terça-feira, 6 de junho de 2023
O ELOGIO DO ÓCIO, de Bertrand Russell
Mover coisas de um lugar para outro, embora necessário até certo ponto, definitivamente não constitui uma finalidade da vida humana. Se esse fosse o caso, consideraríamos todo estivador superior a Shakespeare. Fomos ludibriados nesse assunto por dois eventos. Em primeiro lugar, a necessidade de manter os pobres conformados levou os ricos, por milhares de anos, a enaltecer a dignidade do trabalho do pobre, enquanto tomavam todo o cuidado para permanecerem indignos de trabalhar. Em segundo lugar, o novo prazer do mecanismo, o deleite em observar com surpresa as modificações que uma máquina consegue efetivar na superfície da terra.
Nenhum dos dois motivos exerce grande atração sobre o trabalhador de verdade. Se você lhe perguntar o que ele identifica como a melhor parte da vida, ele dificilmente responderá:
“Eu adoro trabalho braçal pesado, porque sinto que apoio a Missão da Humanidade. Fico feliz só de imaginar minha contribuição para Humanidade transformar o planeta. É verdade que nem sempre descanso o suficiente, mas isso não diminui o evidente contentamento que me invade assim que retomo a árdua labuta do meu trabalho de manhã bem cedinho.”
Nunca ouvi um trabalhador dizer palavras sequer similares a essas. Qualquer trabalhador considera o trabalho, tal como deve, aliás, ser considerado por todos, um meio necessário à subsistência. Qualquer felicidade que consiga, o trabalhador a obtém nas horas de lazer.
Alguém pode me dizer que, embora o lazer seja bom, as pessoas não sabem aproveitar as horas vagas. Mesmo que isso seja verdade, e apenas até certo ponto, no mundo moderno, trata-se de uma condenação exclusiva de nossa civilização; não era verdade em épocas anteriores. Havia antigamente uma disposição para a brincadeira que foi bastante inibida pelo culto da eficiência. Existe uma crença na modernidade de que uma coisa deve ser feita para conseguir outra coisa, nunca como um fim em si mesmo. Pessoas sérias condenam o hábito de ir ao cinema, afirmam que o cinema estimula a criminalidade dos jovens, mas elogiam o trabalho de construção de um cinema. Pensam assim porque a construção civil, além de ser trabalho, gera lucro.
A noção de que atividades desejáveis são aquelas que geram lucro deixou tudo confuso. O açougueiro, que corta a carne que você come, e o padeiro, que fabrica o pão, são louváveis porque ganham dinheiro; mas se você desfruta da comida fabricada por eles, você é taxado de frívolo, exceto se disser que come apenas para ter energia com que trabalhar. Falando genericamente, assume-se que ganhar dinheiro é bom e gastar dinheiro é ruim. Levando em conta que são dois lados de uma mesma transação, a ideia é um absurdo, equivale a sustentar a bondade das chaves contra a maldade das fechaduras. O indivíduo, em nossa sociedade, trabalha por dinheiro, mas o objetivo social do trabalho está no consumo da produção. Em um mundo em que a geração de lucro serve de incentivo à industriosidade, esse divórcio entre o objetivo social e o objetivo individual da produção atordoa o discernimento. Pensamos demais na produção e quase nunca no consumo. Como resultado, pouco ligamos ao deleite e à alegria do consumo, e não julgamos a produção pelo prazer proporcionado ao consumidor.
Quando sugiro reduzir a jornada diária de trabalho para quatro horas, não defendo preencher todo o tempo restante com tolices. Defendo que quatro horas de trabalho diário deveriam prover uma pessoa de necessidades e confortos elementares e que o resto do tempo ela poderia usar como quisesse. É uma verdade para qualquer sistema social que a educação deveria continuar por tempo além do costumeiro e deveria ensinar, entre outras coisas, como usar o tempo livre de forma inteligente.
Não penso, porém, em atividades sérias. As danças camponesas se extinguiram por quase toda parte, exceto pelas mais remotas zonas rurais, mas a natureza humana provavelmente ainda abriga os impulsos que as motivaram. Os prazeres da população urbana tornaram-se em sua maioria passivos: ver filmes, ver partidas de futebol, ouvir rádio e por aí vai. A passividade é consequência de uma jornada de trabalho que exaure as energias; se as pessoas tivessem tempo livre, voltariam a desfrutar de prazeres em que desempenham um papel ativo.
