quarta-feira, 1 de maio de 2024

LAST LETTER / A ÚLTIMA CARTA, de Ted Hughes (*)

 




What happened that night? Your final night.

Double, treble exposure

Over everything. Late afternoon. Friday.

My last sight of you alive.

Burning your letter to me, in the ashtray,

With that strange smile. Had I bungled your plan?

Had it surprised me sooner than you purposed?

Had I rushed it back to you too promptly?

One hour later – you would have been gone

Where I could not have traced you.

I would have turned from your locked red door

That nobody would open

Still holding your letter,

A thunderbolt that could not earth itself.

That would have been electric shock treatment

For me.

Repeated over and over, all weekend,

As often as I read it, or thought of it.

That would have remade my brains, and my life.

The treatment that you planned needed some time.

I cannot imagine

How I would have got through that weekend.

I cannot imagine. Had you plotted it all?

Your note reached me too soon – that same day,

Friday afternoon, posted in the morning.

The prevalent devils expedited it.

That was one more straw of ill-luck

Drawn against you by the Post-Office

And added to your load. I moved fast,

Through the snow-blue, February, London twilight.

Wept with relief when you opened the door.

A huddle of riddles in solution. Precocious tears

That failed to interpret to me, failed to divulge

Their real import. But what did you say

Over the smoking shards of that letter

So carefully annihilated, so calmly,

That let me release you, and leave you

To blow its ashes off your plan – off the ashtray

Against which you would lean for me to read

The Doctor’s phone-number.

My escape

Had become such a hunted thing

Sleepless, hopeless, all its dreams exhausted,

Only waiting to be recaptured, only

Wanting to drop, out of its vacuum.

Two days of dangling nothing. Two days gratis.

Two days in no calendar, but stolen

From no world,

Beyond actuality, feeling, or name.

My love-life grabbed it. My numbed love-life

With its two mad needles,

Embroidering their rose, piercing and tugging

At their tapestry, their bloody tattoo

Somewhere behind my navel,

Treading that morass of emblazon,

Two mad needles, criss-crossing their stitches,

Selecting among my nerves

For their colours, refashioning me

Inside my own skin, each refashioning the other

With their self-caricatures,

Their obsessed in and out. Two women

Each with her needle.

That night

My dellarobbia Susan. I moved

With the circumspection

Of a flame in a fuse. My whole fury

Was an abandoned effort to blow up

The old globe where shadows bent over

My telltale track of ashes. I raced

From and from, face backwards, a film reversed,

Towards what? We went to Rugby St

Where you and I began.

Why did we go there? Of all places

Why did we got there? Perversity

In the artistry of our fate

Adjusted its refinements for you, for me

And for Susan. Solitaire

Played by the Minotaur of that maze

Even included Helen, in the ground-floor flat.

You had noted her – a girl for a story.

You never met her. Few ever met her,

Except across the ears and raving mask

Of her Alsatian. You had not even glimpsed her.

You had only recoiled

When her demented animal crashed its weight

Against her door, as we slipped through the hallway;

And heard it chocking on infinite German hatred.

That Sunday night she eased her door open

Its few permitted inches.

Susan greeted the black eyes, the unhappy

Overweight, lovely face, that peeped out

Across the little chain. The door closed.

We heard her consoling her jailor

Inside her cell, its kennel, where, days later,

She gassed her ferocious kupo, and herself.

Susan and I spent that night

In our wedding bed. I had not seen it

Since we lay there on our wedding day.

I did not take her back to my own bed.

It had occurred to me, your weekend over,

You might appear – a surprise visitation.

Did you appear, to tap at my dark window?

So I stayed with Susan, hiding from you,

In our own wedding bed – the same from which

Within three years she would be taken to die

In that same hospital where, within twelve hours,

I would find you dead.

Monday morning

I drove her to work, in the City,

Then parked my van North of Euston Road

And returned to where my telephone waited.

What happened that night, inside your hours,

Is as unknown as if it never happened.

