terça-feira, 23 de agosto de 2022
SÍNDROME DE MARSHA MELLOW (ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE MULHERES E SEXUALIDADE NA LITERATURA DO SÉCULO XXI), de Raul José Matos de Arruda Filho
Somos a pornogeração de atores: por que escandalizar-se?
Tiffany Limos
(Coletiva de imprensa, depois da exibição do filme Ken Park,
no Festival de Veneza, em 2002).
Marsha Mellow é o nome da autora que está na capa de “Anéis nos dedos dela”, fictício romance inglês, que, com detalhes, descreve inúmeras manobras sexuais. Depois que o livro ocupou o primeiro lugar na lista dos mais vendidos na Inglaterra, parte dos leitores, cheios de curiosidade, procuraram conhecer a autora. Tarefa vã, pois Marsha Mellow não existe – é o pseudônimo de Amy Bickerstaff (que também não existe). Amy Bickerstaff é a narradora do romance Marsha Mellow e eu, de Maria Beaumont. [1]
A escolha de um pseudônimo para a “autora” de um romance com conteúdo sexual explícito é emblemática. As narrativas rotuladas como pornográficas, obscenas, licenciosas e fesceninas estão excluídas do sacro santo reino da literatura, onde a placidez e a beatitude habitam as letras e as leituras dos homens e das mulheres de boa vontade. Com as famosas exceções de sempre, Marquês de Sade, George Bataille, Henry Miller, além de uns dois ou três outros escritores, a tendência geral é a de se considerar como secundária toda literatura que evoca fantasias não-verbais de caráter sexual. Alguns críticos argumentam que esses textos não estão preocupados com a técnica narrativa ou com qualquer tipo de pesquisa de linguagem, constituindo uma elaborada produção discursiva para o incremento do fluxo sanguíneo em uma parte específica do corpo masculino.
Historicamente, há um consenso social de que a pornografia, o erotismo e as discussões de caráter sexual são partes de um território inacessível ao feminino. Como todo bom tabu cultural, deve ser evitado por todos os indivíduos que foram agraciados com “educação e bom gosto” – há quem defenda a tese de que em determinadas situações as mulheres estão isentas dos mecanismos de sedução da linguagem ou das armadilhas da excitação física. Por isso, para alguns homens e mulheres, falar e escrever sobre sexo tornou-se um sentido perdido na comunicação humana.
Essa avaliação concorda com a tese de que narrativas que relatam mil e uma travessuras sexuais se opõem diretamente aos conceitos da virtude moral. Discutir a expressão e a expansão dos prazeres físicos muitas vezes é interpretado como uma maneira de fornecer visibilidade a uma espécie de prostituição da literatura.
Em nome da nobreza dos sentimentos, muitos homens e diversas mulheres defendem o direito de preservar o feminino das “coisas sujas”. O moralismo vitoriano – apesar da distância cronológica – ainda é usado como um muro de contenção. Não obstante os avanços políticos e tecnológicos da modernidade, há uma imagem romântica incrustada no inconsciente coletivo da classe média. Uma parcela do imaginário feminino ainda está atrelada ao mito de Cinderela: com os pés no século XXI e o coração no século XVIII, essas mulheres sonham com o dia em que o “príncipe encantado” vai superar as adversidades, matar o dragão, derrotar o vilão e pedir em casamento a virgem desprotegida – ao fundo, uma música orquestral acompanhará as palavras “The end”, que encerram mais uma bela história de amor.
O dilema proposto por Marsha Mellow ou Amy Bickerstaff, que é o de negar existência ao fato de que o feminino tem desejos sexuais e que, em determinado contexto, pode e deve expressá-los, não é uma visão descolada da realidade. A literatura escrita e consumida por mulheres “normais”, em nome de uma pretensa defesa da intimidade, sempre procurou esconder certas dúvidas, incertos sentimentos. Muitas vezes, ao leitor, passa a sensação de que as mulheres se sentem constrangidas de revelarem algumas das sensações básicas do relacionamento afetivo. E fazem isso muito bem através do onírico, que é uma estratégia compensatória para o desejo reprimido. Como não há obstáculos para o sonho, o interdito manifesta-se através da expressão do desejo. Confundem a procura pelo prazer com o proibido. Ou melhor com o medo de tornar público aquilo que consideram o proibido. Por isso mesmo, o máximo que algumas escritoras e leitoras se permitem é o erotismo, uma forma requentada, digo, requintada de esconder uma relação honesta com o corpo. Dito com outras palavras, edulcorar a realidade e camuflar algumas situações-limites é uma das maneiras com que a negação da união entre o masculino e o feminino se pronuncia. No momento em que é necessário esclarecer as questões fundamentais que definem quem é quem no espaço social, frequentemente o feminino literário sucumbe às imposições do bom comportamento social.
