domingo, 17 de julho de 2022

MONTE ALBÁN, OAXACA, MÉXICO, de Oliver Sacks

 



Hoje vamos às grandiosas ruínas de Monte Albán, e para me preparar tratei de ler um pouco sobre elas em meu guia de viagem. O lugar foi fundado no tempo dos olmecas, por volta de 600 a.C. — mais ou menos na mesma época de Roma; logo se tornou uma base da cultura zapoteca, o eixo político e comercial da região, e seu poder estendia-se em todas as direções num raio de duzentos quilômetros, tendo como centro o mirante de seu inigualável platô nas montanhas. A nivelação de um topo de montanha para criar esse platô foi, em si, uma espantosa façanha de engenharia, sem falar no fornecimento de irrigação, alimento e saneamento para uma população estimada em mais de quarenta mil pessoas. A cidade abrigava escravos e artesãos, vendedores ambulantes e mercadores, guerreiros e atletas, mestres de obra e sacerdotes astrônomos, e foi o núcleo de uma rede de relações comerciais disseminadas por toda a Mesoamérica — um grande mercado de obsidiana, jade, penas de quetzal, peles de jaguar e conchas das costas do Atlântico e do Pacífico. Sem que se saiba por quê, ainda ao que parece no auge de sua influência e poder, o lugar foi abandonado por volta de 800 d.C., após mil e quinhentos anos de existência. Monte Albán, embora muito mais antiga do que Mitla ou Yagul, era considerada sagrada pelos zapotecas, e acredita-se que eles tenham conseguido escondê-la dos conquistadores. Graças a isso, boa parte da cidade ainda permanece em pé, quase como no dia em que foi construída.

Na periferia de Monte Albán vemos montículos piramidais, tumbas e pequenos terraços pontilhando as encostas. Essas colinas antigas são ricas em história humana, uma história muito anterior à da própria cidade de Oaxaca, que tem apenas sete séculos. Minha primeira impressão sobre Monte Albán é de assombro, surpresa. A cidade em si é espaçosa e imensa, uma dimensão magnificada, talvez, por seu vazio sobrenatural. Do elevado platô, tem-se uma visão aérea de Oaxaca, uma colcha de retalhos espraiada no vale abaixo. Aqui há ruínas em uma escala tão monumental quanto em Roma e Atenas — templos, mercados, átrios, palácios —, porém nas alturas, num topo de montanha, contra o vivo céu azul mesoamericano, e de um caráter totalmente distinto. Ainda paira sobre a cidade uma ideia de divindade, pois ela já foi uma cidade de Deus, como Jerusalém, só que agora está desolada, deserta. Os deuses fugiram, junto com o povo, mas dá para sentir que um dia estiveram aqui.

O próprio Luis está numa espécie de transe, o que confere uma qualidade hipnótica à sua voz enquanto fala, explicando que as imensas plataformas e átrios da cidade ecoam os contornos dos montes e vales ao redor, a cidade toda sendo um modelo do cenário natural onde está inserida. Harmoniosa, mas não apenas internamente; em harmonia também com a paisagem ao redor.

Surpreendo-me com uma das construções, disposta em um ângulo violento em relação a todo o resto, revoltada contra a simetria imperante. Tem uma estranha forma pentagonal que me faz pensar em uma nave espacial gigantesca que despencou neste topo com jeito de pista de pouso do monte Albán — ou, talvez, que está prestes a ser lançada às estrelas. Seu nome oficial é Construção J, porém é chamada por todos de Observatório, pois seu ângulo destoante parece ter sido concebido para oferecer a melhor vista possível dos deslocamentos de Vênus e seus ocasionais alinhamentos com outros planetas.

