Thomas De Quincey (1785-1859) iniciou o uso do ópio (Ópio! O terrível agente de inimagináveis prazeres e dores! [1] ) em 1804, aos dezenove anos, portanto, como paliativo contra o sofrimento gástrico e para enfrentar uma incipiente tuberculose, que ele acreditava estar sofrendo (o pai morre de tuberculose quando o escritor contava sete anos).
A princípio, ele tomou ópio uma vez em cada três semanas, em 1812 já o fazia uma vez por semana; no ano seguinte, após uma dolorosa desordem gástrica, começou a ingeri-lo diariamente. Por volta de 1816, a dosagem era de 320 grãos ou oito mil gotas por dia.
Tecnicamente falando, ele era um bebedor de ópio, e não um comedor. Em 1817/1818, atingiu 480 grãos diários, alcançando este mesmo patamar em 1843, aos 58 anos de idade.
O texto das Confissões foi escrito em 1821, quando o escritor contava 36 anos, tendo sido revisado em 1856. Ao expor ao leitor as razões que o levam a escrever suas Confissões, De Quincey admite “(...) desenredei, quase até o último nó, o emaranhado de cordas que me atava”.[2] Trata-se, a seu ver, de uma conquista pessoal, o que não o exime de se indagar acerca das motivações para um uso tão prolongado da substância: são atos que visam ao alívio da dor ou apenas ao desejo do prazer?
Isolemos algumas passagens em que o escritor descreve as sensações advindas de sua primeira experiência com a droga:
- Que ascensão dos mais profundos abismos do meu espírito! Umapocalipse do mundo dentro de mim! O ter-me aliviado das minhas dores era agora insignificante diante de meus olhos: todo aspecto negativo foi tragado pela imensidade daqueles efeitos positivos que se abriram diante de mim, no abismo da alegria então repentinamente revelada (...) A felicidade podia agora ser comprada com uma moeda e carregada no bolso do casaco: êxtases portáteis poderiam ser engarrafados e a paz de espírito poderia ser remetida em galões pela diligência do correio. [3]
Como todo usuário de uma substância, De Quincey arrola as inúmeras vantagens do ópio sobre o vinho: se neste último os prazeres são sempre crescentes e tendem a uma crise, o efeito do ópio demora de oito a dez horas — ou seja, no vinho, um caso de prazer agudo, no outro, de prazer crônico: “Um é uma chama, o outro apenas um brilho permanente e imutável”. [4]
Além disso, para o escritor e usuário, o vinho perturba as funções mentais, e o ópio acrescenta a elas as ordens mais especiais, leis e harmonia, acusando de erro a afirmação segundo a qual a elevação de espírito produzida por esta substância é seguida de uma depressão, cuja consequência é o torpor e a estagnação física e mental.
- O ópio, ao contrário, dá serenidade e harmonia a todas as faculdades, ativas ou passivas; e com respeito pela índole e sentimentos morais em geral, simplesmente fornece aquele calor vital que é aprovado pelo julgamento e que provavelmente sempre acompanhou a constituição física de uma saúde antediluviana ou ancestral. [5]
As Confissões se elevam um tom, na medida em que o escritor atribui a descoberta do ópio a uma revelação divina: “(...) o comedor de ópio (...) sente que está sob o domínio da parte mais divina de seu ser; isto é, as afeições estão em completa serenidade e acima de tudo brilha a luz do majestoso intelecto”. [6]
Se a descoberta da substância se apresenta como movimento divino, estatui-se a doutrina de uma igreja da qual De Quincey supõe ser “(...) o único membro: alfa e ômega”. [7] Entre as vantagens auferidas pelo usuário do ópio, o escritor inclui o aumento da atividade geral da mente, e consequente incremento do prazer intelectual.
