sábado, 1 de abril de 2023
A CASA DE PENSÃO, de James Joyce
A sra. Mooney era filha de um açougueiro. Sabia guardar as coisas para si: era uma mulher determinada. Tinha casado com o capataz do pai e aberto um açougue perto de Spring Gardens. Mas assim que o sogro morreu a vida do sr. Mooney começou a degringolar. Ele bebia, saqueava o caixa, se afundava em dívidas. Não resolvia nada lhe arrancar promessas: sempre as quebrava alguns dias mais tarde. Brigando com a esposa na frente dos fregueses e comprando carne ruim arruinou o negócio. Certa noite foi para cima da esposa com o cutelo e ela precisou dormir na casa de um vizinho.
A partir de então os dois começaram a viver separados. Ela procurou o padre e conseguiu a separação e a guarda das crianças. Recusou-se a dar dinheiro, comida ou alojamento ao ex-marido; e assim ele se viu obrigado a trabalhar como contínuo para o delegado. Era um bêbado corcunda e desleixado com um rosto pálido e um bigode branco e sobrancelhas brancas, desenhadas a lápis acima dos pequenos olhos cheios de veias rosadas e expostas; e passava o dia inteiro na sala do bailio, esperando por um serviço. A sra. Mooney, que havia usado o restante do dinheiro do açougue para abrir uma casa de pensão na Hardwicke Street, era uma mulher grande e imponente. A casa tinha uma população flutuante composta por turistas de Liverpool e da Ilha de Man e às vezes por artistas dos salões musicais. A população residente era composta por trabalhadores da cidade. Ela governava a pensão com astúcia e firmeza e sabia quando dar crédito, quando ser rígida e quando deixar as coisas passarem. Todos os jovens residentes chamavam-na de madame.
Os rapazes da sra. Mooney pagavam quinze xelins por semana pela hospedagem e pelas refeições (cerveja no jantar não inclusa). Tinham gostos e ocupações em comum, e por este motivo eram muito próximos uns dos outros. Sempre discutiam as chances dos favoritos e dos azarões. Jack Mooney, o filho da madame, que trabalhava em um escritório de corretagem na Fleet Street, tinha a fama de ser um caso complicado. Gostava de praguejar como um soldado, e muitas vezes chegava em casa de madrugada. Quando encontrava os amigos, sempre tinha uma boa história para contar e sempre tinha certeza de que estava prestes a se dar bem – o que em geral envolvia um cavalo ou uma artista. Também sabia usar os punhos e cantava músicas cômicas. Nas noites de domingo muitas vezes havia reuniões na sala de estar da sra. Mooney. Os artistas dos salões musicais se apresentavam; e Sheridan tocava valsas e polcas e improvisava acompanhamentos. Polly Mooney, a filha da madame, também costumava cantar. Ela cantava:
I’m a... naughty girl.
You needn’t sham; You know
I am.(*)
Polly era uma moça esbelta de dezenove anos; tinha cabelos claros e macios e uma boquinha carnuda. Os olhos, que eram cinzentos com um brilho esverdeado, tinham o hábito de olhar para cima quando ela falava, o que lhe conferia um certo ar de madona teimosa. A princípio a sra. Mooney tinha mandado a filha para trabalhar como datilógrafa no escritório de um representante comercial de milho, mas a cada dois dias um dos homens do delegado, que tinha uma reputação nada elogiável, aparecia no escritório pedindo para trocar uma palavra com a filha do patrão, e assim ela resolveu trazer a filha de volta para casa e colocá-la para trabalhar com os afazeres domésticos. Como Polly estava sempre muito animada, a ideia era encarregá-la de atender os rapazes. Além do mais, os rapazes gostam de saber que há uma moça por perto. Polly, é claro, flertava com os rapazes, mas a sra. Mooney, que era uma juíza arguta, sabia que os rapazes estavam apenas passando o tempo: nenhum deles levava aquilo a sério. As coisas seguiram assim por um bom tempo e a sra. Mooney começou a pensar em mandar Polly de volta para a datilografia quando notou que havia alguma coisa entre Polly e um dos rapazes. Começou a observar os dois e não falou nada.