Os sacerdotes astrônomos de Monte Albán, Luis estava dizendo, elaboraram um intricado calendário duplo, que logo se tornaria universal na Mesoamérica. Havia um calendário secular terrestre de 365 dias (mais tarde os astecas calcularam que o ano solar durava 365,2420 dias) e um calendário sagrado de duzentos e sessenta dias, no qual cada dia possuía uma importância simbólica única. Os dois calendários coincidiam a cada 18980 dias, aproximadamente cinquenta e dois anos solares, assinalando o fim de uma era — e esse era um tempo de imenso terror e desalento, marcado pelo temor de que o Sol nunca mais aparecesse. Para evitar o temido evento, a última noite desse ciclo era preenchida com cerimônias religiosas solenes, penitências e (mais tarde, com os astecas) sacrifícios humanos, tudo ao mesmo tempo em que ocorria uma frenética observação do céu para ver que caminhos seguiriam as estrelas, os deuses.

Anthony F. Aveni, especialista em astronomia e arqueoastronomia mesoamericana, escreveu que os astecas

[… ] viam no céu o sustento da vida — os deuses a quem eles procuravam retribuir, com o sangue do sacrifício, por mandar chuvas favoráveis, por impedir que a terra tremesse, por incentivá-los nas batalhas. Um dos deuses era o Tezcatlipoca Negro, que com sua roda (Ursa Maior) governava a noite em sua morada no norte. Ele presidia a arena de esportes cósmica (Gêmeos) onde os deuses se divertiam num jogo para determinar o destino da humanidade. Ele acendia as varetas de fogo (cinturão de Orion) que traziam calor ao lar. E no fim de cada ciclo do calendário de 52 anos, o Tezcatlipoca Negro ajustava o ritmo do rabo da cascavel (as Plêiades) para que ela passasse no mais alto do céu à meia-noite — garantia de que o mundo não se acabaria e de que à humanidade seria concedida mais uma temporada de vida.

Os sacerdotes astecas, em seu templo de observação do céu em Tenochtitlán, estavam fazendo o que os sacerdotes astrônomos zapotecas haviam feito em Monte Albán mil anos antes.

Os astecas eram mais supersticiosos, mais dominados por uma espécie de fatalismo cósmico que os zapotecas. É fácil deduzir, de observações contidas em um raro códice asteca preservado até nossos dias, que os astecas viram um eclipse solar parcial na tarde de 8 de agosto de 1496, e isso, talvez combinado a estrelas cadentes e conjunções malignas ou equívocas dos planetas, deixou-os tremendamente apreensivos. Foram esses temores apocalípticos, supõe L uis, e não só as divisões políticas entre eles e a sua incapacidade de se contrapor às armaduras de aço e às armas dos espanhóis, o que levou ao seu colapso quase fatalista antes da chegada de Cortés e seu pequeno bando de conquistadores.

Todos esses pensamentos se amontoam em minha mente enquanto fito o Observatório e me pego refletindo sobre as estranhas interpenetrações da superstição e da ciência, a mistura do inacreditável avanço e das ingênuas crenças animistas acalentadas pelos mesoamericanos. E sobre quanto de tudo isso ainda temos em nós mesmos. Toda a vida mesoamericana há de ter sido impregnada e dominada pela noção do sobrenatural tanto quanto foi pela noção de natureza — dos deuses que governavam do céu e do mundo dos mortos, aos deuses do milho, do terremoto e da guerra.

Andando por Monte Albán, vendo os templos, as plataformas elevadas, as imensas bases de pirâmides, toda a imponente arquitetura voltada para o exterior e os espaços abertos, vem o tempo todo ao meu pensamento o antigo Egito. L uis discorre sobre a influência, neste local, da ideia do sagrado sobre a estética — uma religião de forças e formas naturais que molda os espaços e as estruturas da cidade. Parece ter sido uma religião branda, reverente, praticada a céu aberto (embora vinculada, por elaboradas sincronicidades, aos planetas, às estrelas, a todo o cosmos) —, uma religião que dispensava a violência, os sacrifícios humanos, os horrores dos astecas. Pelo menos é o que L uis afirma.

