de-sair e de-ver-deus, trabesseiros e lençóis e cobertas. Uma caixinha de papelão – abrigo de um chapéu-de-feltro masculino, um dia – asila, promíscua, pratinhas, escovas, pentes, espelho-de-mão com escudo do Flamengo, uma certidão de nascimento cuidadosamente dobrada e redobrada e ainda mais uma vez dobrada. E vidros de perfume com borrifadores, estojos de rímel, sombra e blush, unhas postiças, misses, envelopes de Melhoral, Coristina, Sonrisal, Conmel, AAS, potes de bicarbonato de sódio e sal de fruta. E quatro retratos: bastante desfocados, ao longe, cinco crianças, em escadinha, pés e olhos no chão, roupas miseráveis, posam sob uma árvore (uma mangueira?), provavelmente irmãos: uma menina, blusinha clara, sainha escura (uniforme escolar?), fitas domando o cabelo-ruim, sorri, desajeitada; amassado, uma moça – a anterior, algumas desilusões após, mira desafiadora o fotógrafo, frente a um armazém (traja minissaia e sandália franciscana) ao lado de meio gato; bem enquadradas, duas mulheres a uma mesa de metal, espojada na calçada (dentro do botequim, um totó), brindam a alguém atrás do retratista. A menina depois moça agora jovem mulher tem os cabelos espichados a henê, esgar debochado de quem acostumou, lanterna na mão, a revolver, paciente, ruga por ruga, as horas intermináveis da Ilha. O vermelhão encerou-o o menino filho da lavadeira, a dona Zulmira, em troca de uns caraminguás que abrem as pesadas cortinas do Cine Edgard para a matinê do domingo, calça curta, joelhos esfolados, mãozinhas lambuzadas, fedendo a gasolina. No Natal é papai-noel para a molecada remelenta do Beco do Zé Pinto, bolas de futebol de plástico, soldadinhos, bonecas, carrinhos, biloscas, jogos-de-botão, panelinhas, essas bobiças que toda criança apreceia e que, ela mesma, bem, ela mesma nunca teve...oportunidade...O menino, Lucimar? Luzimar? Luiz mar?, com quantas punhetas não deve tê-la homenageado?, só por adivinhar um começo de coxa, uma vaga mancha escura que poderia ser um bico de peito, a pele macia roçando o avesso daquelas roupas que a mãe lavava, passava...Poderia, quem sabe?, promover aquela caridade, guiar as mãos por outras galáxias, mas, o que haverá de pensar a dona Zulmira?, tão boa, tão...tão prestativa...Entretanto, certa vez, de pena, a porta entreaberta, ouvia-o vizinho, ofegante, esfregando todo seriozinho o escovão, fingiu ressonar na manhã felina, até que, passando em frente, a mínima camisola semitransparente escoiceou o menino, a lata de cera Cristal quase escapuliu, vista infiel, coração desesperado, um troço na boca-do-estômago, Viu?, na meia-volta, sobrepasso, o rabo-de-olho buscou o oásis, pulmão oprimido, revirou-se, Viu?, e o carvão dos cabelos mais uma vez cresceu na miragem, cabeça baixa procurando uma perda no meio das pedras afloradas do terreiro, e ela, madalena, girou as pernas, Viu!, e, trêmulo, o menino prosseguiu, para o resto dos tempos inquieto.
