sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
GERMINAL, de Menotti del Picchia
I.
Nuvens voam pelo ar como bando de garças.
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro, apruma-se a bandeira
de São João, desfraldando o seu alvo losango.
Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o.
Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.
No piquete relincha um poldro; um galo alacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos e
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e, num magote escuro, a manada se abisma
na treva.
Anoiteceu.
Juca Mulato cisma.
II.
Como se sente bem recostado no chão!
Ele é como uma pedra, é como a correnteza,
uma coisa qualquer dentro da natureza,
amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,
a esse desejo de viver grande e complexo
que tudo abarca numa força de coesão.
Compreende em tudo ambições novas e felizes,
tem desejos até de rebrotar raízes,
deitar ramas pelo ar.
sorver, junto da planta, sobre a mesma leiva,
o mesmo anseio de subir, a mesma seiva,
romper em brotos, florescer, frutificar!
III.
“Que delícia viver! Sentir entre os protervos
renovos se escoar uma seiva alma e viva
na tenra carne a remoçar o corpo moço...”
E um prazer bestial lhe encrespa a carne e os nervos;
afla a narina; o peito arqueja; uma lasciva
onda de sangue lhe incha as veias do pescoço...
Ei-lo, supino e só, na noite vasta. Um cheiro
acre, de feno, lhe entorpece o corpo langue
e, no torso trigueiro,
enroscam seus anéis serpentes de desejos
e um pubescente ansiar de abraços e de beijos
incendeia-lhe a pele e estua-lhe no sangue.
Juca Mulato cisma.
Escuta a voz em coro
dos batráquios, no açude, os gritos soluçantes
do eterno amor dos charcos.
É ágil como um poldro e forte como um touro;
no equilíbrio viril dos seus membros possantes
há audácias de coluna e a elegância dos barcos.
O crescente, recurvo, a treva em trilhos frange
e, na carne da noite, imerge-se e se abisma
como num peito etíope a ponta de um alfanje.
Juca Mulato cisma...
A natureza cisma.
IV.
Aflora-lhe no imo um sonho que braceja:
estira o braço, enrija os músculos, boceja,
supino fita o céu e diz em voz submissa:
“Que tens, Juca Mulato?...” e, rebolcado na erva,
sentindo esse cansaço irritante que o enerva
deixa-se, mudo e só, quebrado de preguiça.
Cansado ele? E por quê? Não fora essa jornada
a mesma luta, palmo a palmo, com a enxada
a suster no café as invasões da aninga?
E, como de costume, um cálice de pinga,
um cigarro de palha, uma jantinha à toa,
um olhar dirigido à filha da patroa?
Juca Mulato pensa: a vida era-lhe um nada...
Uns alqueires de chão, o cabo de uma enxada,
um cavalo pigarço, uma pinga da boa,
o cafezal verdoengo, o sol quente e inclemente...
Nessa noite, porém, parece-lhe mais quente
o olhar indiferente,
da filha da patroa...
“Vamos, Juca Mulato, estás doido?” Entretanto,
tem a noite lunar arrepios de susto,
parece respirar a fronde de um arbusto,
o ar é como um bafo, a água corrente, um pranto.
Tudo cria uma vida espiritual, violenta.
O ar morno lhe fala, o aroma suave o tenta...
“Que diabo!” Volve aos céus as pupilas, à toa,
e vê, na lua, o olhar da filha da patroa...
Olha a mata: lá está! o horizonte lho esboça,
pressente-o em cada moita, enxerga-o em cada poça
e ele vibra, ele sonha e ele anseia, impotente,
esse olhar que passou, longínquo e indiferente!
V.
Juca Mulato cisma. Olha a lua e estremece.
Dentro dele um desejo abre-se em flor e cresce
e ele pensa, ao sentir esses solhos ignotos,
que a alma é como uma planta, os sonhos como brotos,
vão rebentando nela e se abrindo em floradas...
Franjam de ouro, o ocidente, as chamas das queimadas.
Mal se pode conter de inquieto e satisfeito.
Adivinha que tem qualquer coisa no peito
e às promessas do amor a alma escancara ansiado
como os áureos portais de um palácio encantado!...
Mas a mágoa que ronda a alegria de perto
Entra no coração sempre que o encontra aberto...
Juca Mulato sofre... Esse olhar calmo e doce
fulgiu-lhe como a luz, como luz apagou-se.
Feliz até então, tinha a alma adormecida...
Esse olhar que o fitou, o acordou para a vida!
A luz que nele viu deu-lhe a dor que ora o assombra,
como o sol que traz a luz e, depois, deixa a sombra...
VI.
E, na noite estival, arrepiadas, as plantas
tinham na negra fronde umas roucas gargantas
bradando, sob o luar opalino, de chofre:
“Sofre, Juca Mulato, é tua sina, sofre...
Fechar ao mal de amor nossa alma adormecida
é dormir sem sonhar, é viver sem ter vida...
Ter, a um sonho de amor, o coração sujeito
é o mesmo que cravar uma faca no peito.
Esta vida é um punhal com dois gumes fatais:
não amar, é sofrer; amar, é sofrer mais!”
VII.
E, despertando à Vida esse caboclo rude,
alma cheia de abrolhos,
notou, na imensa dor de quem se desilude
que, desse olhar que amou, fugitivo e sereno,
só lhe restara ao lábio um travo de veneno,
uma chaga no peito e lágrimas nos olhos!
(Juca Mulato)
(Ilustração: Portinari - flautista)
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