Os ancestrais eram venerados aqui em Monte Albán, como no antigo Egito, com majestosas tumbas, ou mausoléus, dispostos ao redor da cidade; é uma cidade dos mortos, uma necrópole tanto quanto uma metrópole. Também há sepulturas mais humildes: os túmulos exíguos de pais e avós enterrados em suas próprias casas, para que seus espíritos pudessem permanecer com seus descendentes. Uma dessas sepulturas está exposta, aberta sob uma placa de vidro, no Museu de Monte Albán. Mostra uma mulher de setenta e cinco anos, mirrada, com os dentes descalcificados, osteoporose e joelhos osteoartríticos de toda uma vida de trabalho árduo, talvez ajoelhada, triturando milho. Parece uma indignidade ser exposto dessa maneira — no entanto, dá a este lugar uma realidade humana. Como terá sido, pensamos, a vida dessa mulher, sua vida interior?

É fácil fechar os olhos e imaginar a vasta praça central de Monte Albán apinhada — vinte mil pessoas caberiam aqui —, talvez por ser o dia semanal do mercado, um mercado como o que Bernal Díaz viu em Tenochtitlán. Milhares a disputar espaço na praça, comerciantes e ambulantes de todas as partes apregoando suas mercadorias.

Minha memória dá um salto, volta inopinadamente ao mercado em Oaxaca, não aos ambulantes e lojistas, mas aos mendigos no entorno, indigentes, prostrados. Assim como eles, o homem que vende laranja aos turistas na entrada de Monte Albán poderia ser descendente dos que construíram este lugar — ou dos conquistadores, ou talvez de ambos.

A enormidade de nosso crime, a tragédia, me esmaga. Percebe-se por que alguns execram Colombo e Cortés como vilões.

É possível reconstruir uma identidade que foi solapada e destruída tão impiedosamente e de maneira tão sistemática? E se alguém tentasse fazer isso, o que significaria? As antigas línguas pré-colombianas ainda existem e são faladas por boa parcela, talvez um quinto, da população. Os alimentos básicos continuam os mesmos: milho, abóbora, pimentas, feijões de cinco mil anos atrás. Muitos elementos da cultura ainda sobrevivem. O cristianismo, temos a impressão, apesar de toda a sua longa história, ainda é em certos aspectos apenas um tênue verniz. A arte e a arquitetura do passado são visíveis por toda parte.

Em pé num dos imensos espaços centrais abertos de Monte Albán, imagino a enchente da multidão, vozes falando em uma dezena de línguas, templos abarrotados de fiéis, suas preces subindo ao céu, enquanto os astrônomos trabalham em silêncio no edifício em forma de espaçonave. Imagino a atroada da massa, talvez toda a população de Monte Albán espremida no estádio para assistir a um jogo sagrado.

É isso, o estádio para jogos de bola, e a importância dessa atividade, que parece ser uma exclusividade da Mesoamérica, pois não havia campos para jogar bola no Velho Mundo, seja nas cidades, seja nos céus. Não havia jogo de bola, nem bolas — e como é que se vai jogar bola sem uma bola decente? Mas essa não foi uma associação que fiz logo de início.

O estádio é belíssimo, está agora restaurado de acordo com seu estado original, um imenso gramado oblongo com enormes “arquibancadas” de granito erguendo-se em forma de pirâmide dos dois lados. Sabemos pouquíssimo a respeito das regras ou da importância dos jogos que se realizavam aqui. A versão zapoteca do jogo de bola, L uis explica (em contraste com a versão posterior, “degenerada” dos astecas — mas talvez L uis, por ser zapoteca, esteja sendo parcial) não era bem uma disputa, e sim algo mais parecido com um balé, um interminável, nunca resolvido movimento de luz e sombra, vida e morte, sol e lua, macho e fêmea — a interminável luta, a dinâmica, do cosmos. Não havia vencedores, nem perdedores, nem objetivos nesse jogo.

O jogo de bola, ainda que sublime em seu simbolismo, também era intensamente físico. Equipes de cinco ou seis jogadores usavam todas as partes do corpo exceto pés e mãos. Usavam os ombros, os cotovelos e especialmente os quadris, cingidos por uma armação em forma de cesto que ajudava a proteger e conduzir a bola. Esta, maior do que uma bola de basquete, era de borracha sólida, uma contundente pelota de quase cinco quilos. A versão asteca, pelo menos, em contraste com a interpretação de L uis para a forma zapoteca, era um jogo competitivo — e letal, pois o capitão perdedor (ou às vezes o vencedor) era ritualmente sacrificado e comido.