A modernidade, que introduziu mudanças estruturais nos costumes, também edificou um cenário artificial para as relações humanas. Parte significativa do contexto social ainda entende como problemáticas as diferenças entre sexo para reprodução e prazer sexual. Por isso mesmo é que descrever as relações afetivas e sexuais implica em compartilhar com o leitor um conjunto de sentimentos e sensações que, no curso da História, foram cerceados ou omitidos. A dor de se aproximar do real está expressa no fato de que muitas escritoras, cansadas de ficar “meio” excitadas, cansadas de negar a própria realidade, perceberam que alguma coisa estava faltando. Entre a doçura dos lábios do príncipe encantado e o apagar das chamas que alimentam carências, alguma coisa está faltando.
Essa perspectiva de que há algum tipo de falta é o que está gritando, apesar de não gritar, pelo menos explicitamente, uma tendência da literatura feminina brasileira contemporânea de ficção. Com a percepção de que a evolução da história social das mulheres demanda por uma outra interpretação das relações amorosas, do embate sempre doloroso que é travado diariamente entre homens e mulheres, algumas escritoras, cientes de que há um espaço a ser ocupado e que parte da literatura feminina de ficção deambula ao redor da paixão romântica, o que significa ignorar diversas ações humanas consequentes ao ato amoroso, estão adotando em suas narrativas uma voz mais solta, menos reprimida, no que refere aos assuntos de caráter sexual. É uma atitude corajosa, ou seja, repleta de crueldade. Mas, entre as elipses, que segredam intimidades, e os sofismas elaborados por uma prática comportamental, tornou-se imperativo inventar uma razão literária mais integrada com a totalidade e menos apegada às fantasias reducionistas, de inspiração romântica. Em alguns casos, as “novas” narrativas fazem questão de eliminar a fronteira que existe entre o erotismo e a descrição sexual, entre a elaboração literária pretensamente sutil e o relato nu e cru.
Evidentemente, não se trata de reduzir o texto a um conjunto de narrativas em torno de orgasmos e fornicações. Tampouco, a questão pode ser resumida às descrições gráficas sobre o embate entre pênis, vagina, ânus e boca. Esse tipo de narrativa, como a história literária já comprovou “n” vezes, naufraga na monotonia e na banalidade. Coerência narrativa não deve ser confundida com pornografia barata. Mesmo em casos em que as narrativas procuram se mostrar como valores de contestação ou de afirmação de alguma tese, faz-se necessário estar atento ao fato de que a procura pela expressão de um conjunto de relacionamentos e emoções deve estar conectada com um propósito aquém da exaltação da libido. É preciso explorar as sombras, desmascarar os fantasmas, mostrar, se possível com graça e sabedoria, os segredos da intimidade. Entre a literatura e a interdição há um espaço que anseia por uma forma de expressão textual e que ao mesmo tempo em que contempla a liberdade e a libertinagem, revela o desejo e o prazer.
Por esses motivos – e muitos outros –, torna-se importante responder a uma pergunta: escrever sobre sexo, nomeando com todas as letras as diversas maneiras e posições com que é possível a troca de fluídos corporais entre homens e mulheres, resulta em algum tipo de benefício para a questão feminina? Sim e não.
A sexualidade é uma das últimas fronteiras políticas do corpo humano. O uso de descrições mais realistas na literatura feminina permite que o desejo – e suas derivações – seja nomeado pelos nomes com que o desejo – e suas derivações – é conhecido entre quatro paredes. Essa postura nega o uso de uma gramática sexual como exclusividade do masculino – o que é, inegavelmente, um avanço no terreno da linguagem. Como acréscimo, a quebra de qualquer tipo de interdição é sempre saudável, na medida em que concorre para mudar comportamentos, ajuda a estabelecer novos níveis de convivência social e contribuí para diminuir a exclusão. Ao colocar em xeque os limites do proibido, essas narrativas, bem como suas escritoras, estabelecem as bases de uma mudança social.
O aspecto negativo está na mercantilização dos corpos, que imediatamente transporta o sexual para o patológico. O que deveria ser a expressão de uma sexualidade que foi reprimida por atos culturais da sociedade machista, muitas vezes é confundida com “esses livros que se leem com uma só mão”, na alegre definição de Jean-Marie Goulemot. [2]
É preciso evitar a armadilha relatada por Anaïs Nin, no prefácio de Delta de Vênus. [3]
Certa vez, depois de ser contratada para escrever várias histórias eróticas, Anaïs Nin recebeu um telefonema. Ouviu uma voz lhe dizer, a respeito do trabalho já entregue: “Está ótimo. Mas deixe de fora a poesia e as descrições de qualquer coisa além do sexo. Concentre-se no sexo”.[4] Deixe de fora a poesia, disse a voz, unificando a expressão do desejo com a pornografia – que era o que ele queria ler e ela não desejava escrever.