- É suficiente dizer que um coro de elaborada harmonia coloca à minha frente, como uma peça de um sério trabalho, toda a minha vida passada — não como se estivesse sendo recordada por um ato de memória, mas presente e encarnada na música, deixando de ser dolorosa, com os detalhes do incidente removidos ou misturados em alguma enevoada abstração, e sua paixão exaltada, sublimada e espiritualizada. [8]
Em sua relação com o tempo/espaço, Thomas De Quincey revela uma certa ruptura com o tempo, que se dilata — “um comedor de ópio é feliz demais para observar a passagem do tempo” [9] — e uma relação de amplificação do espaço, que incha — “mercados e teatros não são os lugares apropriados para o comedor de ópio chegar ao mais divino estado de seu aproveitamento”. [10]
Restam, então, a solidão e o silêncio, condições indispensáveis para os transes do comedor de ópio, ou seus sonhos profundos, coroamento e consumação de tudo o que pode fazer o ópio pela natureza humana, afirma De Quincey. No seu caso particular, reconhece o escritor a inestimável ajuda da substância, necessária para estabelecimento dos seus laços sociais: “os remédios que eu procurava eram para viver em sociedade e manter minha inteligência em contínua ligação com os assuntos da ciência”. [11]
Ao final de sua exposição sobre os prazeres do ópio, e na fronteira com a contraparte intitulada de “Dores do ópio”, o escritor oferece-nos uma ode à substância:
- Oh! justo, sutil e poderoso ópio! que aos corações dos pobres e dos ricos, às feridas que nunca cicatrizarão e às angústias que induzem o espírito à rebelião és um doce bálsamo; ópio eloquente! tu, com tua poderosa retórica, roubas os argumentos da ira; ao criminoso devolves por uma noite as esperanças da juventude, mãos lavadas de todo o sangue; e ao orgulhoso, trazes um esquecimento fugaz dos erros não redimidos e insultos não vingados (...); e da anarquia do sono evocas à luz do sol os rostos de belezas enterradas há longo tempo, purificadas dos ultrajes da sepultura. Só tu dás ao homem tais tesouros e possuis as chaves do Paraíso, oh justo, sutil e poderoso ópio! [12]
Na sua Ilíada de sofrimentos, ou ao relatar as dores do ópio, De Quincey chama a atenção do leitor para a irregularidade de sua narrativa e pelo caráter excessivamente pessoal de sua prosa, a respeito do qual Freud [13] irá comentar, distinguindo o relato de um indivíduo de suas experiências pessoais da narrativa de um escritor criativo. Em relação ao primeiro, sugere que em geral sentimos repulsa ou indiferença, ao passo que as narrativas de um escritor criativo despertam em nós o prazer.
- A verdadeira ars poetica está na técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos demais. Podemos perceber dois dos métodos empregados por essa técnica. O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias. [14]
Num extenso rol de infortúnios sofridos pelo escritor, um em especial nos chama atenção, pela sua estreita ligação com a arte poética: trata-se dos efeitos paralisantes sobre as faculdades intelectuais, exceção feita a um único trabalho, deixado inconcluso, em razão de seu artífice considerar empreendimento superior às suas potências criativas.
- E, em vez de sobreviver a mim como um monumento de desejos, ao menos —, de uma vida de trabalho dedicada à exaltação da natureza humana, naquela maneira que Deus melhor me criou para promover um objetivo tão grande, este trabalho resulta mais como um memorial de esperanças vencidas, ou esforços vãos, de materiais acumulados sem uso, de fundações feitas, mas que nunca poderiam suportar uma superestrutura — pesar e ruína do arquiteto. [15]
Contudo, o aspecto mais saliente das Confissões de De Quincey, tendo em vista nossos interesses neste estudo, prende-se ao fato de se associarem, na experiência deste comedor de ópio, os devaneios aos estados oníricos: “(...) à medida que os estados criativos dos olhos aumentavam, uma simpatia parecia surgir entre os estados de sono e vigília do cérebro”. [16]
De acordo com a sua descrição, à noite, estando ainda acordado na cama, seus devaneios traçavam, por assim dizer, diversas formas, em cores desmaiadas e visionárias, que se transformavam em fantasmas aos seus olhos e logo ganhavam o terreno dos sonhos, alcançando um insuperável esplendor. Essas mudanças em seus sonhos eram acompanhadas por um estado de ansiedade e profunda melancolia, estados que nada devem aos enunciados desde sua juventude: “(...) lembro-me de minhas jovens ejaculações de angústia (...)”. [17]
Um outro aspecto enumerado entre as dores, embora não reconheçamos aí senão o mais salutar hábito praticado pela técnica da psicanálise — a rememoração onírica — é incluído: “Os incidentes mais momentâneos da infância ou as cenas esquecidas dos últimos anos eram frequentemente revividos (...)” [18], afirma o escritor, assegurando que não há nada que possa ser esquecido pela mente, o que antecipa a descoberta do recalque em Freud.
