terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

BALADA DO POEMA QUE NÃO HÁ, de Manuel Alegre

 




Quero escrever um poema

Um poema não sei de quê

Que venha todo vermelho

Que venha todo de negro

Às de copas às de espadas

Quero escrever um poema

Como de sortes cruzadas



Quero escrever um poema

Como quem escreve o momento

Cheiro de terra molhada

Abril com chuva por dentro

E este ramo de alfazema

Por sobre a tua almofada

Quero escrever um poema

Que seja de tudo ou nada



Um poema não sei de quê

Que traga a notícia louca

Da história que ninguém crê

Ou esta afta na boca

Esta noite sem sentido

Coisa pouca coisa pouca

Tão aquém do pressentido

Que me dói não sei porquê



Quero um poema ao contrário

Deste estado que padeço

Meu cavalo solitário

A cavalgar no avesso

De um verso que não conheço



Que venha de capa e espada

Ou de chicote na mão

Sobre esta noite acordada

Quero um poema noitada

Um poema até mais não



Quero um poema que diga

Que nada há que dizer

Senão que a noite castiga

Quem procura uma cantiga

Que não é de adormecer



Poema de amor e morte

No reino da Dinamarca

Ser ou não ser eis a sorte

O resto é silêncio e dor

Poema que traga a marca

Do Castelo de Elsenor



Quero o poema que me dê

Aquela música antiga

Da Provença e da Toscânia

Vinho velho de Chianti

Com Ezra Pound em Rapallo

E versos de Cavalcanti

Ou Guilherme de Aquitânia

Dormindo sobre um cavalo



E com ele então dizer

O meu poema está feito

Não sei de quê nem sobre quê



Dormindo sobre um cavalo



Quero o poema perfeito

Que ninguém há-de escrever

Que ele traga a estrela negra

Do canto e da solidão

Ou aquela toutinegra

De Camões quando escrevia

Sôbolos rios que vão



Que venha como um destino

Às de copas às de espadas

Que venha para viver

Que venha para morrer

Se tiver que ser será

E não há cartas marcadas

Só assim poderá ser

O poema que não há





(Babilónia, 1983)



(Ilustração: Nicolai Abildgaard - Frederik II Builds Kronborg Castle at Elsinore)

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