Semelhante equívoco ocorreu, no Brasil, com a literatura produzida por Adelaide Carraro e Cassandra Rios. Cada cópia desses livros foi consumida como um “catecismo”. E a forma com que eles foram editados já era um indicativo do comportamento de seus leitores: capa vagabunda, mal desenhada, papel grosseiro, impressão tosca. Normalmente, esses livros eram vendidos por “baixo do balcão” ou em envelopes de plástico preto, como que a denunciar o conteúdo – que, indiferente do que as autoras tivessem escrito, foram consumidos como pornografia.
Para tentar evitar esses equívocos é que quase todas as narrativas modernas que se utilizam da descrição sexual mostram significativa preocupação com as regras do bom comportamento e da literatura de “qualidade” – independente do fato de que poucos conseguem definir o que é “qualidade”. Neste sentido, a qualidade está ao lado da contenção. A linguagem passa a ser utilizada como um instrumento de repressão. O politicamente correto almeja corrigir politicamente tudo aquilo que não se enquadra no padrão social de “qualidade”. E isso é uma anomalia – seja do ponto de vista do que pode e/ou deve ser corrigido, seja do ponto de vista da política opressiva que o moralismo social estabeleceu como parâmetro de comportamento. Uma das vantagens da literatura realista, que não teme descrever as escolhas da sexualidade como um dos ingredientes fundamentais dos relacionamentos humanos, está nesse avançar contra os tabus culturais.
Dentro dessa ótica, mostra-se interessante um contraste entre A casa da paixão, de Nélida Piñon, [5] um dos grandes clássicos da literatura erótica brasileira, e o romance Amadora, escrito por Ana Ferreira. [6]
Enquanto A casa da paixão possuí uma textura finamente elaborada, na medida em que descreve com apuro de linguagem, repleta de furor e fulgor, o ato amoroso, é divertido perceber como Amadora, que é uma narrativa edificada na linguagem coloquial, choca as almas mais puritanas. A vulgaridade insensível, [7] para usar uma expressão de George Orwell, pode ser encontrada, por exemplo, neste trecho: [ele] Trancou a porta e me mordeu inteira. Eu dei como uma égua no cio. Gozei relinchando, olhando pros cavalos, bem potranca.[8]
O conteúdo transgressor, agressivo, direto de Amadora renega as manobras evasivas da linguagem. Enquanto em A casa da paixão todos os personagens ainda estão procurando pela felicidade, em Amadora o que se destaca é a celebração da felicidade, através da narrativa de uma mulher que considera o sexo como uma das grandes delícias da vida.
O mais importante é que os dois textos, diferentes na abordagem, mas similares na adoção de uma estética com conteúdo sexual, estão irmanados na procura de uma voz que seja capaz de expressar com clareza e tesão a sexualidade feminina. Independente de leituras fora de contexto, que procuram por pornografia em qualquer lugar – o que é lamentável, mas é um risco a que nenhum texto literário está imune –, não é possível deixar de observar uma questão axial: escrever é um ato de coragem, de despojamento das vaidades e dos pudores.
Ana Ferreira e Nélida Piñon não tiveram escrúpulos. Colocaram no papel o que consideraram necessário para expressar os seus sentimentos, seja isso considerado pornografia ou não. Cientes da correção expressa por um personagem de Nilza Resende: Não há foda que se compare às boas palavras contos romances, como não há palavra conto romance que se compare a uma boa foda, [9] Ana Ferreira e Nélida Piñon enfatizaram que, entre o medo de ser objeto de masturbação e o relato de histórias em que o feminino se apresenta como identidade, é possível – com sensibilidade, com talento e, sobretudo, com coragem – retratar uma parcela da vida intima das mulheres.