What accumulation of your whole life,

Like effort unconscious, like birth

Pushing through the membrance of each slow second

Into the next, happened

Only as if it could not happen,

As if it was not happening. How often

Did the phone ring there in my empty room,

You hearing the ring in your receiver –

At both ends the fading memory

Of a telephone ringing, in a brain

As if already dead. I count

How often you walked to the phone-booth

At the bottom of St George’s terrace.

You are there whenever I look, just turning

Out of Fitzroy Road, crossing over

Between the heaped up banks of dirty sugar.

In your long black coat,

With your plait coiled up at the back of your hair

You walk unable to move, or wake, and are

Already nobody walking

Walking by the railings under Primrose Hill

Towards the phone booth that can never be reached.

Before midnight. After midnight. Again.

Again. Again. And, near dawn, again.

At what position of the hands on my watch-face

Did your last attempt,

Already deeply past

My being able to hear it, shake the pillow

Of that empty bed? A last time

Lightly touch at my books, and my papers?

By the time I got there my phone was asleep.

The pillow innocent. My room slept,

Already filled with the snowlit morning light.

I lit my fire. I had got out my papers.

And I had started to write when the telephone

Jerked away, in a jabbering alarm,

Remembering everything. It recovered in my hand.

Then a voice like a selected weapon

Or a measured injection,

Coolly delivered its four words

Deep into my ear: ‘Your wife is dead.’



Tradução e notas de Marcus Salgado:



O que aconteceu naquela noite? Tua última noite.

Dupla, tripla exposição [1]

De tudo. Viva eu te vi pela última vez

No cair da tarde de sexta-feira

A queimar no cinzeiro com um estranho sorriso

A carta a mim endereçada. Atrapalhei teus planos?

A surpresa chegou antes do previsto?

Minha resposta foi rápida demais?

Uma hora mais tarde e terias rumado

Para onde eu não te pudesse encontrar

E eu teria me afastado de tua porta fechada e vermelha

A que ninguém abriria

Com tua carta na mão,

Um raio que não conseguiu chegar à terra.

Isso para mim teria sido um tratamento de choque

Que se repetiria durante todo o final de semana

Quando eu a lesse ou nela simplesmente pensasse.

Isso teria reordenado meu pensamento e minha vida

O tratamento que planejavas necessitava de tempo

Não posso imaginar como

Teria suportado aquele fim de semana.

Não posso imaginar. Tinhas já tudo planejado?

Tua mensagem chegou bem depressa até mim – no mesmo dia,

Sexta à tarde, postada pela manhã.

Expediram-na os demônios que sempre prevalecem

Esse foi mais um dos lances de má sorte

Que contra ti cometeu o correio

E que se acrescentou a teu fardo. Saí rapidamente pela neve

Já azulada em fevereiro. Anoitecia em Londres.

Chorei de alívio quando abriste a porta.

Confusão de enigmas em solução. Lágrimas precoces

Que não pude interpretar, que fracassaram ao comunicar

Sua verdadeira importância. Porém, o que disseste

Sobre as cinzas ainda fumegantes dessa carta

Destruída com tanto cuidado, com tanta calma,

Permitiu que eu partisse, que eu te deixasse

Para soprares as cinzas de teu plano, do cinzeiro

Sobre o qual te debruçarias para que eu lesse

O número de telefone do médico.

Minha fuga

Converteu-se em assombração

Desesperançado e insone, com todos os sonhos exauridos.

E eu só queria tornar a capturá-los, só queria

Cair em algum lugar fora desse vazio.

Dois dias sem fazer nada. Dois dias grátis.

Dois dias fora de qualquer calendário, mas roubados

Do mundo

Para além da realidade, dos sentimentos e dos nomes.