Polly sabia que estava sendo observada, mas o silêncio persistente da mãe era uma mensagem clara. Não havia cumplicidade declarada entre mãe e filha, não havia compreensão declarada, mas a sra. Mooney não interveio nem quando os hóspedes da pensão começaram a comentar o assunto. Polly começou a agir de maneira um pouco estranha, e o rapaz estava visivelmente perturbado. Por fim, quando julgou ser o momento oportuno, a sra. Mooney interveio. Ela lidava com questões morais da mesma forma como um cutelo lida com a carne: e nesse caso estava decidida.
Era uma bela manhã de domingo no início do verão, que prometia calor apesar da brisa fresca que soprava. Todas as janelas da pensão estavam abertas e as cortinas de renda inflavam-se de leve em direção à rua por baixo das janelas levantadas. Do campanário da George’s Church saíam badaladas constantes, e os fiéis, sozinhos ou em grupo, atravessavam o pequeno circo em frente à igreja, revelando a intenção que os movia não somente pela atitude contida como também pelos pequenos volumes que traziam nas mãos enluvadas. O café da manhã tinha se encerrado na casa de pensão, e a mesa estava coberta de pratos com listras amarelas de ovos e pedaços de gordura e de casca de toucinho. A sra. Mooney estava sentada na poltrona de palha, observando a criada Mary recolher as louças do café. Pediu a Mary que recolhesse as cascas e os farelos de pão para fazer o pudim de pão da terça-feira. Quando a mesa estava limpa e o pão recolhido, e o açúcar e a manteiga trancados a sete chaves, ela começou a reconstruir a conversa com Polly na noite anterior. As coisas eram como havia imaginado: tinha sido franca nas perguntas e Polly tinha sido franca nas respostas. As duas haviam ficado um pouco sem jeito, claro. Ela tinha ficado sem jeito por não querer receber a notícia de maneira cavalheiresca demais nem dar a impressão de ter participado da intriga, e Polly ficou sem jeito não apenas porque alusões daquele tipo sempre a deixavam sem jeito, mas também porque não queria que pensassem que, em uma inocência astuta, tivesse adivinhado as intenções por trás da tolerância da mãe.
A sra. Mooney olhou instintivamente para o pequeno relógio dourado no consolo da lareira ao perceber, através do devaneio, que os sinos da George’s Church haviam parado de soar. Eram 11h17: haveria tempo suficiente para tirar o assunto a limpo com o sr. Doran e depois ir à missa do meio-dia na Marlborough Street. Tinha certeza de que venceria. Para começar, tinha todo o peso da opinião pública a seu lado: era uma mãe indignada. Ela o havia recebido sob o teto da própria casa, imaginando que fosse um homem honrado, e ele tinha simplesmente abusado dessa hospitalidade. Ele tinha 34 ou 35 anos de idade, então a juventude não poderia ser usada como desculpa; tampouco a ignorância, uma vez que era um homem com uma boa experiência de vida. Tinha simplesmente se aproveitado da juventude e da inexperiência de Polly: isso era óbvio. A questão era: como pretendia reparar essa falta?
Uma reparação é sempre necessária em casos como esse. Para o homem é muito conveniente: ele pode ir embora como se nada tivesse acontecido depois de ter desfrutado um momento de prazer, porém a moça tem que arcar com as consequências. Certas mães ficariam satisfeitas se pudessem remediar a situação com uma soma em dinheiro; a própria sra. Mooney sabia de casos assim. Mas para ela não seria o suficiente. Para ela apenas uma reparação poderia compensar a perda da honra da filha: o casamento.
Contou todas as cartas mais uma vez antes de pedir que Mary subisse até o quarto do sr. Doran e dissesse que ela desejava conversar. Tinha certeza de que venceria. O sr. Doran era um rapaz sério, não um degenerado ou um falastrão como os outros. Se tivesse acontecido com o sr. Sheridan ou o sr. Meade ou Bantam Lyons, a tarefa seria muito mais difícil. A sra. Mooney achava que ele não encararia a publicidade. Todos os hóspedes da pensão sabiam alguma coisa sobre o caso; alguns tinham inventado detalhes. Além do mais, ele trabalhava há treze anos no escritório de um grande comerciante de vinhos católico, e qualquer publicidade talvez significasse a perda desse cargo. E se ele concordasse, tudo estaria bem. Ela sabia que ele ganhava uns bons trocados e suspeitava que tivesse economias guardadas.