E isso significa que a prosa muitas vezes assume a forma de poesia. Infelizmente, para poder captar algumas rimas, incertas alusões, complicados jogos de palavras, é necessário um leitor que seja perspicaz o suficiente para entender que é nas entrelinhas, um desses lugares que o masculino muitas vezes tem dificuldades para encontrar, que estão escondidos os melhores versos. O romance Calcinha no varal, de Sabina Anzuategui, [10] por exemplo, foi construído como um grande poema: uma voz sofrida, dolorosa, cheia de angústias. Os desencontros afetivos e a efervescente sexualidade ganham uma dimensão pouco usual na literatura brasileira. Como uma repetição incessante e intermitente, amor rima com dor e no ritmo de um bolero fora de moda, desses em que atravessam as madrugadas ao lado de um copo quase vazio de whisky com guaraná, constrói um hino de louvor à dor de corno, esse sentimento característico da brasilidade. Sem negar o afeto, sem expressar (grandes) rancores pela opressão masculina, a narradora de Calcinha no varal, descrevendo as diversas vezes em que desceu aos infernos da solidão amorosa, não poupa descrições sobre a sua vida privada – esses detalhes arrebatadores, muitas vezes assombrosos, compõem um cenário emocional dilacerante e mostram que é possível a existência de uma literatura diferenciada da mesmice de outras narrativas sobre a frustração amorosa. Quem anseia pela cura não deve ter medo da dor.
Igualmente poéticos, além de muito divertidos, são alguns dos textos de Ivana Arruda Leite. É o caso do miniconto “Por Deus”: “Tira essa faca do meu peito e enterra o pau. É muito mais confortável”.[11]
É muito mais confortável ver que a literatura feminina brasileira está se libertando de algumas amarras e aprendendo a cultivar com paixão um conjunto de palavras que estavam marginalizadas ao universo masculino. Com tesão e bom humor, a literatura feminina contemporânea está flexionando alguns dos verbos mais suculentos da língua portuguesa: olhar, desejar, despir, chupar, dar, comer, introduzir, receber, abrir, fechar, meter, tirar, trepar, foder, gozar, enlouquecer, amar. E no caso específico do último verbo, cabe lembrar que amar não é possível apenas com boas intenções ou com chá de flor-de-laranjeira: fundamental é agir, mostrar, demonstrar, exercer o desejo.
Refazer o território corroído por uma linguagem que é prisioneira de convenções herdadas de um passado cada vez mais distante, que reproduzem estereótipos e preconceitos, é uma conquista política, é uma reinvenção do Eu feminino, perdido entre tantas abstrações, dívidas e dúvidas emocionais. Com a ampliação das fronteiras, o desejo sai das sombras e – com um pouco de carinho, que carinho nunca é demais – se transforma em algum tipo de sentimento mais próximo da realidade em que esses textos foram escritos.
Finalizando, cabe observar que a questão sexual nas narrativas femininas não se resolve através do preconceito. Essa não é uma discussão entre vestais e ninfomaníacas, entre “donas de casa” e prostitutas, entre o bom comportamento e a pornografia. Em alguns momentos, sequer é uma discussão; no máximo, é uma conversa, como nos lembra uma cena do conto O jaguar azul, de Sonia Rodrigues. [12]
A avó e a neta estão trocando impressões sobre “os fatos da vida”. Diz a avó: – (...) Quando uma mulher gosta de pau, minha filha, tem que aprender a lidar com ele.
– Vovó! – Leda enxugou as lágrimas escandalizada. – Eu nunca ouvi você falar “pau” em toda minha vida!
– Ah, isso é porque sua mãe e seu pai nunca deixaram vocês sozinhas de verdade comigo. Uma coisa que eu gostaria de ter feito. Levar vocês a Paris, na adolescência, sentar num café, conversar sobre homens e seus paus. Por que será que as mulheres nunca têm a oportunidade de iniciar as mulheres mais novas, do mesmo sangue, aos segredos do pau?[13]
NOTAS
[1] BEAUMONT, Maria. Marsha Mellow e eu. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2005.
[2] GOULEMOT, Jean-Marie. Esses livros que se lêem com uma só mão: leitura e leitores de livros pornográficos no século XVIII. São Paulo: Discurso Editorial, 2000.
[3] NIN, Anaïs. Delta de Vênus: histórias eróticas. Porto Alegre: L&PM, 2005.
[4] NIN, Anaïs. Op. cit. p. 7.
[5] PIÑON, Nélida. A casa da paixão. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
[6] FERREIRA, Ana. Amadora. São Paulo: Geração Editorial, 2002.
[7] ORWELL, George. Dentro da baleia. In: ______. Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 100.
[8] FERREIRA, Ana. Op. cit. p. 100.
[9] REZENDE, Nilza. Eu quero te comer, Sophia. In: SANCHES NETO, Miguel. Contos para ler na cama. Rio de Janeiro: Record, 2005.
[10] ANZUATEGUI, Sabina. Calcinha no varal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
[11] LEITE, Ivana Arruda. Ao homem que não me quis. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 16.
[12] RODRIGUES, Sonia. O jaguar azul. In: ______. Do que os homens têm medo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. p. 83-109.
[13] RODRIGUES, Sonia. Op. cit. p. 96.
(Ilustração: Jindrich Styrsky-1933)
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