Minha vida amorosa tomou posse. Minha entorpecida vida amorosa

Com suas duas agulhas loucas,[2]

Tecendo sua rosa, perfurando e puxando com força

Na tapeçaria sua tatuagem sangrenta

Em algum lugar dentro de mim, atrás de meu umbigo,

Traçando esse brasão confuso,

Duas agulhas loucas cruzando os pontos,

Escolhendo entre meus nervos

Em função de suas cores, a me remodelar

Por dentro de minha pele, uma refazendo a outra

Como uma autocaricatura,

Seu obsessivo entrar e sair. Duas mulheres

Cada uma com uma agulha.

Naquela noite

Minha Susan dellarobbia.[3] Movimentei-me

Com a circunspecção

De uma chama num pavio. Toda minha fúria

Era um esforço abandonado para explodir

O velho globo sobre o qual as sombras dobram

Meu rastro denunciador de cinzas. Corri

De um lado a outro, olhando para trás, um filme invertido,

Rumo ao quê? Fomos até Rugby Street

Onde tu e eu começamos.[4]

Por que fomos lá? Com tantos lugares

Por que fomos lá? A perversidade

Na arte de nosso destino

Ajustou seus refinamentos para ti, para mim,

Para Susan. Jogo solitário

A que se entregava o Minotauro daquele labirinto [5]

Incluindo até mesmo Helen, no apartamento térreo.

Reparaste nela: personagem para um conto.

Não a conheceste. Poucos a conheceram

A não ser através dos ouvidos e da máscara delirante

De seu cão pastor-alemão. Tu nem mesmo a viste de relance.

Apenas te encolheste

Quando o cão demente lançou seu peso

Contra a porta enquanto deslizávamos pelo corredor

E o ouvíamos a engasgar em seu infinito ódio alemão.

Naquela noite de domingo ela deixou a porta aberta

Uns poucos centímetros

Susan saudou aqueles olhos negros, o infeliz

Sobrepeso e o rosto cativante que apareceram

Por trás da corrente do trinco. A porta se fechou.

Ouvimo-la a consolar o carcereiro

Dentro de sua cela, o canil, onde, dias depois,

Ela sufocou com gás a feroz criatura e a si mesma.

Eu e Susan passamos aquela noite

Em nosso leito nupcial. Não havia visto esta cama

Desde que nela nos deitamos em nossa primeira noite.

Não a levei de volta para minha cama.

Ocorrera-me que, com o final de semana,

Poderias aparecer, uma visita surpresa.

Apareceste, para tamborilar em minha sombria janela?

Permaneci com Susan, escondendo-me de ti,

Em nosso leito nupcial – o mesmo de que

Três anos depois a levariam para morrer

Naquele mesmo hospital onde, dentro de doze horas,

Eu te encontraria morta.

Na manhã de segunda

Levei-a ao trabalho, no centro,

E então estacionei meu veículo ao norte de Euston Road

E retornei para onde o telefone me esperava.

O que aconteceu naquela noite, em tuas horas,

Ninguém o sabe, é como se nunca tivesse acontecido.

A cumulação de toda tua vida,

Como um esforço inconsciente, como um nascimento

A fazer avançar a membrana de cada lento instante

Para o interior do seguinte, ocorreu

Como se não pudesse ocorrer

Como se não estivesse ocorrendo. Quantas vezes

Tocou o telefone em meu quarto vazio,

Tu a ouvir o toque no aparelho –

E de um lado e de outro da linha a memória

De um toque de telefone a se desvanecer

Na mente, como se já morta. Conto as vezes

Que possas ter caminhado até a cabine telefônica

No final de Saint George’s Terrace.[6]

Ali estás sempre que olho, saindo

De Fitzroy Road,[7] atravessando

Por entre as margens abarrotadas de açúcar sujo.

Em teu longo sobretudo negro

Tua trança enrolada na parte de trás do cabelo

Andas mas não consegues mover-te, ou acordar,

E já ninguém mais anda,

Andando pela balaustrada sob Primrose Hill [8]

Rumo à cabine telefônica nunca alcançada.

Antes da meia-noite. Depois da meia-noite. Novamente.

Novamente. Novamente. E, às raias da alvorada, novamente.