- Milhares de acidentes podem se interpor, e com certeza cobrirão como um véu a nossa consciência presente das inscrições secretas da mente. Acidentes do mesmo tipo poderão fazer com que esse véu se descubra, mas de qualquer forma, veladas ou não, as inscrições permanecem para sempre, exatamente como as estrelas que parecem sumir com a luz do dia, quando na verdade estão cobertas pelo véu da claridade, e apenas esperam o fim do dia para se revelar. [19]
Na arquitetura onírica do escritor, os elementos componentes eram não apenas os devaneios da vida de vigília e as experiências infantis, como também o universo literário do escritor, um comedor de livros. É a partir desse material que se constroem os sonhos que ele designa de arquitetônicos, revestidos de esplendor: “Com o mesmo poder de infinito crescimento e repetição procedia minha arquitetura em meus sonhos”. [20]
Lagos e extensões prateadas de água, logo transformados em mares e oceanos, desenharam-se no universo onírico do escritor, em que pontuava, como ausência, o rosto humano. Em seguida, uma espécie de tirania se apodera de suas criações oníricas, em que “(...) o mar parecia repleto de rostos, virados para os céus, rostos implorando, furiosos, desesperados, surgidos das profundezas aos milhares, por gerações, por séculos”. [21]
Os sonhos orientais, pontuados por seres de toda espécie, assediaram o escritor no ano de 1818, ano em que o uso do ópio alcançou índices considerados, para os padrões atuais, alarmantes. “Sobre todas as formas, ameaças e punições, sobre todas as prisões escuras e incomensuráveis, surgia um sentimento de eternidade e de infinito que me levava a uma opressão como a da loucura”. [22]
O tema da loucura, presente nos sonhos, alia-se ao da morte, a respeito da qual o escritor elabora algumas teses, entre as quais a de que a contemplação da morte é mais recorrente no verão do que em qualquer outra época do ano.
Ao final das Confissões, De Quincey declara o objetivo do relato, qual seja o de mostrar os fantásticos efeitos do ópio, quer no prazer, quer na dor, apontando como herói da narrativa a própria substância. Erige-se, desse modo, o ópio, à condição de protagonista de uma narrativa que, embora confessional, desloca o centro do criador para o objeto criado.
REFERÊNCIAS
DE QUINCEY, Thomas. Confissões de um comedor de ópio. Tradução de Ibañez Filho. Porto Alegre: L&PM, 2002, 146p.
FREUD, Sigmund. Escritores Criativos e Devaneio (1908 [1907]). In: . ‘Gradiva’ de Jensen e Outros Trabalhos. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. IX.
Notas:
1 DE QUINCEY (2002), p.78.
2 DE QUINCEY (2002), p.21.
3 DE QUINCEY (2002), p.80.
4 DE QUINCEY (2002), p.83.
5 DE QUINCEY (2002), p.83.
6 DE QUINCEY (2002), p.85
7 DE QUINCEY (2002), p.85.
8 DE QUINCEY (2002), p.91.
9 DE QUINCEY (2002), p.94.
10 DE QUINCEY (2002), p.94-95.
11 DE QUINCEY (2002), p.95.
12 DE QUINCEY (2002), p.96-97.
13 FREUD. Escritores Criativos e Devaneio (1908 [1907]).
14 FREUD. Escritores Criativos e Devaneio (1908 [1907]).
15 DE QUINCEY (2002), p.121.
16 DE QUINCEY (2002), p.127
17 DE QUINCEY (2002), p.76.
18 DE QUINCEY (2002), p.128.
19 DE QUINCEY (2002), p.129.
20 DE QUINCEY (2002), p.132.
21 DE QUINCEY (2002), p.135.
22 DE QUINCEY (2002), p.138
(Ilustração: Thomas de Quincey by Sir John Watson Gordon)
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