quarta-feira, 28 de setembro de 2022
O VERDADEIRO INÍCIO DA POESIA NACIONAL, NOS VERSOS SOMBRIOS DE CRUZ E SOUSA, de Massaud Moisés
A sociologia do gosto mostra como é sujeita a chuvas e trovoadas a cotação dos escritores na bolsa de valores literários. As circunstâncias históricas, as amizades, as modas, os adeptos da mesma ideologia política ou religiosa, o marketing pessoal, a propaganda editorial, a idiossincrasia dos críticos, etc., são algumas das razões que podem explicar o sucesso que os autores desfrutam em vida. Claro, se esquecermos de considerar a qualidade do seu produto, poderemos cair no extremo de achar que a sua notoriedade se deve exclusivamente a equívocos, compadrios e distorções de toda sorte. Mas o registro da história literária, quando feito com isenção e verdadeiro espírito crítico, não deixa dúvidas acerca das falsas glórias, porque construídas sobre fundamentos artificiais, quando não simplesmente pouco éticos. Como é o caso de Macpherson, poeta escocês do século 18, ao revelar Ossian, cujas baladas, exibindo um lirismo espontâneo e nostálgico, ganharam audiência internacional e o aplauso fervoroso dos críticos, até meados do século 19, chegando alguns deles a inserir o velho bardo galês no mesmo nicho de Homero e outros poetas antigos de naipe equivalente. Um dia, no entanto, descobriu-se que tudo não passara de monumental fraude: o "descobridor" dos poemas medievais era quem os havia composto.
Entretanto, o contrário também acontece, ou seja, que um escritor tenha caído no esquecimento por muito tempo até que um crítico de renome o ponha de novo em circulação, como é o caso de Gôngora, que conheceu o ostracismo por mais de dois séculos. Ou tenha sofrido a incompreensão dos contemporâneos e dos pósteros e somente em nossos dias voltasse a gozar do merecido respeito, como é o caso de Sousândrade, cuja obra poética, de acentos épicos incomuns, alterou a perspectiva que se tinha da nossa poesia romântica. Ou ainda, passado um século da sua morte, não tenha encontrado todo o reconhecimento do seu valor. É precisamente o caso de Cruz e Sousa, cujo centenário de falecimento transcorre no próximo dia 19. [*]
Creio que não existe, na história das nossas letras, um caso igual de injustiça. Razão por que a data serve à maravilha para se fazer um balanço, ou melhor, um ato de contrição. Por que um poeta da sua envergadura ainda sofre do preconceito que conheceu em vida? É evidente que não se trata mais de preconceito racial, mas de outro, não menos impiedoso. "Dante negro", como alguns amigos o nomeavam, enfrentou com as armas do talento a sociedade hostil em que lhe foi dado viver. Guiado pelo heroísmo dos fortes, não calou a sua voz, mas os detratores souberam como abafá-la, apesar de alguns críticos (como Nestor Vitor) terem brandido com entusiasmo o fio cortante da razão em seu favor. Não bastassem os obstáculos levantados pelo ambiente tacanho, ainda enfrentou a morte do pai postiço, em cujo solar os seus pais serviam, e a quem devia a esmerada educação e formação escolar, bem como a loucura da sua mulher, Gavita, a "Núbia", a "Monja Negra", musa inspiradora. Se o destino dos poetas do século 19 costumava ser atravessado por lances de sofrimento e dor, poucos se lhe comparam em tragédia.
Por uma dessas ironias nada raras, a grandeza da sua poesia foi reconhecida por um estrangeiro ilustre, que entre nós realizou boa parte da sua carreira intelectual: Roger Bastide. Num estudo memorável, colocou-o a par dos maiores simbolistas europeus, Mallarmé e Stephan George. E com justa razão. Mas nem isso teve força para lhe conceder o lugar merecido no panteão nacional. Outros se juntaram ao autor de A Poesia Afro-Brasileira, de 1943 (onde se encontram quatro ensaios admiráveis acerca de Cruz e Sousa), como é o caso de um outro europeu superiormente dotado, Otto Maria Carpeaux, que aqui aportou para escapar dos horrores da guerra de 1939 e aqui ficou até os seus últimos dias, enriquecendo a nossa cultura com o seu saber e o seu discernimento fora do comum. Forrado de leituras enciclopédicas, e situado numa sensata perspectiva crítica e histórica, afirmou certa vez que "a verdadeira poesia nacional começou com Cruz e Sousa e Alphonsus...". Complementava, assim, o juízo lisonjeiro de Roger Bastide, pondo ênfase na importância nacional do poeta.
