sexta-feira, 5 de janeiro de 2024
INTERMEZZO Nº 3 (O TREVO DE QUATRO FOLHAS), de Eugen Ionescu
O sábio Berembest constatou, baseando-se em demoradas pesquisas e observações, que, para cada noventa e sete trevos com três folhas, há três trevos com quatro folhas. O italiano Micoromegassini constatou, entretanto, a porcentagem de dois trevos com quatro folhas por cento. E o alemão Glumenblatt [1], de seis por cento. Tais estatísticas contraditórias suscitaram vívidas, calorosas e apaixonadas controvérsias, polêmicas, duelos, assassinatos e suicídios.
Os três sábios mundiais reuniram-se, então, numa localidade misteriosa, situada na confluência de dois rios espanhóis e procuraram, baseando-se em documentação extremamente séria, constatar uma verdade eclética. Mas como nenhum deles queria ceder ou renunciar a uma só folha de trevo, a situação ficou muito tensa. Esta, porém, se agravou ainda mais no momento em que um quarto sábio, o polonês Asmatzukievitz, afirmou que, de cem trevos, não há nenhum com quatro folhas.
Sua asserção parecia solidamente fortalecida por provas bem fundamentadas, de maneira que a opinião científica mundial passou a pender sensivelmente para o lado dele. Para apoiar suas convicções, ele apresentou ainda um argumento de ordem teórica: o trevo significa, por definição, três folhas; logo, o trevo de quatro folhas constitui uma contradição flagrante.
Os outros três sábios, embora adversários, uniram-se contra o adversário comum, o polonês Asmatzukievitz. Redigiram juntos um calhamaço, por meio do qual combatiam com ardor as teorias do polonês. Eles defendiam a interessante tese conforme a qual a realidade do trevo é irracional e ilógica. Por ser ilógica, ou propriamente dito até mesmo alógica, não se lhe podem aplicar critérios lógicos.
O trevo de quatro folhas não é possível do ponto de vista lógico, mas é possível na vida. E a melhor prova disso não seria o fato de que existem dois, quatro ou seis por cento?
O polonês respondeu ironicamente por meio de um ensaio, escrito num tom espirituoso e sossegado. Essencialmente, seu conteúdo era o seguinte: uma defesa do espírito lógico; a realidade encontra-se submetida aos princípios da lógica; só às cabeças dos três sábios falta lógica, generalizando o seu caso particular e patológico. Se acreditássemos neles, então, os três sábios seriam quatro, assim como quatro seriam as quatro folhas do trevo. Aplicando, contudo, o próprio método dos três sábios, o método empírico, contamo-los e percebemos que os três sábios são apenas três. Por conseguinte, presumindo que realmente existiriam, dentre cem trevos de três folhas, dois, três ou seis trevos de quatro folhas, todo trevo deveria ser 2 centésimos ou 4 centésimos ou 6 centésimos de quatro folhas. Mas o trevo de três folhas não possui nem mesmo um centésimo da quarta folha.
O sábio Berembest, como réplica, fotografou um trevo de quatro folhas (meio murcho, é verdade) e reproduziu a fotografia no jornal Times. Mas Asmatzukievitz não se deixou intimidar de maneira alguma. Ele afirmou que a essência do trevo é a de possuir três folhas. Que o trevo de quatro folhas é inverdadeiro, inautêntico, patológico, uma aberração. Ora, a ciência trata apenas da verdade; o caso do trevo de quatro folhas não pode ser generalizado, pois não é uma característica essencial do trevo; e mesmo que exista, é como se não existisse. Aliás, o polonês acredita que salvo engano não existe tal trevo; e que duvida extremamente da autenticidade da fotografia de Berembest. Ele mesmo reproduziu um trevo de três folhas, um trevo verde e viçoso, que contrapôs ao trevo murcho de Berembest. Declarou deixar a opinião mundial tirar suas próprias conclusões.
Todos os intelectuais do mundo participaram ativa e veementemente da controvérsia. Abriram-se inquéritos. Caíram governos. Eclodiram revoluções. Só uma velha se penteava enquanto tudo isso acontecia [2]. Foi surpreendida em flagrante delito. Condenada. Queimada viva. E em todos os países iniciou-se então uma caça aos fabricantes de pentes. Fecharam-se fábricas. Confiscaram-se pentes por ser considerado um luxo criminoso pentear-se em momentos tão graves, em que a paz ou a guerra no mundo seriam decididas. A situação planetária tornou-se extremamente tensa e complicada.
Um chinês chamado Pein-Te-A-Do pôs lenha na fogueira ao aparecer com uma nova teoria inspirada nos trevos do polonês, afirmando que o trevo de quatro folhas existe na quantidade de cinquenta por cento; os de três folhas, portanto — após minuciosíssimos cálculos — também cinquenta por cento.
Os europeus protestaram, então, junto à Liga das Nações, querendo saber por que “o chinês está se metendo”, “o chinês entende do quê?” Ademais, o nome dele, que recorda um utensílio reprovado desde o tempo da velha, constituía uma insolência descarada. Em vão se defendeu, por um lado jurando ser movido por desejos objetivos de pesquisa científica; por outro, alegando que o i, essencialmente inútil na palavra Penteado, está incluído no nome daquele que se chama Pein-Te-A-Do e não Pen-Te-A-Do. Pois, nesse caso, deveria ser também eliminada do dicionário a palavra francesa peinture, que não começa como “penteado”.
Os franceses, sentindo-se diretamente ofendidos, queixaram-se por via diplomática junto ao governo chinês, que contudo não quis saber de nada, como se estivessem falando grego.
Pein-Te-A-Do foi alvo de uma tentativa de atentado, à qual os chineses responderam com uma tentativa de incêndio do consulado francês de Xangai. A França decretou mobilização geral. Uma guerra com certeza teria eclodido não fosse um novo evento que abrandou um pouco as tensões:
Cinco criancinhas (uma japonesa, outra bengali, outra holandesa, outra sul-americana e outra antissemita) reuniram cada uma uma coleção de cem trevos.
A primeira criança tinha três trevos de quatro folhas; a segunda, dois; a terceira, seis; a quarta, nenhum; a quinta, cinquenta.
Imediatamente, toda a culpa devidamente caiu sobre a responsabilidade dos cinco sábios. Cada um deles tinha razão separadamente, mas não juntos; os fatos falam por si. Eles continuam quebrando a cabeça sem nada entender, tentando, perplexos, solucionar o intrigante problema.
Permanecem escondidos em algum lugar onde não crescem trevos, pros- seguindo assim suas pesquisas de maneira puramente teórica. Cada um deles tem um punhado de partidários.
Desde então, contudo, a ciência foi desconsiderada e a paz no mundo, provisoriamente garantida.
Mas a história não terminou. Isso nem seria possível.
(Nu. Bucureşti: Humanitas, 1991; tradução de Fernando Klabin)
Notas:
[1] Nome criado pelo autor usando a palavra romena “gluma” (piada) e a alemã “Blatt” (folha). (n.t.)
[2] Ionesco brinca aqui com um conhecido provérbio romeno, “Ţara arde şi baba se piaptănă” (O país está pegando fogo enquanto a velha se penteia), usado para designar uma pessoa que não compreende a importância de agir conforme uma situação de emergência. (n.t.)
(Ilustração: Jules Perahim: the council, 1936)
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