quinta-feira, 16 de junho de 2011

TATAJUBA, de Luís Vassalo




Não confio no mar. Aquele leva e trás sem despedida. O bonito da concha é saber dançar com as ondas, se agarrar aos grãos da areia até que elas partam, se abandonar na água quando voltam. Porque elas sempre voltam, ah, voltam. Ainda não sei por que fui até lá. Devo ter sido enganada, arrastada. Usavam anzol, linha e tudo. Fui com aqueles malditos durante meses. Logo eu que nunca aprendi a sair de casa, nunca larguei do medo de voltar. Porque se ficamos muito tempo longe a casa pode abandonar a gente, eu sei. Voltamos e ela não está mais aqui, cansada da espera. Fui pra não me demorar nunca. Era uma desgraceira de caminhada até a pescaria. O arrastar dos barcos, tudo. Entravam nas águas enquanto eu ficava na areia caminhando. As ondas distraídas, logo atrás, roubando as pegadas da gente. Sabia que quando eles se apequenavam no horizonte acabavam se esquecendo de mim e corria até sumir por trás das dunas. Não sei o que procurava. Sumia. Por um nadica de tempo pensei ter esquecido de casa. Sei lá. Logo iam puxar a rede. Quando voltei, achei só o espanto do silêncio naquelas bocas escancaradas, recém-saídas da água, como se lutassem pra respirar. A rede abarrotada na areia. A gente conhecia bem aquele mar, ele nunca tinha dado peixes assim. Falaram em tempos de prosperidade. Desconfiei. Talvez não entendesse dos presságios do mar. Acho que foi nesse dia que Delmira chegou. 

No começo ninguém se apercebeu de nada, mas logo uma das velhas vinha desconfiada vigiar o volume escondido no comprimento da camiseta. Me encolhia, mas não adiantava mais esconder. Voltei pra cá assustada. Destino de peixe é na peixeira, na peixeira! A velha quis retrucar alguma coisa, não sei. Pro diabo! Corri pra casa por via das dúvidas. Não ia abrir a desgraça daquele bucho na frente de todo mundo. Depois disso resolvi não sair mais de casa. Guardar é deixar esquecido. Apertava Delmira bem forte com os braços na esperança de que pudesse encolher aquela maldição até sumir. Não adiantava. Um dia, Delmira acabou escapando por baixo da camiseta. Estatelou no chão, a boca escancarada atrás de ar, feito peixe fora d’água. Escondi aquela desgraça de choro e, no meio da noite, levei ela até o mar. Sem que ninguém soubesse devolvi Delmira pra as águas. Nunca mais veria aquela menina.

Mas o mar é traiçoeiro, e as ondas, elas sempre voltam. Já tinha me esquecido do mar, de Delmira, quando ela voltou. Chegou na vila caminhando logo atrás das mulheres que voltavam da praia. Estava crescida, a danada. Delmira, sorrindo, passou a correr por toda a parte, passava pela vila e corria ao redor das casas se espalhando por aí feito mau agouro. Os mais velhos olhavam desconfiados. Aceitei aquele destino e até deixei a minha porta aberta. A danada não fazia cerimônia, mas teimava em entrar em casa com o pé que era só areia. Acho que gostava de dançar. No outro dia, voltava que era mais areia do que antes. Menina dos diabos! Olha o pé em casa! Ela corria, dançava ainda mais, mas não respondia. Nem me lembro da sua voz. Outro dia mesmo me perguntou, com aquela voz sem voz, por que as sereias não tinham pés? Pergunta besta! Porque não sabem fugir dos homens! Não sabem! Ela tentava me atrapalhar, eu sei, queria que eu não olhasse a areia invadindo a casa por baixo das portas. Apanhei uma vassoura, Delmira e a sua areia não iam me vencer.

Mesmo assim as areias foram tomando conta da gente. Não tinha mais como esconder. Foram invadindo as casas. Primeiro o teto e depois as paredes. Era assim que as areias iam derrubando elas, uma por uma. Começou quando a igreja que não ficava muito longe da vila sumiu. A ponta do crucifixo que ficava no alto era a única coisa que a gente ainda via sair de cima da duna que se formou. O mar de areia foi chegando com os ventos e prometia engolir toda Tatajuba. Varria aqueles grãos com mais força. Unimos luta contra as areias. Todos nós. Enrolamos panos na cabeça e no corpo pra não sentir aquela dor na pele. Mas a vista era um limpar teimoso. Aquele inferno entrando no olho da gente. Delmira dançava em cima das dunas. Às vezes eu gritava, apontava pra ela, mas logo as vistas da gente embaçavam com a nuvem de areia, Delmira sumia. Ainda ouço os grãos espocando no corpo dela. Pisava nas casas, nos tetos que tentavam resistir. Tentava gritar com ela, mas a areia me fazia fechar a boca. Guardava a minha raiva pra a hora de comer. A cada estalo que a areia dava nos dentes, eu socava o chão como se fosse ela. Os dias passaram. A comida era gosto de areia, o trabalho era gosto de areia, a urina era cheiro de areia. Um dia os homens cansaram. Disseram que a gente não tinha mais jeito aqui. Todos eles. Mais fácil o lugar encontrar jeito do que a gente encontrar o lugar. Não adiantava dizer mais nada, disseram que iam partir na madrugada. Não olhei na cara deles e continuei varrendo. Foram todos. Seguiram rumo contra o vento que trazia aquela desgraça e logo me esqueci deles. Varria. Varria. A casa é uma ampulheta sem pressa.

Outro dia engoli o medo e fui até a praia. Delmira me seguia. Sua risada zunindo com o vento. Ela pensa que pode me levar, eu sei. Qualquer hora os tempos viram de novo, Delmira. As coisas mudam com o leva-e-traz das ondas. Elas já vêm me ajudar, você vai ver. Ah, vêm. Sentei na areia, encolhida entre o vai-e-vem das ondas. A praia é o ninar da espera. As águas regando a paciência da gente. Essas águas teimosas, que não servem mais pra trazer o pai de Delmira de volta, ficam agora a dançar com a menina como quem brinca com um barco ancorado, um peixe que não quer mais voltar pra casa.










(Ilustração: Jean-Marie Poumeyrol – coca-cola)




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