Em que posição dos ponteiros do relógio

Foi que fizeste tua última tentativa

Já bem além de minha capacidade de escutá-la, que sacudiste

O travesseiro daquela cama vazia? Uma última vez

Tocaste suavemente em meus livros e em meus papéis?

Quando cheguei o telefone dormia.

O travesseiro inocente. Meu quarto dormia,

Cheio da nívea luz matinal.

Acendi o fogo. Saquei meus papéis.

Mal tinha começado a escrever quando o telefone

Estremeceu, num alarme tagarela,

Recordando tudo. Em minha mão ele se recuperou.

E depois uma voz que soava como uma arma escolhida

Ou uma injeção medida

Friamente pronunciou as quatro palavras

No fundo de meu ouvido: “Sua esposa está morta”.

NOTA:


(*) Inédito até 2010 (quando foi resgatado do acervo da British Library e preparado para publicação no periódico New Statesman), “A última carta” se dispõe a lidar diretamente com o suicídio de Plath. O poema evoca o derradeiro encontro entre Ted e Sylvia, ocorrido poucos dias antes da morte da poeta. De acordo com a versão nele apresentada, Sylvia teria escrito um bilhete endereçado a Ted, com possível alusão ao suicídio. Postada na manhã de sexta, a correspondência deveria ter chegado às mãos do destinatário após sua morte, mas, por obra do eficiente serviço postal inglês, acabou por ser entregue no mesmo dia. A crer na narrativa do poema, Ted teria se dirigido à casa de Sylvia, onde ela queimou o bilhete, “com um estranho sorriso”. A publicação de “A última carta” gerou grande polêmica, tanto no que diz respeito à versão dos fatos apresentada por Ted Hughes, como no que se refere à edição póstuma de textos incompletos pertencentes ao espólio de um escritor. Quer se considere verídica ou fantasiosa a narrativa de Hughes, “A última carta” é um poema que, embora incompleto, contém inegáveis qualidades imagísticas e emocionais.



NOTAS DO TRADUTOR:



[1] Na linguagem fotográfica chama-se dupla ou tripla exposição quando a película é exposta, mais de uma vez, a imagens diferentes, que se sobrepõem. Trata-se de efeito artístico que gera uma aura fantasmagórica na fotografia.

[2] É possível pensar que na imagem das duas mulheres com suas agulhas loucas se encontra uma alusão ao comportamento emocionalmente instável de Sylvia Plath e Assia Wevill.

[3] Seria a poeta Susan Alliston, segundo Melvyn Bragg, um dos responsáveis pelo estabelecimento do texto e pela publicação do poema. O verso contém, ainda, uma possível menção à família de escultores florentinos della Robbia (Luca, Andrea e Giovanni), famosos pela graça, pela perfeição e pela sedução de suas figuras.

[4] Em março de 1956, na véspera de viajar para Paris, Sylvia Plath visitou Ted Hughes, que então residia no número 18 da Rugby Street – conforme se lê no poema “18 Rugby Street”, incluído em Birthday letters, livro de poemas publicado poucos meses antes da morte do poeta.

[5] A imagem da casa de Rugby Street como um labirinto também está presente no poema “18 Rugby Street”. Em certo momento, lê-se: “É mal-assombrada!/Quem entra nunca sai completamente!/Quem entra penetra um labirinto”.

[6] Próximo à Primrose Hill Road, portanto dentro do perímetro evocado pela geografia sentimental do poema.

[7] Sylvia Plath se matou na casa número 23 desta rua londrina. O endereço tem uma tradição literária, pois, antes de Sylvia, nele residiu o poeta W. B. Yeats.

[8] Nesta região de Londres situava-se um dos endereços de Sylvia e Ted quando casados: 3 Chalcot Square. Posteriormente, já separados, Sylvia voltou a habitar nas cercanias, em Fitzroy Road.



(Academia Brasileira de Letras, Revista Brasileira nº 69, ano XVIII, outubro-dezembro, 2011. P. 278-291.)



(Ilustração: Sylvia Plath - autorretrato, c.1946-1952)

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