Como se não bastassem tais testemunhos consagradores, Andrade Muricy, mestre em matéria de Simbolismo e fervoroso admirador e conhecedor da sua poesia, entregou-se à tarefa de lhe editar o espólio e lhe sublinhar a originalidade estética, calcada numa tensa e complexa problemática existencial. Nem mesmo o centenário do seu nascimento (em 24 de novembro de 1961), motivando a reedição da obra e a revisão da sua fortuna crítica, foi suficiente para o erguer ao patamar onde de fato se localiza. Será que o centenário de falecimento poderá despertar os leitores para a sua poesia, inscrita sem favor algum entre as mais inspiradas das nossas letras?
De talento poético despontado muito cedo, Cruz e Sousa rabiscou os primeiros versos à luz de Castro Alves, com o seu romantismo social voltado para a causa abolicionista, e ao apelo da poesia de circunstância. A um só tempo, mostrava-se permeável à "Escola Nova", o realismo em arte, fundado no positivismo e no culto à ciência, no qual se incluíam as teses parnasianas. Um tal ecletismo traía uma fase de transpiração, quando ainda não haviam eclodido os conflitos que lhe marcariam a existência e a poesia madura. O seu livro de estreia, Tropos e Fantasias, escrito de parceria com Virgílio Várzea, um dos seus diletos amigos, apareceu em 1885. Contendo poemas em prosa, revela os titubeios de uma sensibilidade indecisa acerca do caminho a escolher entre as alternativas oferecidas pelo quadro cultural. Mas o lirismo romântico já dava sinais de ceder o espaço à reação antipositivista europeia.
A sedução do jovem pelas novidades não surpreende, pois ainda vivia em Desterro (atual Florianópolis), onde nascera. Uma breve estada no Rio, em 1887, seguida de uma mudança definitiva em 1890, viria a dar outro rumo às suas inquietações. Conhece Nestor Vitor e outros escritores cariocas, que seriam de grande valia no seu amadurecimento como poeta, entra em contacto com a literatura nova, representada por Baudelaire, Poe, Maupassant, Théophile Gautier, Huysmans, Cesário Verde e outros, nos quais descortinava uma súbita e secreta afinidade. A vez de Gavita pouco tardará, fechando o círculo da sua ascensão estética e humana: conhece-a em 1892 e com ela se casa no ano seguinte.
Da recolha dos poemas que nesses anos vai compondo com requinte e zelo de vitralista, resultará Broquéis, publicado em 1893, que a crítica logo mais saudará como o evento que inaugurava a estética simbolista entre nós. O seu poema de abertura, Antífonas, constituía uma espécie de manifesto em verso da nova corrente, como evidencia já a primeira estrofe, de contagiante andamento musical: "Ó Formas alvas, brancas, Formas claras / de luares, de neves, de neblinas!... / Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... / Incensos dos turíbulos das aras...". Missal, coletânea de poemas em prosa, vindo a lume nesse mesmo ano, confirmava a inserção do poeta na vertente literária que mais se afinava com o seu temperamento e as suas angustiantes experiências numa sociedade preconceituosa. A vaguidade, o misticismo, o culto do símbolo, as transcendências, o esteticismo, a tendência ao isolamento, a solidão, enfim, tudo quanto caracterizava o Simbolismo eram-lhe recursos adequados à expressão do seu drama de "emparedado". Este vocábulo, empregado como título de um poema em prosa que seria reunido em Evocações, é o que melhor lhe define, como um autêntico ícone, o drama existencial e a luta para sobrenadar num meio social adverso. O que nos outros simbolistas, notadamente num dos modelos da sua geração, Antônio Nobre, era o refúgio na "torre de marfim", expressão de individualismo solipsista beirando a megalomania, nele é o drama de humilhado e ofendido, preso entre quatro paredes.