Já eram quase trinta minutos passados! A sra. Mooney se levantou e se olhou no espelho da sala. Ao ver a expressão decisiva no amplo rosto corado deu-se por satisfeita e pensou em algumas mães que conhecia e que não encontravam jeito de se livrar das filhas.
O sr. Doran estava realmente muito ansioso naquela manhã de domingo. Tinha feito duas tentativas de se barbear, porém a mão estava tão trêmula que foi obrigado a desistir. A barba avermelhada de três dias emoldurava-lhe o rosto, e a cada dois ou três minutos um vapor se condensava nos óculos, de modo que se via obrigado a retirá-los e poli-los com o lenço que trazia no bolso. A lembrança da confissão feita na noite anterior era motivo de uma intensa dor; o padre tinha arrancado todos os ridículos detalhes relativos ao caso e no fim aumentou o pecado a tal ponto que ele quase agradeceu a chance de poder reparar a falta. O mal estava feito. O que mais poderia fazer senão casar-se ou fugir? Não havia como encarar aquela situação. Sem dúvida correriam boatos sobre o caso, e o patrão com certeza ficaria sabendo. Dublin é uma cidade pequena: todos sabem da vida dos outros. Sentiu o coração bater quente na garganta enquanto, na fantasia inflamada, ouvia o velho sr. Leonard dizendo com a voz rouca: Peça ao sr. Doran que venha falar comigo, por favor.
Todos os longos anos de serviço desperdiçados! Todo o esforço e toda a dedicação jogados no lixo! Na juventude tinha aprontado um bocado, claro; gabava-se de ser um livre-pensador e negava a existência de Deus na frente dos amigos e nos bares. Mas tudo isso era passado... ou quase. Ainda comprava o Reynolds’s Newspaper toda semana, mas observava os deveres religiosos e durante nove décimos do ano levava uma vida regrada. Tinha dinheiro suficiente para sustentar-se; não era esse o problema. Mas a família a desprezaria. Para começar, o pai tinha má reputação, e como se não bastasse a pensão da mãe também começava a ser falada. Teve a impressão de que estavam lhe pregando uma peça. Imaginava os amigos discutindo o assunto e rindo. Ela era um pouco vulgar; às vezes dizia Menas e Quando eu ir. Mas de que importaria a gramática se realmente a amasse? Ele não conseguia decidir se gostava dela ou se a desprezava pelo que havia feito. Claro, ele tinha feito a mesma coisa. O instinto suplicava para que permanecesse livre, não para que casasse. Depois que você casa está tudo acabado, dizia.
Enquanto ele permanecia sentado sem saber o que fazer na lateral da cama trajando camisa e calças ela deu uma leve batida na porta e entrou. Contou-lhe tudo, que tinha aberto o coração para a mãe e que a mãe falaria com ele naquela manhã. Ela chorou e o abraçou, dizendo:
– Ah, Bob! Bob! O que eu vou fazer? O que eu posso fazer?
Ela disse que daria fim à própria vida.
Ele tentou oferecer algum consolo, pedindo que não chorasse e dizendo que tudo ia ficar bem, que não havia o que temer. Sentia contra o peito a agitação no seio dela.
Mas a culpa pelo que havia acontecido não era toda dele. Graças à paciente memória do celibatário, lembrava-se muito bem das primeiras carícias casuais que o vestido, a respiração e os dedos dela haviam lhe feito. Certa noite, enquanto ele tirava a roupa para se deitar ela bateu na porta, tímida. Queria reacender uma vela apagada pelo vento. Era a noite do banho. Ela usava um penhoar aberto de flanela estampada. O arco do pé reluzia na abertura das pantufas fofas e o sangue corria quente por trás da pele fragrante. As mãos e os pulsos também soltaram um perfume suave enquanto ela acendia e firmava a vela.