Escrito nas telhas, amparadas pelos caibros, “Cerâmica Santa Teresinha, Bandeira Nova, Estado de Minas”, decorou, cabeça afogada no capim do colchão da cama-de-casal, sempre alguém bufando no seu pescoço, ai-meu-bem, soletradamente, “Ce-râ-mi...”, mulher-dama, olor de dama-da-noite, na alameda areenta, vêm a pé, de bicicleta, de vespa, até de automóvel vêm, cruzam, altaneiros, a pequena ponte-de-madeira esticada sobre o braço-morto do Rio Pomba, carregando no bolso escondidas notas e gonorréia. Soubessem...”Cidinha”, às vezes murmura, para se lembrar, debruçada no parapeito da janela, o dia desmoronando por detrás dos morros, embalado pela música líquida dos redemunhos que transbordam das locas. “ Vou parar de beber”, ouve o Zunga, “Vou virar crente...”, quantas vezes a mesma história!, embuçado nas sombras fugidias do salão, lâmpadas Osram em saias rodadas de papel-celofane vermelho, plástico ordinário vestindo as mesas-de-metal, a vitrola encardida uivando madrugada adentro. O Murrudo, peito-de-vela-ao-vento, pano-de-prato ensebado aconchegado no ombro, uma Nossa Senhora Aparecida, devoção da dona Janice, brilha azul no nicho, atrás do caixa. Ê, minha nega!, é isso, a vida?
Para todo o sempre permaneceria ali, sob a cama, estirada na frescura do cimento, fugitiva do abafor, “Essa mania...Você acaba pegando um troço...uma tuberculose...uma pneumonia...” (quem fala? Dona Janice, inda há pouco? Valdira? Baianinha? A mãe, na infância?), não a atormentasse o batuque no telhado, propagandeando a chuva tardã. Desentocou-se, cerrou as folhas da janela, escancarou o guarda-roupa, catou uma coberta, enrolou-se, esparramando-se sobre o colchão-de-capim, trabesseiro abraçado às orelhas, olhos arregalados, braços enrodilhando as pernas fletidas, o corpo tremeluzindo suores, trovões espatifando pelos lados da rua, e os relâmpagos, meu deus!, coriscando no céu (o caixão doado pela prefeitura desce raspando as paredes do buraco estreito, a mãe dentro, o negro banguela limpa a testa suada na manga da camisa esgarçada, assiste-a de baixo para cima, simpático, os parcos acompanhantes já se aproximam do portão, e ela, Cidinha – não, não era Cidinha ainda, como se chamava, então?, como? – hipnotizada, a poeira sufoca a tarde, gritos bêbados, Vambora, sua cadela!, um tapa, Quê que isso, seu?, o negro banguela assustado, Vamos, desgraçada!, o pai novamente, zonza, o corpo magroveloz ziguezagueia entre túmulos, tropeça nas indigentes cruzes brancas fincadas no chão amarelo, esquiva-se de vasinhos de flores murchas e das velas acesas, arranha-se nas unhas-de-gato e marias-sem-vergonha que empesteiam o cemitério, Só desgosto, ainda ouviu, Só desgosto, essa...) Há uma goteira no meio do cômodo. Tivesse ânimo, deslocaria o penico até lá, evitando a molhação (depois, sabia, caberia a ela mesma, rodo, saco-de-estopa, enxugar tudo), mas a tribuzana...Há tatus que comem defuntos...E pelos buracos que esculpem sob as lápides escorrem a água da chuva, as formigas, as jararacuçus. Dorme, desgraçada, por que essa filha-da-mãe não dorme? Ela, que ainda não era Cidinha, deixava, de raiva, o vento brincando com o amarrado de sapé que cobria o casebre cai-não-cai, O que acontece quando a gente morre?, A gente vai para onde?, Nunca mais vou ver minha mãe?, Nunca mais? E o pai, pressentindo-a revirar no colchão esburacado estendido no chão alisado com bosta-de-vaca, Vê se dorme, desgraçada!, Vê se dorme, senão...E os dias espreguiçavam, piava a invisível juriti, o sol carreava o nascente para o poente, as noites se recolhiam, recatadas, e a mãe, essa nunca que voltava, Mãe?, sabão-de-abacate no tacho-de-cobre, porco berrando no terreiro, toicinho, um rosto?, nada, Mãe?, Mãe?
(Além, sobre, sob: o dilúvio)
(La Gioconda)
(Ilustração: Andrea Kemp – fast sleep)
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