Não obstante, os estilemas parnasianos, que já nos Tropos e Fantasias estavam presentes, comparecem nesse manifesto simbolista. A apologia da forma é considerada artigo de fé, ainda que atenuada pela brancura, pela fluidez, pelo misticismo. Tal consórcio, ao fim de contas, já estava na origem das duas vertentes poéticas do tempo: o Parnasianismo e o Simbolismo tiveram como berço Le Parnasse Contemporain, antologia de poetas franceses, publicada entre 1866 e 1876. Distingue-os, porém, o fato de que os parnasianos, movidos pelo amor à impassibilidade de extração clássica, faziam da forma um alvo em si mesmo, enquanto os simbolistas a utilizavam como meio para atingir um fim, que por sua vez estava mais próximo da estética romântica.
Cruz e Sousa, como bom simbolista que era, nutrirá a esperança de romper o "emparedamento" formal, imposto pela cartilha parnasiana, cultivando o poema em prosa, assim como outros simbolistas exercitarão o verso livre, que seria prenúncio da vanguarda moderna em poesia. E como autor de poemas em prosa alcançará os mesmos níveis que atingiu nas composições em que praticou a forma regular com esmero de ourives. E quer nuns, quer noutras, mostrará uma versatilidade que se diria dum deslumbrado ante o arsenal de formas à sua disposição para exprimir as sensações, não raro contrastantes, e os conflitos íntimos que o atormentavam. Além dos corriqueiros expedientes formais, como a aliteração, é a musicalidade a característica mais impressiva, numa escala que começa em surdina, como se a voz sufocasse em angústia, e termina em notas sinfônicas, próprias de quem, ao liberar os demônios interiores, experimentava apaziguadora catarsis. Traduzia quem sabe o anseio de libertação pela arte, a compensação do seu drama de "emparedado" ante uma sociedade injusta, mas o que predomina, nessa virtuosidade sem fronteiras, é o amor à arte como supremo bem.
Por outro lado, a esse culto pelos paraísos estéticos se mescla uma sensualidade escaldante, inspirada por Gavita, e por isso mesmo repassada de espiritualismo místico. Carnal e Místico é o soneto em que se estampa com toda a força o liame entre a sedução da matéria e o visionarismo do Além. O terceto final parece dizê-lo numa síntese que lembra o clima de Antífonas: "Ó Formas vagas, nebulosidades! / Essência das eternas virgindades! / Ó intensas quimeras do Desejo...". Enleado numa floresta de símbolos, "correspondências" e alegorias, à procura da "beleza que não morre" (como diria Antero, seu igual em angústia transcendental), ainda não conseguira vazar em palavras, com clareza, seu drama íntimo.
É que, nesse tempo, celebrava ele o noivado místico com a musa inspiradora. Mas em vez de colher alegrias, ainda que sublimadas por um idealismo de raiz, assiste ao irromper de antigos recalques, veiculando emoções intensas de largo espectro, que calam fundo na sensibilidade do leitor. A sua poesia ganha, em consequência, um rosto arquetípico, que não só reflete a extensão dos seus conflitos, como também dá uma ideia da altura a que se elevava a sua inspiração. Nenhum contemporâneo entre nós o igualou, e raros o acompanharão daí por diante, nesse caldeamento de pulsões nascidas do "eu" revolto e do inconsciente coletivo.
A desesperação, que agora se anuncia com todo o seu poder, será a nota predominante na fase seguinte, assinalada pelos poemas que integrarão Faróis e Evocações. O ano era de 1896. E a motivação do poeta vinha da morte do pai postiço e a demência de Gavita. Caído de um céu nirvânico para a realidade mais dura, substitui a reverência estética pela confissão dum sentimento trágico da vida. A revolta, até então esboçada, agora prevalece. E se antes o seu instrumento parecia se afinar pelos acordes dum Verlaine, agora descobre em Baudelaire o seu parceiro ideal. Tudo fala em dor, tristeza, ironia, morte, rebeldia, tédio, desesperança, satanismo, regiões infernais, decomposições funéreas, "vala comum de corpos que apodrecem,/esverdeada gangrena". O firmamento se lhe afigura pontilhado de "luas de nevroses amarelas", enquanto na terra observa os "vermes, abutres a corroer pedaços/da carne deletéria", num "carnaval infernal da Sepultura".
Tudo culmina na angústia de "emparedado", como se o poeta vertesse em palavras sombrias a mesma tortura interior que Van Gogh representou nas pinceladas nervosas do seu ensolarado impressionismo. Construirá, efetivamente, o seu poema-testamento: "Eu trazia, como cadáveres que me andassem funambulescamente amarrados às costas, num inquietante e interminável apodrecimento, todos os empirismos preconceituosos e não sei quanta camada morta, quanta raça d'África curiosa e desolada que a Fisiologia nulificara para sempre com o riso haeckeliano e papal!" Será demais vislumbrar neste cenário baudelairiano o impacto das crenças cientificistas que sustentavam o Realismo e o Naturalismo, como também a fonte precursora da poesia de Augusto dos Anjos?