Nas noites em que ele chegava tarde era ela quem esquentava o jantar. Ele mal sabia o que estava comendo quando os dois ficavam sozinhos à noite na casa adormecida. Quanta consideração! Se a noite estivesse fria ou úmida ou ventosa com certeza um copo de ponche estaria pronto quando chegasse. Talvez pudessem ser felizes juntos...
Os dois também costumavam subir as escadas juntos, na ponta dos pés, cada um com uma vela, e no terceiro patamar trocavam um boa-noite relutante. Costumavam se beijar. Ele lembrava muito bem dos olhos dela, do toque da mão e do delírio que sentia...
Mas o delírio passa. Repetiu a frase dela, aplicando-a a si mesmo: O que eu vou fazer? O instinto do celibato instigava-o a resistir. Mas o pecado fora cometido; o próprio sentimento de honra dizia que um pecado daqueles exigia reparação.
Enquanto estava sentado com ela no lado da cama Mary apareceu na porta e disse que a patroa gostaria de falar-lhe na sala de estar. Ele se levantou e vestiu o colete e o casaco, mais confuso do que nunca. Quando terminou de se vestir tentou mais uma vez oferecer algum consolo a ela. Tudo ficaria bem, não havia o que temer. Ela ficou chorando na cama e gemendo baixinho: Ah meu Deus!
Enquanto ele descia as escadas os óculos ficaram tão embaçados que foi preciso retirá-los para lhes dar polimento. Queria atravessar o teto e voar para outro país onde nunca mais fosse ouvir falar sobre esse problema, e mesmo assim uma força o arrastava escada abaixo, degrau após degrau. Os rostos implacáveis do patrão e da madame observavam aquela descompostura. No último lance de escadas ele passou por Jack Mooney, que estava vindo da despensa com duas garrafas de Bass. Os dois trocaram um cumprimento frio; e os olhos do apaixonado fixaram-se por um ou dois instantes em uma cara achatada de buldogue e em um par de braços atarracados. Quando chegou ao pé da escada ele olhou para cima e viu que Jack o observava de uma porta. De repente lembrou-se da noite em que um dos artistas dos salões musicais, um loirinho de Londres, fez uma alusão um tanto liberal em relação a Polly. A reunião quase foi interrompida por conta da violenta reação de Jack. Todos tentaram acalmá-lo. O artista dos salões musicais, um pouco mais pálido do que o normal, continuou a sorrir e a dizer que não tinha falado por mal: mas Jack continuou a gritar que se alguém tentasse aquele tipo de coisa com a irmã dele ele com certeza faria o sujeito engolir os próprios dentes, ah se faria.
* * *
Polly ficou um tempo sentada na beira da cama, chorando. Depois enxugou as lágrimas e foi até o espelho. Molhou a ponta da toalha na jarra d’água e lavou os olhos com a água fria. Olhou-se de perfil e ajustou um alfinete de cabelo acima da orelha. Em seguida ela voltou e sentou-se no pé da cama. Ficou olhando os travesseiros por um bom tempo, e aquela visão despertou agradáveis memórias secretas. Ela recostou a nuca contra o metal frio do estrado e começou a devanear. Não havia mais nenhuma perturbação visível em seu rosto.
Esperou com paciência, quase com alegria, sem nenhuma apreensão à medida que as memórias davam lugar à esperança e a visões do futuro. As esperanças e as visões eram tão complexas que ela já não enxergava mais os travesseiros brancos em que tinha o olhar fixo e tampouco lembrava que estava esperando qualquer coisa.
Por fim ouviu o chamado da mãe. Pôs-se de pé e correu até os corrimãos.
– Polly! Polly!
– Pois não, mamãe?
– Desça, querida. O sr. Doran quer falar com você.
Nesse instante ela lembrou o que estava esperando.
(*) Sou uma travessa mocinha
Não é preciso envergonharem-se
Pois bem sabem que o sou.
(Dublinenses; tradução: Guilherme da Silva Braga)
(Ilustração: Balthus - Teresa sonhando)
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