quinta-feira, 9 de julho de 2009
PENSÃO DE DOIS, de Djair Pinheiro
Trocaria lençóis e fronhas. Nas gavetas de cada cômoda, alecrim entre linhos. Final de semana, devem aparecer hóspedes. Não tinha pressa. Aprendera a suportar esperas. Não era, então, nos preparativos que aos poucos o sabor se dava? Só macerada a fruta se doa ao licor.
Arrumaria, nesta manhã, os dois quartos da pensão. Caberia em cada um deles uma essência correta. De incenso a aguardente. Adulações e insultos. O primeiro viria manso, domesticado. Ela lhe apunhalaria a virilha com a mão sábia, afiada. Perfurante. O segundo, bravio, agreste. Ela se ajoelharia desarmada, indefesa. Sem resguardo.
Adivinharia aperitivos. A simetria de proporções. Era hora de abrir licoreiras. Em cada criado-mudo, os cálices embaciados, sem pressa, vigiam a hora e a vez, como se cortejassem, pretendendo a dose certa. Há que se beber com correção. Não queria atropelos. Não era à toa que se dedicara durante anos, espanando o pó, preservando linhos, aos dois quartos da pensão, para que tivessem, na hora justa o frescor hospitaleiro.
Haveria de se por em festa. Remexer o guarda-roupa e despendurar camisolas. Ainda era tempo de alvejar toalhas de banho. Quará-las. E expor roupas de baixo. Final de semana, podem aparecer hóspedes. Se vierem, não será surpresa para quem acomodou seus temperos em vasilha adequada. E soube deitar o azeite até curtir, no remolho, dores, saudades. E quem ali se hospedasse repousaria num colo côncavo e sairia fornido... carregando os desaforos de uma longa espera.
Arruma o primeiro quarto. Deita na cama e fareja. Afofa o travesseiro como se preparasse uma armadilha. O cheiro doméstico açula. Furiosa ela avança na presa frouxa. Abate. Descarna. Se viesse assim tão manso, ela saciaria a própria fome. Areja o quarto, varre, arrasta os móveis. Puxa o escovão e lustra, quase com ira, aquele assoalho intacto.
No segundo quarto, a porta se abre com receio. Na ponta dos pés, toca o lençol amarrotado. O perfume de suor atordoa. Domesticada, ela se entrega. E o braço viril a machuca, a mão cobra, dobra sobre ela. Se viesse assim tão rude, ela se afrouxaria obediente, submersa. Na janela entreaberta ela se esconde. Abotoa o vestido. Espana os móveis devagar. Dependura-se na vassoura e, ofendida, varre aquele chão maltratado.
Era tempo de inaugurar desejos. Já arrumara os quartos. O vaso para as flores, a caixa para o chocolate, a penteadeira para jóias e perfumes. Já arrumara os quartos. O cálice para a aguardente, o cinzeiro para o cigarro, o tapete para os escarros.
Entra no primeiro quarto derribando portas. Diz que ele errou no perfume e não sabe de fragrâncias. Que bijuteria não a compra. Que o chocolate é reles e as flores estão murchas. Enfurecida lhe atravessa a mão. O cheiro de incenso agride. Ela insulta aquele hóspede que lhe implora a mão autoritária. Se viesse assim servil, ela afiaria as unhas. E, atrevida desabotoa o vestido.
No segundo quarto, ela bate na porta. Pede licença. Recolhe o urinol. Troca o tapete. Esvazia o cinzeiro cheiro do fumo queima. Ele a arrasta no chão. Se viesse assim tão senhor, ela diria sim. Disfarçaria no xale ombro e dorso machucados. E obediente coloca de molho a roupa de cama surrada.
Estaria pronta se lhe batessem na porta. Exibiria a hospedaria. Faria alarde de seus quartos arranjados na demora de quem cumpre uma quaresma e dos linhos amaciados em cilícios e jejuns. Não desapontaria o inquilino conveniente, esperado. Sem abstinência abriria despensas. E numa intuição, profetizaria receitas arrancadas não da prática, mas da vontade... da solidão de quem apura, na vigília da noite, desejos demolhados. Como se estivesse vazio invade o primeiro quarto. Reclama daquele sono nobre, distinto. E lhe aperta o arreio. Animal de sela, ele cede. Obedece ao freio, à brida. Se viesse assim, cavalheiro, ela o montaria. E amazona, abre a porta do quarto como a porteira de um haras.
Ela ronda o segundo quarto. Vela aquele sono arrogante. E se dispõe a sonhar os pesadelos dele. O hálito amanhecido inebria. Ela se dá. E afeita à boca que a destrata, reclama um beijo acre, um insulto. Se viesse assim embriagado, ela se daria doce. E, acostumada, lava aquele chão endurecido.
Na confusão, quando do arranjo dos quartos, às vezes, desprevenida, não sabia se incenso ou aguardente. Mas, remoendo o tormento, pilava seus grãos. Ou não era na lida lavando linhos e trapos, que se ajusta desvão?
Pressentindo presa fácil, se apossa do primeiro quarto. Quebra o vidro de perfume que a enfastia. Desmerece o presente. Desdenha o galanteio. Se viesse assim, enamorado, ela tripudiaria de sua flexão frágil e o moldaria com sua destreza.
Ela espera na porta do segundo quarto. Implora. O perfume da outra machuca. Oferecida, sem que lhe peça, ela perdoa. Basta-lhe sobra e míngua. Ele se nega. Se viesse assim, intransitável, ela se faria caminho. Subjugada, troca o lençol da afronta e enxuga aquele chão detratado. Revirando prazer e amargura, colocaria de molho os panos da pensão. Afogaria desaforos da espera. Final de semana, devem aparecer hóspedes... Nas gavetas de cada cômoda, uma essência agridoce...
(Ilustração: Picasso)
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