Cruz e Sousa não chegou a ver a publicação de Evocações, saída pouco depois da sua morte, por tuberculose, em 19 de março de 1898. Quanto a Faróis, viria a público em 1900, graças ao empenho de Nestor Vitor, a quem se deve igualmente a organização de Últimos Sonetos, publicado em 1900, assim como a primeira recolha das suas obras-primas em matéria de soneto, testemunha o ingresso do poeta numa fase em que a revolta, amparando-se na caridade cristã, dá lugar à resignação. O "cárcere das almas" significa, agora, o anseio pelo "etéreo Espaço da Pureza", pela abertura das "portas do Mistério"; é o desejo de Infinito que norteia o poeta, finalmente entregue ao seu destino de visionário, a invocar a "essência das essências delicadas", convicto de que "ó mundo, (...) és o exílio dos exílios", de que "nessa Amplidão das Amplidões austeras / chora o Sonho profundo das Esferas, / que nas azuis Melancolias morre...".
Alcançava, em suma, o ideal simbolista preconizado em Antífonas. A palavra poética, despida de esteticismo, logra ser puro símbolo: significante e significado se fundem num corpo só, plasmando numa forma única um sentimento único, que se dispersaria, porque fugaz erupção do inconsciente, se outro vocábulo o registrasse. Ou seja, os múltiplos sentidos implícitos na sensação requeriam uma expressão correspondente, que era preciso inventar ou encontrar. Daí o símbolo.
E como tal, não surpreende que os vocábulos para designar o branco lhe brotassem da pena com a frequência de um motivo condutor. Alguns críticos interpretaram erroneamente essa obsessão como sinal do seu complexo de cor, esquecidos de que o branco e cognatos recorrem também nos poemas de outras figuras do Simbolismo, como se pode ver na obra de Alphonsus de Guimaraens. E ninguém diria que o motivo básico, neste poeta, era o mesmo. Impulsionada pelo atrito com o meio, a poesia de Cruz e Sousa usou a cor branca como sinônimo de pureza, virgindade, transcendência, etc., enfim, tudo aquilo que a sua geração considerou digno de se constituir em símbolo de perfeição. Na verdade, em vez de caracterizar o seu drama de poeta negro numa sociedade escravagista, as nuvens brancas, a "lua de linho", as "alvuras castas", etc., apontavam para o fundo religioso do seu drama existencial. Sonho Branco intitula-se, sintomaticamente, um poema de Broquéis. Nisto, diga-se de passagem, avizinhava-se do autor de Ismália, com a diferença de que este era um crente em agonia, enquanto Cruz e Sousa somente atingiu a paz sonhada depois de cruzar os ventos de tragédia que lhe assolaram a breve existência.
Para finalizar, nada melhor do que, à semelhança de Andrade Muricy na introdução à Obra Completa (1961) de Cruz e Sousa, remontar ao estudo em que Roger Bastide lhe interpreta a poesia como uma das mais refinadas da sua geração. Diz ele, fazendo um balanço acima de qualquer suspeita: "Mallarmé continua contemplativo, ao passo que o que domina em Cruz e Sousa é a viagem e a subida, é o dinamismo do arremesso, e isso porque ele era brasileiro, do país da saudade, e de origem africana, de uma raça essencialmente sentimental." E acrescenta: "O chefe da escola francesa, por apuro supremo, chegará à palavra que dá a conhecer uma ausência, enquanto o processo de Cruz e Sousa será o da cristalização. A cristalização é purificação e solificação na transparência, podendo assim guardar na sua branca geometria alguma coisa da pureza das Formas eternas, da Essência das coisas." Daí uma "poesia de beleza única, pois que é acariciada pela asa da noite e, todavia, lampeja com todas as cintilações do diamante". É preciso dizer mais alguma coisa?
(Ilustração: Casa onde nasceu Cruz e Sousa, autor não identificado)
Nota:
Cruz e Sousa faleceu em 19 de março de 1898, portanto o artigo é anterior a 19 de março de 1998. (Nota do blog)
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