No passado, havia uma pequena classe ociosa e uma grande classe trabalhadora. A classe ociosa desfrutava de vantagens sem nenhuma preocupação com justiça social; essa situação transformou a classe ociosa em uma classe opressora, antipática, incentivada a inventar justificativas para seus privilégios. Em consequência, sua qualidade diminuiu drasticamente, mas, apesar dessas distorções, a classe ociosa gerou metade do que chamamos de civilização. A classe ociosa cultivou as artes e descobriu as ciências; escreveu os livros, inventou as filosofias e refinou as relações sociais. Membros da classe ociosa chegaram a inaugurar a libertação das classes oprimidas. Sem a classe ociosa, a humanidade jamais teria emergido da barbárie.
Os métodos de uma classe ociosa desprovida de deveres provocavam, entretanto, um extraordinário desperdício. Nenhum dos seus membros aprendeu a ser industrioso e a classe como um todo não possuía uma inteligência excepcional. Embora pudesse produzir um Darwin, gerava em contrapartida centenas de cavalheiros provincianos que não concebiam nada mais inteligente do que o direito exclusivo de caçar raposas e punir as caçadas ilegais. Hoje em dia, espera-se que as universidades providenciem sistematicamente os conhecimentos e a cultura que a classe ociosa providenciava como um resíduo acidental. É uma melhora espantosa, mas tem suas limitações.
A vida universitária se aparta tanto da vida no mundo em geral que os acadêmicos tendem a passar ao largo das preocupações e dos problemas comuns; para completar, expressam-se de uma forma que impede que suas ideias influenciem o público em geral. Para piorar, as universidades organizam os estudos em disciplinas, fazendo com que linhas de pesquisa originais sejam desencorajadas. As universidades, úteis como são, nem por isso são as guardiãs adequadas dos interesses da civilização em um mundo onde todos fora de suas paredes vivem tão ocupados que não podem perder um segundo em investigações inúteis.
Em uma sociedade em que as jornadas laborais ficam limitadas a quatro horas diárias, qualquer curioso está livre para exercer sua curiosidade; cientistas pesquisam, artistas pintam, escritores escrevem — nenhum teme passar fome. O cientista não descobriu nada, o pintor fez telas ruins, o escritor escreveu um romance sem graça? Ainda assim, nenhum passa fome por isso. Sei de jovens escritores que se esmeram na redação de best-sellers escandalosos com a esperança de ganhar o dinheiro com que financiar suas ambições artísticas; mas, se tiverem sucesso, terão eles ainda essas ambições? Terão eles ainda o gosto e a capacidade de realizar essas ambições?
Se alguém se interessa pela economia ou pelo governo, que desenvolva suas ideias sem o distanciamento acadêmico que frequentemente torna inverossímeis os livros dos economistas universitários. Trabalhando menos, os médicos têm tempo de acompanhar os progressos das ciências, os professores não precisam perder os cabelos ensinando, através de métodos rotineiros, assuntos que eles aprenderam na juventude, e que podem, nesse intervalo, ter sido demonstrados como falsos.
Acima de tudo, haveria felicidade e regozijo na vida, em lugar de nervos aos frangalhos, exaustão e gastrite. O trabalho desempenhado proporcionaria sozinho um lazer agradável, sem provocar exaustão. Desde que não estivessem cansadas demais, as pessoas não ocupariam o tempo livre com entretenimentos passivos e estúpidos. Pelo menos um por cento devotaria o tempo livre a assuntos importantes, e, desde que não dependesse desses afazeres para sobreviver, nada bloquearia sua originalidade, pois não haveria razão para conformar-se a padrões acadêmicos arcaicos.
Não somente em casos excepcionais as vantagens do lazer se manifestariam. Homens e mulheres comuns, diante da oportunidade de uma vida feliz, seriam mais bondosos e menos agressivos, menos inclinados a suspeitar da vizinhança. O gosto pela guerra desvaneceria, em parte pela maior bondade das pessoas, em parte porque uma guerra demanda trabalho longo e árduo de todos.
A generosidade é, de todas as qualidades morais, aquela de que o mundo precisa, e resulta de conforto e segurança, não de uma vida de disputas aguerridas.
Os métodos modernos de produção deram-nos a oportunidade de distribuir conforto e segurança para todos; escolhemos, ao invés disso, que uns trabalhem demais enquanto outros morrem de fome por falta de trabalho. Até agora, continuamos a queimar tanta energia trabalhando quanto era regra antes da invenção das máquinas; nisso somos tolos, mas não há razão para sermos tolos para sempre.
(O elogio do ócio; tradução de Pedro Jorgensen Júnior)
(Ilustração: Lyudmila Tomovas - street musicians)
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