Mas a discussão em nosso grupo botânico transfere-se para a bola e para o fato de os indígenas da Mesoamérica terem descoberto um modo de extrair o látex de árvores nativas, séculos ou mesmo milênios antes da chegada dos espanhóis. Estes, aliás, ficaram perplexos com as bolas de borracha: “Quando batem no chão, saltam no ar com grande rapidez”, escreveu um assombrado explorador no século X V I. “Como pode acontecer isso?” Alguns exploradores pensavam que a bola devia estar viva; nunca se vira no Velho Mundo nada tão elástico, que ricocheteasse dessa maneira. Conheciam a elasticidade de uma mola comprimida, de um arco esticado, mas sequer sonhavam com uma substância que fosse, em si, elástica.

Muitas plantas têm uma seiva leitosa e viscosa, ou látex. Sem intervenção, ela secará, ficará sólida, quebradiça e frágil. É preciso tratá-la para coagular os microscópicos glóbulos de borracha ali contidos, produzindo uma massa que, ao secar, transforma-se no material sólido e elástico que conhecemos como borracha. Não existe uma única árvore de borracha. Várias famílias de árvores fornecem um látex adequado, e muitas delas foram descobertas por mesoamericanos. Os maias perceberam que podiam cortar a árvore Castilloa elastica, coletar o látex numa gamela e tratá-lo com a seiva ácida de glória da manhã (o que era muito conveniente, pois era comum a Castilloa ser rodeada por trepadeiras dessa planta). A borracha que eles produziam era usada não só nas enormes bolas de jogar, mas também em bolinhas que serviam de brinquedo para as crianças e na feitura de imagens e estatuetas religiosas, sandálias de sola emborrachada e na amarração da cabeça dos machados aos cabos.

Ao contrário do chocolate e do tabaco, que foram levados para a Espanha pelos primeiros exploradores e logo adotados, a borracha demorou a emplacar na Europa. Quando isso enfim aconteceu, foi com a borracha da árvore amazônica Hevea, e é por isso que hoje essa espécie é tão cultivada. As primeiras folhas de borracha enrolada só foram levadas para a França nos anos 1770, e ali despertaram grande interesse. Charles Mackintosh, na Escócia, viu que a borracha podia ser usada para fabricar tecidos impermeáveis, e passou a fabricar a capa de chuva que se tornou conhecida como “mackintosh”. Joseph Priestley, o descobridor do oxigênio, percebeu que o material podia ser usado como apagador de marcas de lápis (só então a palavra “rubber”, que serve para designar a substância e o objeto de apagar, entrou para a língua inglesa — mas acho que prefiro a estrambótica palavra francesa “caoutchouc”, que ecoa o termo quíchua original).

Só no século XIX Charles Goodyear veio a descobrir que, se a goma bruta fosse tratada com enxofre e aquecida, era possível obter uma forma altamente maleável e elástica de borracha. Nesse sentido, Goodyear “inventou” a borracha — só que os maias já a haviam inventado milênios antes. (Apenas há pouco tempo se descobriu que a glória da manhã contém compostos de enxofre que, como no processo de Goodyear, são capazes de interligar os polímeros do látex e introduzir segmentos rígidos em suas cadeias — cadeias que se enleiam umas nas outras e interagem, produzindo a elasticidade da borracha.)

Meio ouvindo, meio sonhando, imagino o estádio como ele deve ter sido há mil e quinhentos anos, no apogeu de Monte Albán, os jogadores aos empurrões usando os quadris e nádegas com uma energia graciosa mas encarniçada, tocando a bola pesada, quase viva, sentindo que reproduziam o jogo de bola do céu e que seus movimentos, seus padrões, as constelações que traçavam, estavam equilibrando as ações do cosmos, dos senhores da vida e da morte.



(Diário de Oaxaca)



(Ilustração: Monte Albán - Oaxaca)



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